Fórum da Liberdade, em Porto Alegre: nos últimos anos, houve um avanço do movimento liberal no Brasil (Tiago Trindade/Divulgação)
Luciano Pádua
Publicado em 28 de abril de 2017 às 05h55.
Última atualização em 13 de janeiro de 2023 às 15h12.
São Paulo – Uma multidão enfileirada lotava a área externa do auditório da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, onde ocorreria a abertura do 30o Fórum da Liberdade, na tarde de 10 de abril. “Ele já chegou? Vai ser o primeiro a falar?”, eram perguntas de quem aguardava ansiosamente o início da palestra do prefeito de São Paulo, João Doria. Quando ele finalmente chegou, uma massa de curiosos, jornalistas e políticos tentou se aproximar e houve confusão no caminho de 4 metros entre a escada rolante que dá acesso ao andar do auditório e a porta.
Acomodado sob os holofotes, Doria foi ovacionado do começo ao fim de sua apresentação. Em 30 minutos, foi interrompido sete vezes pela plateia, que insistia em aplaudi-lo e chamá-lo de “mito”. Ao final, jovens se aproximavam de Doria, parabenizavam-no e queriam tirar fotografia com o prefeito-celebridade. Nas 11 palestras que se seguiram até o fim do dia seguinte, com a presença de personalidades como o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, o economista Eduardo Giannetti e o professor da Universidade de Chicago James Robinson, autor do livro Por Que as Nações Fracassam, o auditório permaneceu lotado. O clima de entusiasmo parecia o ápice de um movimento que vem crescendo pouco a pouco há dez anos: a consolidação de uma nova fase do pensamento liberal no país. O evento bateu seu recorde de público em 30 anos: 5 700 pessoas, ante 3 500 na edição de 2016 — e mais de 30 000 espectadores na transmissão online.
Há menos de uma década, os liberais brasileiros brincavam que, juntos, cabiam todos dentro de uma Kombi. É comum veteranos perguntarem uns aos outros: “Você é do tempo da Kombi, né?” O sentimento é que o movimento liberal se prepara para uma nova fase. Nos anos 80, os pioneiros dedicaram-se a introduzir o pensamento no país pela tradução de obras. Desde 2007, 26 centros de estudos liberais surgiram país afora. Eles vendem livros, disseminam uma quantidade enorme de textos nas redes sociais e buscam formar jovens líderes para o futuro.
O senso de oportunidade explica parte da animação: o momento é ótimo para que os liberais aumentem a influência no debate público. Hoje, o fracasso de políticas implementadas pelo PT (sobretudo no governo da ex-presidente Dilma Rousseff), a escalada da corrupção revelada pela Operação Lava-Jato e o esgotamento fiscal dos governos municipais, estaduais e federal apontam para uma mudança na agenda econômica.
É nesse contexto que o prefeito João Doria, com propostas de privatização e melhoria do ambiente de negócios, é visto como uma chance de avanço do liberalismo econômico. “O cidadão quer liberdade para empreender, ganhar a vida e não ser achacado pelo Estado”, diz Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central. “As ideias liberais estão no ar à procura de alguém que as articule e transforme propostas em ações.”
Historicamente, os brasileiros nunca se encantaram com o liberalismo e sempre encontraram no Estado um esteio para suas necessidades e ansiedades. “O Brasil teve três fontes de pensamento que concorreram com o liberalismo no século 20: o patrimonialismo, de herança ibérica, o fascismo, que criou uma presença muito maior do que as pessoas imaginam, e o comunismo, que cresceu após a Segunda Guerra Mundial associado ao nacionalismo e ao desenvolvimentismo”, afirma o cientista político Bolívar Lamounier. “Nos três casos, houve um endeusamento do Estado.”
Nos anos 50, uma parcela maior da população começou a participar da política e cresceu uma direção antiliberal — a campanha pública “O petróleo é nosso”, em favor da estatização da exploração que resultou na Petrobras, é dessa época. “Não foi um movimento meramente popular”, diz o sociólogo Demétrio Magnoli. “Na América Latina e no Brasil, as elites sempre procuraram no Estado uma forma de realizar seus objetivos políticos ou econômicos.”
A doutrina nacional-desenvolvimentista se firmou no mesmo período e ganhou força na intelectualidade do país. O golpe militar de 1964 tirou a esquerda da política e, de início, fez reformas liberais, conduzidas por nomes como o economista Roberto Campos. Numa fase seguinte, porém, os próprios militares enveredaram por maior intervenção do Estado na economia e promoveram o capitalismo de laços — o protecionismo na área de informática foi uma das políticas mais nefastas adotadas por eles.
Enquanto a direita mão de ferro estava no poder, a esquerda manteve seu domínio na intelectualidade — algo fundamental, na definição do filósofo marxista italiano Antonio Gramsci, para a conquista do poder. Desde o regime militar, ser “de direita” ou liberal tornou-se praticamente sinônimo de autoritarismo e representação do que havia de mais retrógrado. A hegemonia cultural da esquerda foi preservada nas décadas seguintes, mesmo com a redemocratização.
Houve um ensaio de recuperação do prestígio do liberalismo com a vitória eleitoral de Fernando Collor de Mello em 1989 e a implementação de uma agenda de reformas para modernizar o governo. Mas o fracasso de suas ações econômicas e seus escândalos de corrupção, que culminaram no impeachment, botaram em descrédito a cartilha liberal.
Nos últimos anos, ex-poen-tes do pensamento de esquerda, como o cientista político André Singer e o filósofo Vladimir Safatle, ambos da Universidade de São Paulo, têm debatido a quebra da hegemonia esquerdista na cultura. A derrocada do PT — seja nas eleições de 2016, quando perdeu 60% das prefeituras que tinha, seja na desmoralização de suas lideranças — abre espaço para uma oxigenação. “É natural que o pêndulo das políticas econômicas volte na direção pró-mercado. Esse movimento não é transformador, mas um processo gradual de liberalização”, afirma Thomas Trebat, diretor do Centro Global da universidade americana Colúmbia no Brasil.
Em 2015 e 2016, os movimentos ligados à direita ganharam impulso quando o sentimento de falência do governo de Dilma levou milhares de pessoas às ruas em todo o Brasil. Surgiram desses protestos, cujas pautas principais eram a defesa da Operação Lava-Jato e o impedimento da petista, grupos com capacidade de mobilização, como o Movimento Brasil Livre, parte de um fenômeno que eclodiu nas redes sociais.
Um levantamento da empresa de análise de redes sociais Social Bakers realizado com exclusividade para EXAME- separou as dez principais páginas no Facebook — principal ambiente de articulação política hoje — de movimentos ligados à direita e à esquerda e comparou seu crescimento de março de 2015 a março de 2017. Ambos os campos cresceram, mas as páginas de direita saíram de 7 milhões para 18 milhões de seguidores, enquanto as de esquerda foram da faixa dos 5 milhões para 11 milhões.
Mas o cidadão comum se encanta por essa nova direita? O brasileiro médio não está muito interessado em ideias abstratas. Uma pesquisa recente da Fundação Perseu Abramo, ligada ao Partido dos Trabalhadores, chocou incautos ao mostrar que parte dos moradores da periferia de São Paulo tem preferências de cunho liberal, como o reconhecimento do esforço pessoal como indutor do sucesso, a vontade de empreender e a identificação do Estado como maior inimigo.
Antes de ser liberais, essas preferências refletem um bom senso. A produção acadêmica da economia comportamental mostra que há relação entre o aumento de renda e as posições políticas das pessoas. Em 2014, o pesquisador Nattavudh Powdthavee, da Universidade Warwick, no Reino Unido, analisou o comportamento de 9 000 pessoas que haviam ganhado prêmios na loteria de 1996 a 2009. A ideia era isolar o aumento de renda para ver como isso os influenciaria. Ele descobriu que, quanto maior a premiação recebida, mais a pessoa se posicionava à direita no espectro político — no caso, em direção ao Partido Conservador inglês.
Neste ano, Powdthavee repetiu a metodologia para entender como as pessoas se comportam em relação aos serviços de saúde. O resultado está em linha com os achados anteriores: quanto maior o prêmio recebido, maior a predisposição das pessoas em utilizar o serviço privado de saúde. “Nosso estudo sugere que as atitudes políticas dos indivíduos nem sempre são motivadas por profundas reflexões”, diz Powdthavee.
Seria um exagero dizer que os brasileiros se transformaram em ferrenhos liberais. Mas, com um aumento da renda anual per capita de 9 100 para 15 700 dólares em poder de paridade de compra, de 2000 a 2015, segundo dados do Fundo Monetário Internacional, é natural que o comportamento da população tenha mudado. “O que apareceu em nossa pesquisa é uma crítica ao funcionamento do Estado, mas não significa que a periferia seja necessariamente liberal. São coisas diferentes”, diz Marcio Pochmann, presidente da Fundação Perseu Abramo.
Na prática, a discussão ideológica fica restrita a um estrato da população com maior renda e escolaridade. “O pêndulo da inclinação da política econômica aponta para a direita. Mas o brasileiro não se apaixonou pelo liberalismo”, afirma Sérgio Lazzarini, professor na escola de negócios Insper, de São Paulo. A agenda econômica liberal terá de provar ser bem-sucedida, como foi durante a execução do Plano Real, por exemplo, para ganhar votos nas urnas.
O ponto é que hoje há espaço para discutir ideias liberais. Uma pesquisa do instituto Ideia Inteligência, encomendada por EXAME, que entrevistou 5 000 pessoas em 38 cidades, revela que 56% dos brasileiros acreditam que o que faz o país crescer é o esforço individual, e não as políticas de governo. Outros 64% acham que os serviços oferecidos por empresas privadas são melhores do que os mesmos serviços oferecidos pelo governo — ou pelo menos são iguais. Ao ser confrontados com duas questões, uma favorável e outra contrária à privatização, 54% escolheram a opção que permitia o repasse de serviços do governo à iniciativa privada.
Apesar desses resultados, a percepção popular acolhe visões contraditórias: 68% dos entrevistados preferem ser funcionários públicos em vez de ter um negócio próprio — talvez porque a ideia de estabilidade no trabalho seja tentadora em tempos de alto desemprego e crise econômica. “As pessoas admitem que o serviço privado é melhor do que o público. Essa é a janela de comunicação para debater o tema”, diz Mauricio Moura, presidente do Ideia Inteligência. “Quais lideranças ou partidos conseguirão traduzir isso para um discurso ou uma atitude?”
Há alguns candidatos tentando capturar esse momento. No Fórum da Liberdade, uma turba animada de jovens transita pelo local decorado com fotos dos economistas austríacos vencedores do Prêmio Nobel Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. Um estande vende camisetas com temática liberal. Uma das estampas mostra um esqueleto sentado, com um balão de pensamento com os dizeres: “Esperando o comunismo dar certo”. Esse é o caldo de cultura criado ali. O atual pioneiro do movimento no Brasil pode ser considerado o Instituto de Estudos Empresariais (IEE), fundado em 1984.
O IEE pregou no deserto por mais de 20 anos. A mudança de cenário pode ser exemplificada pela criação, no ano passado, da Rede Liberdade, que reúne 29 instituições em 12 estados brasileiros — 26 delas surgidas nos últimos dez anos. Um exemplo é o Instituto Mises, um centro de estudos fundado em 2008 que promove ideias liberais e já editou 61 livros, com 100 000 exemplares vendidos e 1 milhão de downloads gratuitos. “Estamos vivendo uma reação liberal, ocupando um vácuo deixado pela esquerda”, diz Helio Beltrão, fundador do Mises, entre muitos pedidos de foto com jovens que o reconheciam. “As pessoas estão mais sujeitas a recalibrar sua visão de mundo. Estamos oferecendo outra solução.”
Na esteira do IEE, outros grupos surgiram, como o Instituto de Formação de Líderes (IFL), nascido em São Paulo, já espalhado por quatro estados e em via de se instalar em outros três. As universidades também são alvo da ofensiva liberal. A organização americana Students for Liberty, presente em 110 países, chegou ao Brasil em 2012 e vem ampliando o quadro de integrantes: de seus quase 2 300 membros mundiais, mais de 1 500 são brasileiros. “Queremos educar, empoderar e desenvolver a próxima geração de líderes liberais”, diz Fernando Miranda, presidente do Students for Liberty.
Há dois novos partidos declaradamente liberais no país, o Novo e o PSL, que foi tomado recentemente pela corrente libertária Livres e vai assumir esse nome. Ambos são ainda nanicos: o PSL tem um deputado federal e o Novo não tem nenhum. Mas ambos mostram força crescente entre os jovens. O Novo é, atrás do PSDB, o partido com o maior número de fãs no Facebook — já são 1,3 milhão —, e o Livres vem despontando. Um dos esforços é para se desvencilhar da associação com o deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), ícone de uma direita ligada ao autoritarismo. “Encampamos questões de comportamento, como a legalização da maconha”, diz Paulo Gontijo, presidente do Livres no Rio de Janeiro. “Queremos oferecer soluções liberais nas políticas públicas.”
Os liberais em ascensão formam um microcosmo político, mas a discussão de fundo trata do balanço entre igualdade e liberdade de ação. “Para a esquerda, faltou o entendimento de que o sistema de mercado é uma descoberta humana com imensos defeitos, mas o único que pode conciliar a liberdade com a igualdade”, diz o ex-ministro da Fazenda Delfim Netto. Em abril, uma pesquisa da Universidade Yale mostrou que nem sempre a sociedade aponta numa única direção: nunca houve tanta simpatia à ideia de igualdade e, ao mesmo tempo, as pessoas acabariam optando por sociedades desiguais, caso pudessem escolher.
Segundo o mesmo estudo, o ponto central de aversão das pessoas é a injustiça. “No frigir dos ovos, as pessoas querem que o jogo seja justo ou, em outras palavras, que as oportunidades sejam iguais”, diz o economista Celso Toledo, diretor da consultoria LCA e colunista do aplicativo EXAME Hoje. No Brasil, os desejos da população parecem clamar por mais justiça no acesso a serviços públicos na hora de empreender e, assim, ser capaz de atingir a prosperidade. Quem melhor representar esses anseios conquistará cada vez mais corações e mentes.