Revista Exame

A hora da telemedicina -- País já fez 1,7 milhão de consultas à distância

A tragédia causada pela covid-19 traz, para o sistema de saúde brasileiro, uma oportunidade única de se modernizar — e já há empresas liderando essa corrida

Robô de atendimento na UTI de covid-19 no Hospital Albert Einstein, em São Paulo: encurtando distâncias (Germano Lüders/Exame)

Robô de atendimento na UTI de covid-19 no Hospital Albert Einstein, em São Paulo: encurtando distâncias (Germano Lüders/Exame)

Mariana Desidério

Mariana Desidério

Publicado em 13 de agosto de 2020 às 05h30.

Última atualização em 20 de agosto de 2020 às 06h27.

A startup Conexa faz parte do seleto grupo de empresas que cresceram em meio à pandemia de covid-19. Há três anos no mercado, oferece serviços de telemedicina para operadoras de saúde, hospitais e clínicas. Antes da atual crise global, atendia em média 50 pacientes por dia. Agora são 15.000. Desde janeiro, a Conexa fez 1 milhão de consultas, enquanto a população usuária de telemedicina subiu de 150.000 para 3,5 milhões no país. “Sabíamos que o mundo de saúde digital chegaria e nos preparamos para isso”, diz Guilherme Weigert, presidente da empresa, que ampliou recentemente o quadro de funcionários de 40 para 170 e conseguiu um aporte de 40 milhões de ­reais de investidores, como o fundo de private equity­ americano General Atlantic. Para grande parte das empresas de saúde brasileiras, que, ao contrário da Conexa, está atrasada tecnologicamente, lutando com custos crescentes e ineficiência, a telemedicina traz uma boa e uma má notícia. As que conseguirem correr e incorporar as inovações deverão entrar em um modelo mais sustentável e que atenda melhor a população. As demais poderão acabar sendo contadas entre as vítimas da covid-19.

Parentes de pacientes com covid-19 esperam boletim médico em São Paulo: a tecnologia pode evitar deslocamentos | Ronny Santos/Folhapress (Pedro Trindade/Creative Commons)

A pandemia colocou uma lupa sobre os desperdícios na cadeia de saúde brasileira, um problema antigo. De acordo com um estudo recente realizado pela plataforma de gestão de saúde DRG Brasil com 1,8 milhão de diárias hospitalares de mais de 500.000 pacientes, 37,7% das internações poderiam ter sido evitadas, por exemplo. “A crise econômica empurra o sistema de saúde na direção da eficiência. O que é caro em medicina é a medicina malfeita”, afirma Renato Couto, presidente da IAG Saúde, consultoria de eficiência em saúde e desenvolvedora da DRG Brasil. A grande aposta que vem chacoalhando o setor é a de que a crise causada pela pandemia vai impulsionar os serviços de saúde digital, levando a uma significativa redução de custos e à ampliação do acesso da população. O país está atrasado no emprego dessa ferramenta quando comparado com outros países. Um estudo mostra que 46% dos americanos agora usam a telemedicina, ante 11% no ano passado. Mas o maior obstáculo à modernização no Brasil foi removido pela covid-19, mesmo que temporariamente. Até abril, a regulamentação para a telemedicina determinava que o atendimento poderia ocorrer somente com um médico nas duas pontas. A chamada interconsulta é útil para os casos em que o paciente está com um clínico-geral e, durante o atendimento, busca a orientação remota de um especialista. Com o isolamento social, o Congresso Nacional liberou a telemedicina para consultas diretas entre paciente e médico. Operadoras de planos de saúde, laboratórios e clínicas correram para oferecer a modalidade. De lá para cá, pelo menos 1,7 milhão de atendimentos já foram realizados, de acordo com dados compilados pela EXAME.

O movimento pode modificar o mercado de forma permanente. Inicialmente usado para orientar pacientes com suspeita de contaminação pela covid-19, o recurso logo se estendeu a consultas agendadas e atendimentos de urgência. Pacientes que antes procurariam um pronto-socorro por causa de uma gripe passaram a pensar duas vezes antes de sair de casa. Os dados das operadoras de saúde mostram o que os médicos já sabiam: boa parte dos pacientes que buscam um pronto-socorro não precisaria estar ali. Esse costume brasileiro é um dos grandes ralos de recursos do sistema que podem ser atacados com as novas tecnologias. Com 3,6 milhões de beneficiários, a Amil, por exemplo, desenvolveu uma plataforma própria de atendimento remoto. Até agora, realizou 380.000 atendimentos via telemedicina. Dos pacientes atendidos em emergência, só 2% procuraram um pronto-socorro até sete dias após o atendimento remoto. Os outros 98% tiveram sua situação resolvida no próprio atendimento remoto ou foram orientados a marcar uma consulta com especialista, presencial ou à distância. “A telemedicina é uma ferramenta de direcionamento do paciente para o local adequado. Com isso, o pronto-socorro será usado por quem realmente precisar”, afirma Fernando Pedro, diretor clínico da Amil.

Drive-thru para exames da Prevent Senior: esforço para incorporar práticas modernas | Divulgação (Wikipedia / Pbendito)

O fluxo de atendimento pode ser otimizado ainda mais cedo para evitar a piora de doenças crônicas, o que significa outra importante redução de despesas. Um relatório da Aon mostra que, na América Latina, as doenças que mais geram custos médicos são, em ordem de importância, câncer, diabetes, doenças cardiovasculares e hipertensão. “Se o atendimento virtual for usado como apoio da atenção primária, o sistema se tornará mais sustentável e acessível”, afirma Paulo Jorge Cardoso, vice-presidente de saúde e benefícios da Aon. Com a mudança de comportamento permanecendo após a pandemia, a redução do número de atendimentos presenciais deverá ajudar a derrubar a inflação médica no país, medida pela Variação do Custo Médico-Hospitalar, um indicador que considera tanto o preço do serviço quanto a frequência de utilização. Em 2019, o índice foi de 15,9%, ante uma inflação geral de 4,3%. Em 2020, a expectativa era que ficasse perto dos 15%, segundo a consultoria de gestão de riscos Aon. Agora a projeção é que o indicador recue para cerca de 10% no Brasil, o mais baixo dos últimos cinco anos, também por causa do adiamento de ­cirurgias eletivas em 2020.

Na operadora Prevent Senior, que já fez mais de 500.000 atendimentos via telemedicina em 2020, a modalidade que mais ganhou força com o uso da tecnologia foi o chamado telemonitoramento, focado em doenças crônicas e no pós-operatório. São atendimentos com duração média de 15 minutos para verificar se o paciente está tomando a medicação correta ou checar a situação de doenças como a diabetes. “O monitoramento aumenta os pontos de contato com o paciente e ajuda a reduzir as reinternações, descobrindo problemas precocemente”, afirma o diretor médico da Prevent Senior, Pedro Benedito Batista Junior. A operadora, voltada para o público idoso, também passou a oferecer outras facilidades, como os exames via ­drive-thru com hora marcada.

Atendimento por telemedicina do Einstein na Amazônia: parceria com o setor público | Divulgação (Wikimedia Commons)

A disseminação da telemedi­cina também encurta as distân­cias. O programa de telemedi­ci­na do hospital paulistano Albert Einstein já realizou mais de 270.000 atendimentos desde 2012 — cerca de 100.000 somente neste ano. No início do mês, o hospital ampliou sua parceria com o Ministério da Saúde na Região Norte para levar atendimento remoto a comunidades indígenas do distrito de Iauaretê, no Alto Rio Negro, Amazonas. Estão incluídas especialidades como cardiologia e psiquiatria. Outro acordo com o governo possibilita que 20.000 médicos e enfermeiros do Sistema Único de Saúde atendam remotamente com a plataforma do hospital. “A ferramenta nos ajuda a levar saúde para re­giões distantes e aumentar o número de pacientes atendidos”, afirma Sidney ­Klaj­ner, presidente da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein. A possibilidade de ampliar o atendimento de médicos especialistas tem incentivado mudanças na operadora de saúde Hapvida, forte no Norte e no Nordeste. A companhia começou a contratar equipes de especialistas como reumatologista e endocrinologista para atender remotamente beneficiários em todo o país. “Consigo negociar com essas equipes com mais escala, o que melhora o preço, gerando eficiência”, diz Bruno Cals, diretor financeiro da Hapvida. Desde o início da pandemia do coronavírus, a operadora já realizou aproximadamente 60.000 atendimentos à distância.

Para além da consulta por vídeo, há muito espa­ço para a expansão do uso da tecnologia nessa área. “A saúde é um dos últimos setores a passar por uma transformação tecnológica. Quando um consumidor pensa em mobilidade, alimentação ou serviços bancários, já olha para o celular. Na saúde, isso ainda não acontece”, afirma Carlos Marinelli, presidente do Fleury. O laboratório possui uma plataforma própria de telemedicina e desenvolve um sistema para agregar serviços de saúde e reunir as informações de exames e consultas do usuário em um prontuário eletrônico. Até agora já investiu 50 milhões de reais na ideia.

O mercado nos Estados Unidos: 46% dos americanos agora usam a telemedicina | Alexi Rosenfeld/Getty Images (Divulgação/ Prefeitura de Duque de Caxias)

A necessidade de melhorar o uso dos recursos acabou acelerando, também, uma discussão que já rendeu grandes brigas no sistema: a remuneração dos prestadores de serviço pelos planos de saúde. O tema é especialmente importante para as operadoras que não contam com hospitais e clínicas próprios, utilizando apenas redes credenciadas. É o caso da Bradesco Saúde, que tem discutido com parceiros a adoção de pacotes pré-negociados de serviços para ter mais previsibilidade de custos. O modelo fee for service, em que a operadora paga por tudo o que é consumido no hospital, está ficando para trás. “Boa parte dos procedimentos nos hospitais tem desfecho previsível. Então, o custo também pode ser. Essa discussão tende a crescer ainda mais no pós-pandemia, com maior pressão sobre os custos vindo inclusive das empresas clientes”, afirma Thaís Jorge, diretora da Bradesco Saúde. Na SulAmérica, quase 40% dos procedimentos já são remunerados via modelos alternativos, em que o prestador de serviço divide a responsabilidade do resultado financeiro com a operadora. Adicionalmente à mudança na forma de remuneração, a operadora vem investindo em prevenção com a ajuda da tecnologia. “Começamos a estabelecer a jornada de cuidado dos beneficiários, a pegá-los pela mão e a ajudá-los a fazer uso do sistema da forma correta”, afirma Raquel Giglio, vice-presidente de saúde e odontologia da SulAmérica.

Os avanços proporcionados pela tecnologia chegam em um momento financeiramente sui generis para as operadoras de planos de saúde. Neste ano, com as cirurgias adiadas e os beneficiários saindo menos de casa, os planos registraram queda na sinistralidade e têm apresentado bons resultados em meio à pandemia. O lucro da SulAmérica disparou 91% no segundo trimestre deste ano em relação ao mesmo perío­do do ano passado, para 498 milhões de reais. Mas o efeito da pandemia nas contas das operadoras daqui para a frente é difícil de estimar. “Esse nível de sinistro não é normal e a tendência é que volte aos patamares registrados antes da crise. O que preocupa no longo prazo é como a alta do desemprego vai afetar o número de beneficiários”, afirma Gabriel Machado, analista da corretora Necton. O mercado de planos de saúde é baseado principalmente nos contratos empresariais, que correspondem a 67% dos beneficiários das operadoras. Com o desemprego em alta, a debandada já começou. Dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar revelam que os planos de saúde perderam 283.000 beneficiários entre março e maio deste ano. Uma projeção feita pela consultoria Deloitte­ mostra que o setor poderá perder de 5,7% a 13,5% de seus 47 milhões de clientes com a alta do desemprego.

Guilherme Weigert, presidente da Conexa: crescimento exponencial na crise | André Valentim (Shaun Botterill/Getty Images)

Sem vínculo formal com uma empresa, o brasileiro, que passou a se interessar mais pela saúde suplementar devido à ameaça imposta pela pandemia, enfrenta grande dificuldade para conseguir uma cobertura. Boa parte das operadoras deixou de oferecer planos individuais porque os reajustes periódicos são limitados pela Agência Nacional de Saúde. “Vejo operadoras entrando em contato com o funcionário que foi desligado para oferecer uma alternativa de plano. A palavra de ordem atualmente é ‘retenção de clientes’, muito mais do que ‘aquisição’ ”, afirma Luis Fernando Joaquim, sócio da Deloitte para a área de saúde. Em sérias dificuldades com a crise, as empresas também têm precisado negociar reajustes menores para permanecer com suas operadoras. “No ano passado, os reajustes ficaram na casa dos 20%. Neste ano, estamos negociando até menos de 10% para algumas empresas”, afirma Luis Alexandre Chicani, presidente do conselho da gestora de benefícios BenCorp. A covid-19 aumentou o peso dos custos de saúde para as empresas. Uma pesquisa da Aliança pela Saúde Populacional em conjunto com a Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH), realizada entre janeiro e março deste ano, mostrou que 40% das empresas ouvidas tiveram um aumento no plano de saúde entre 10% e mais de 20% em 2019. Para tentar aliviar um pouco o orçamento, as empresas dividem os custos com os funcionários por meio da coparticipação no custeio do plano ­— 61,9% disseram recorrer a esse recurso, enquanto 42,1% declararam ter programas de gestão de saúde. A solução passa por estimular os colaboradores a se cuidarem antes que uma doença se apresente, algo que a tecnologia deve ajudar bastante a partir de agora. “As empresas precisam trazer para si a responsabilidade pela prevenção”, afirma Paulo Sardinha, presidente da diretoria executiva da ABRH. Um levantamento da Mercer March Benefícios mostrou que a telemedicina foi incluída por 54% das empresas que alteraram os benefícios de saúde para os funcionários durante a pandemia.

Hospital de campanha em Manaus: a pandemia obriga os gestores a rever processos | Sandro Pereira/Fotoarena (Wikimedia Commons)

O Grupo Boticário, de cosméticos, iniciou há dois anos uma mudança com o objetivo de gerir internamente a saúde de seus funcionários. Criou campanhas de prevenção ao câncer e ampliou o programa de acompanhamento para grávidas depois de perceber que nas localidades em que o programa existia eram menores os índices de internação na UTI neonatal. Com a chegada da pandemia, a implementação da telemedicina foi acelerada. “A sensibilização para a gestão da saúde vem pelo amor ou pela dor. O caminho do amor é entender que com saúde o funcionário trabalha melhor. Pela dor é a conta cara do plano de saúde, com elevados reajustes, porque não foi feita a gestão daquele sinistro”, afirma Renata Simioni, gerente de saúde corporativa do Boticário.

Protesto no Rio de Janeiro: o aumento no desemprego é um desafio para o setor | Syllas Brito/Futura Press (Wikimedia Commons)

Ainda não se sabe como vão ficar as regras para a telemedicina quando a pandemia acabar. A regra em vigor até o início deste ano é de uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) de 2002. No ano passado, o CFM emitiu uma nova resolução sobre o tema. Mas a regra gerou tanta discussão que acabou sendo revogada. O principal ponto de discórdia era a possibilidade de realização da primeira consulta com um paciente via telemedicina. Quem é contra a liberação dessas consultas argumenta que a avaliação do paciente fica prejudicada sem o exame físico. Também existe a preocupação de que a liberação leve a serviços em que o atendimento remoto seja compulsório, e não mais uma opção do paciente. O CFM trabalha em uma nova resolução, que deverá sair até o final deste ano e entrar em vigor quando a pandemia acabar. “A telemedicina passou a fazer parte do cotidiano, mas tem de ser feita com segurança. A responsabilidade do médico não muda, e a relação de confiança com o paciente precisa ser preservada”, afirma Donizetti Dimer Giamberardino Filho, vice-presidente do CFM. A telemedicina tem potencial para ampliar a capacidade de atendimento do sistema de saúde brasileiro, sem a necessidade de abrir hospitais, na avaliação do professor Chao Lung Wen, professor responsável pela área de telemedicina da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. “Isso é humanização, porque significa ampliar o acesso à saúde”, diz Wen. “A telemedicina, se realizada de forma responsável, poderá ajudar na quebra de paradigmas, para que a medicina seja vista não só como o cuidado das doenças mas também como uma forma de evitar que a sociedade fique doente.” A covid-19 deixaria, assim, uma boa lição ao Brasil.

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