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Empreendedores tentam domar a legislação

Quatro empreendedores contam como lidam com leis, normas e decretos que surgem quase todo dia no Brasil. E mostram como é difícil descobrir como cumpri-los corretamente

Fernanda Oliveira, da Vinos y Vinos : "Fui tantas vezes à Receita que a atendente sabe meu RG de cor" (Daniela Toviansky)

Fernanda Oliveira, da Vinos y Vinos : "Fui tantas vezes à Receita que a atendente sabe meu RG de cor" (Daniela Toviansky)

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Da Redação

Publicado em 12 de janeiro de 2012 às 05h00.

Diz um antigo ditado, dos tempos do Império Romano, que a lei é dura, mas é a lei — uma forma de dizer que as regras precisam ser cumpridas, por mais difíceis que sejam. Para os empreendedores no Brasil de hoje, seguir o ditado à risca costuma ser uma tarefa complicada não só pelo rigor da legislação.

Segundo um estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, para fazer negócios no país uma empresa se submete, em média, a mais de 3.500 normas diferentes — entre 2007 e 2012, o número de leis, decretos, portarias, instruções normativas e outras formas de regulamentação cresceu cerca de 10%.

"O volume é alto, e há muitas normas conflitantes", diz o consultor Cid Pirondi, especializado em contabilidade de pequenas e médias empresas. "Na maioria das vezes, é dificílimo encontrar autoridades que expliquem como cumpri-las corretamente." É o que descobriram os quatro empreendedores  retratados nas próximas páginas.

Suas histórias mostram como é a árdua tarefa de se adaptar às regras que não param de surgir, além da dificuldade de obter informações para fazer as coisas do jeito certo, evitando o risco de arcar com multas e outras penalidades. Várias exigências parecem desprovidas de lógica. "Por que exigir a mesma informação em três formulários diferentes?", pergunta Luciana Tegon, de 41 anos, dona da empresa de softwares Elancers, de São Paulo. "Deveria ser tudo mais simples, mas parece que as mudanças vêm sempre para complicar."


Mesmos impostos, mais formulários

A empreendedora Luciana Tegon, de 41 anos, gosta de se sentir desafiada a solucionar quebra-cabeças tecnológicos propostos pelos clientes de sua empresa, a fabricante de softwares Elancers, de São Paulo. Seu principal negócio é fazer programas usados por companhias como Toyota, General Motors e TAM para selecionar currículos de candidatos a emprego — com isso, em 2011, a Elancers faturou 5 milhões de reais.

"De vez em quando, alguém nos pede uma ferramenta de recrutamento diferente, quase sempre com pouco prazo para entregar", diz ela. "Raramente atraso ou fico devendo a solução que o cliente pediu."

Em novembro, a eficiência da equipe da Elancers foi posta à prova. O obstáculo não veio de um pedido especial da clientela. Durante quase duas semanas, Luciana teve de mandar dois de seus 12 programadores parar tudo o que eles estavam fazendo só para adaptar os sistemas da Elancers a uma exigência da Receita Federal.

A partir de fevereiro de 2012, o Fisco começará a exigir de empresas que declaram imposto de renda com base no lucro real ou presumido — ou seja, todas as que faturam acima de 3,6 milhões de reais ao ano — que informem pela internet quanto recolhem de PIS e Cofins aos cofres do Estado em cada operação de compra e venda realizada.

O cumprimento da exigência demanda cálculos detalhados dos tributos pagos cada vez que a Elancers faturar um pedido dos clientes, além de informações sobre custos de produção e prestação de serviços. O trabalho demorou mais do que o esperado e, enquanto isso, alguns de seus clientes que haviam pedido alterações nas encomendas tiveram de esperar.


"Pela primeira vez em 11 anos — desde que a Elancers existe — tive de pedir mais prazo, o que me deixou chateada", afirma Luciana. "Meu pessoal teve muita dificuldade para compreender o que a Receita queria."

Hoje, empresas como a Elancers são obrigadas a declarar apenas o total dos valores recolhidos. Para chegar ao nível do detalhe exigido a partir de 2012, é necessário um conhecimento profundo da legislação tributária, algo que está distante de boa parte dos empreendedores.

Segundo uma pesquisa realizada em novembro pela consultoria tributária Fiscosoft, mais de 65% das empresas afirmaram não estar preparadas para cumprir as novas regras — foram ouvidas 570 companhias, das quais cerca da metade tem receitas de até 100 milhões de reais por ano. 

As dificuldades estão sendo causadas pela implantação do Sped, o sistema de escrituração pública em meio eletrônico desenvolvido pela Receita Federal para aumentar a transparência na contabilidade das empresas e, pelo menos em tese, livrá-las do interminável preenchimento de formulários e livros em papel.

"Na prática, não é o que está acontecendo", diz Luciana. "Além da trabalheira do Sped, as empresas precisarão continuar apresentando a documentação que já era exigida." No caso do PIS e Cofins, é necessário preencher dois formulários. "Acho incrível que, em vez de usar a tecnologia para poupar tempo, vamos ter mais trabalho para recolher os tributos", afirma Luciana.

Diante da dificuldade para um empreendedor compreender a legislação, era de esperar que, ao menos, houvesse apoio do Fisco para as mudanças na forma de declarar os impostos. Não foi isso o que Luciana constatou durante o trabalho de adaptação dos sistemas da Elancers.


"Não conheço ninguém que tenha conseguido conversar com a Receita sobre o assunto", diz ela. Para Jonathan José de Oliveira, supervisor da Receita Federal do novo sistema de declaração do PIS e Cofins, essa dificuldade não é tão grave. "A adaptação dos sistemas é superfácil", afirma Oliveira.

"Os empreendedores é que demoram a compreender o que precisa ser feito." Recentemente, a Receita Federal editou um guia, chamado Manual Prático do Sped, com 268 páginas de informação. "De prático, o manual não tem nada", diz Luciana. "Tentei lê-lo, mas cheguei à conclusão de que só sendo tributarista para compreender tudo aquilo direito."

O burocrata que advinha custos

Conhecer com clareza os custos e a rentabilidade de um negócio é um dos grandes desafios à boa gestão das pequenas e médias empresas. É preciso ter certeza de que não há perdas de eficiência durante a expansão, vasculhar planilhas em busca de custos invisíveis e monitorar a concorrência para saber se os preços são competitivos.

É por isso que o suíço Lukas Fischer, de 42 anos, ainda se espanta ao pensar que um grupo de burocratas que nunca foi à sua empresa, a fabricante de cápsulas e bebidas energéticas Smartcaps, de São Paulo, tenha certeza de que a lucratividade de seus produtos fica em torno de 40%.

Essa margem é aplicada no valor das notas fiscais que Fischer emite para calcular quanto de imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) — tributo estadual que incide sobre as vendas — a Smartcaps deve pagar. "Minhas margens são pelo menos 10% menores", diz Fischer. "Acabo pagando mais imposto do que deveria."

O caso da Smartcaps é um exemplo de uma das distorções do sistema tributário brasileiro. Seus produtos estão incluídos numa lista com centenas de itens em que o ICMS deixou de ser cobrado dos varejistas para ser recolhido dos fabricantes e distribuidores — prática que recebe o singular nome de substituição tributária.


Como não dá para saber de antemão por qual preço o varejo vai vender um produto, as secretarias de Fazenda estaduais mantêm grupos de técnicos cujo principal trabalho é fazer conjecturas sobre as margens de lucro que estariam sendo praticadas no mercado para uma extensa relação de produtos — entre os quais medicamentos, vassouras, cadernais (um tipo de roldana) e moitões (um conjunto de cadernais).

"Não vejo como a conta que eles fazem pode fechar", diz Fischer. "Nesse conceito, minha rentabilidade é a mesma de um grande concorrente, mesmo que a Smartcaps tenha uma escala de produção menor." Em 2011, a empresa faturou 5 milhões de reais. 

O recolhimento do ICMS dos fabricantes e distribuidores é um dos grandes causadores da trabalheira interminável para pagar impostos no Brasil. Segundo o estudo Paying Taxes, do Banco Mundial, pequenas e médias empresas brasileiras gastam 1 374 horas por ano para calcular, preencher formulários e recolher os tributos sobre o consumo, dos quais o ICMS é o principal representante.

De acordo com o estudo, esses tributos consomem mais da metade das 2.600 horas de trabalho gastas para se pagar todos os impostos cobrados pelo Fisco brasileiro. "A substituição tributária causa uma complicação enorme para os empreendedores", afirma Ismael Martinez, sócio da KSI Brasil, consultoria especializada em serviços de auditoria e contabilidade para pequenas e médias empresas.

"Por causa dessa forma de recolhimento, uma indústria precisa preencher formulários e pagar ICMS em cada estado onde tem clientes, o que multiplica o trabalho da contabilidade."


Em 2009, ao ter seus produtos incluídos na lista de substituição tributária, Fischer ficou temeroso com os riscos que poderia correr caso cometesse algum engano na hora de recolher os impostos. Por isso, ele e o sócio, o suíço Immo Paul, de 42 anos, começaram a se aprofundar no assunto.

Desde então, Paul já fez quatro cursos de especialização sobre tributos no Brasil. "Podíamos ter usado essa energia para coisas muito mais importantes, como planejar a expansão da empresa", diz Fischer.

O relógio que passou do ponto

Pode ser bastante complicado seguir regras no Brasil — principalmente porque nem sempre dá para ter certeza de quando uma norma já publicada começa a valer de verdade. Exemplo disso é o que aconteceu com o paulista Roberto Latini, de 47 anos. Ele é dono da Latini, uma consultoria que faturou 3,5 milhões de reais em 2011.

Seu negócio é ajudar os clientes — entre os quais se encontram grandes laboratórios farmacêuticos — a destrinchar regulamentações, portarias, instruções normativas e decretos emitidos por órgãos como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Ministério da Saúde e Ministério da Agricultura.

No final de 2009, Latini se exasperou ao saber que o Ministério do Trabalho havia publicado uma portaria exigindo a substituição dos relógios de ponto digitais, como o que ele tinha na empresa, por um novo modelo. "Poderia pegar mal se logo eu, que lido diariamente com burocracia, demorasse a me adaptar à nova norma", diz ele.


"Por isso me apressei em substituir o relógio de ponto que marca o expediente dos funcionários." Latini pagou 6.000 reais por um aparelho conforme o exigido pelo governo, equipado com uma impressora que emite um comprovante para os funcionários cada vez que eles entram ou saem da empresa. O relógio antigo, que estava em boas condições, foi descartado. "Devolvi ao fabricante, porque não tinha o que fazer com aquilo", diz. 

As novas normas deveriam começar a valer no final de 2009. Sua entrada em vigor foi adiada para setembro de 2011 depois que muitas empresas entraram na Justiça pedindo que a regra fosse suspensa. Um comitê reunindo empresários, sindicalistas e técnicos, criado pelo Ministério do Trabalho, debruçou-se sobre a questão. Acabou produzindo um novo adiamento, agora para fevereiro de 2012. “Pode ser que finalmente entre em vigor agora”, diz Latini. “Se a regra for suspensa, vou ficar com a sensação de ter jogado dinheiro fora.” 

Regras cuja aplicação acaba se tornando uma novela são fruto da falta de capricho na criação de novas leis no país, nem sempre levando em conta as dificuldades de adaptação. Estima-se que estejam tramitando no Congresso Nacional mais de 17 000 projetos de lei, medidas provisórias e requerimentos com algum impacto sobre a burocracia para as empresas. “A maioria só cria novas obrigações e aumenta a papelada que os empreendedores precisam preencher”, diz o advogado Alexandre Arnaut de Araújo. 

No caso do registrador de ponto eletrônico, quando — e se — a portaria estiver realmente em vigor, será obrigatório manter o equipamento na empresa mesmo que quebre e pare de funcionar. "Não será permitido descartar o aparelho. Pelo regulamento, ele será considerado parte do arquivo da empresa", diz Latini.

"Se minha empresa continuar crescendo, imagino quanto espaço terei de dedicar no futuro ao armazenamento de velhos relógios de ponto." Uma opção é substituir os aparelhos por livros de ponto à moda antiga, nos quais cada funcionário anota à caneta os horários de entrada e saída e assina ao lado — o que seria um retrocesso tecnológico, para dizer o mínimo.


Qual o objetivo da substituição dos equipamentos? Nenhum porta-voz do Ministério do Trabalho respondeu aos pedidos de entrevista feitos por Exame PME para esclarecer essa dúvida. Em abril de 2011, a secretária de Inspeção do ministério, Vera Albuquerque, tentou explicar a nova regra numa audiência pública realizada no Senado.

Um dos objetivos seria, segundo ela, permitir que os funcionários pudessem manter um comprovante sobre sua jornada de trabalho e, assim, evitar abusos dos empregadores. "Eu enfio os comprovantes no bolso, e só vou lembrar deles depois que a roupa já foi para a máquina de lavar", diz Leonardo Gomes Funari, de 23 anos, assistente de vendas da Latini. 

Os selos da discórdia

Em 2011, a mineira Fernanda Oliveira, de 32 anos, teve de arcar com mais um custo para sua empresa, a importadora de vinhos Vinos y Vinos, de São Paulo. A cada nova carga recebida, ela precisa contratar pelo menos dois funcionários temporários para abrir as caixas, retirar as garrafas, colar um selo fiscal no gargalo e embalar tudo novamente.

"Pelo menos uma vez por mês, recebo um contêiner com 16.000 garrafas", diz ela. "Leva pelo menos uma semana para dar conta desse serviço." Sem o selo, impresso pela Casa da Moeda e fornecido pela Receita Federal, Fernanda não pode vender seu vinho, ainda que tenha recolhido todos os impostos. Só com mão de obra extra, ela desembolsa, em média, 1.000 reais por mês. Em 2011, a Vinos y Vinos faturou 9,6 milhões de reais.

O custo adicional não é o único incômodo para Fernanda. Entre março e junho de 2011, ela calcula ter passado ao menos 5 horas diárias na agência da Receita Federal no bairro do Pacaembu, na zona oeste de São Paulo. Durante as visitas, Fernanda acompanhava o processo de cadastro necessário para que sua empresa pudesse adquirir os selos fiscais - um erro no preenchimento da documentação causou atrasos na papelada.

"De tanto ir lá, a recepcionista que me fornecia o crachá de visitante decorou o número do meu RG", diz ela. "Eu queria evitar que meus documentos ficassem esquecidos sobre uma mesa qualquer ou perdidos num escaninho da repartição."


Passados os três meses — durante os quais Fernanda dirigiu a empresa por meio de um laptop conectado a um modem 3G —, o cadastro saiu. Agora, os dissabores são outros. "Já houve ocasiões em que tive de manter a mercadoria parada no porto por mais de 15 dias por falta de selos na Receita Federal", diz ela. "Nesse meio tempo, perco vendas e atraso encomendas de clientes." 

A obrigação de selar as garrafas de vinho começou a ser discutida há cerca de três anos. Na época, grandes vinícolas viam o selo fiscal como uma forma de conter o comércio de vinho contrabandeado no país. A medida desagradou tanto os importadores quanto os donos de pequenas vinícolas — uma complicação adicional é se informar, em cada porto, se o responsável pela Receita quer que o selo seja colado dentro ou fora do porto.

"O selo está roubando nossa competitividade, porque as vinícolas maiores podem absorver melhor esse custo", afirma Celso Panceri, sócio da Panceri, vinícola de Tangará, no interior catarinense, que fatura cerca de 1,5 milhão de reais por ano. "E duvido que isso vá conter o contrabando, feito por empresas clandestinas, e não pelas importadoras."

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