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Gastem, japoneses, gastem

Nada pode estar mais distante da realidade brasileira do que os dilemas econômicos do Japão. Entretanto, aqui, como em tantos outros lugares, há muitas lições para o Brasil aprender. Essa talvez seja a única vantagem de errar tanto: toda observação do mundo ao redor se torna proveitosa. O governo japonês está longe de ser perfeito. […]

CONSUMIDORES JAPONESAS: o pacote de estímulo do primeiro ministro Shinzo Abe de 265 bi será analisado esta semana / Yuya Shino/ Reuters
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Da Redação

Publicado em 28 de maio de 2016 às 09h21.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 17h55.

Nada pode estar mais distante da realidade brasileira do que os dilemas econômicos do Japão. Entretanto, aqui, como em tantos outros lugares, há muitas lições para o Brasil aprender. Essa talvez seja a única vantagem de errar tanto: toda observação do mundo ao redor se torna proveitosa. O governo japonês está longe de ser perfeito. A promessa da campanha de 2012 do primeiro-ministro Shinzo Abe, de salvar o país da deflação que o atormenta há duas décadas, está se convertendo em estelionato eleitoral.

Mas, comparado com o ritual de sandices e de oportunidades perdidas seguido no Brasil, que dificulta até mesmo a abordagem racional de sua economia, o Japão tem procurado seguir os manuais com disciplina, digamos, japonesa. Daí que sua dificílima situação sirva de espelho do complexo quadro da economia mundial.

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É emblemático que o Japão seja a sede da reunião de cúpula do G-7 nesta semana. Suas angústias são, na essência, as mesmas das principais potências industriais do mundo. Diante do crescimento fraco, esses governos não podem lançar mão do recurso monetário clássico da redução de juros, que já chegaram ao piso — no caso do Japão, estão abaixo dele, negativos.

As ferramentas fiscais de estímulo à atividade, por meio dos gastos públicos ou da redução de impostos, também se esgotaram por causa do déficit e da dívida crescentes. No campo macroeconômico, a baixa demanda externa, resultante da desaceleração da China, e o consumo interno deprimido pelas incertezas causadas pelo desemprego e pela compressão dos salários parecem empurrar essas economias para um beco sem saída.

No primeiro trimestre deste ano, a economia japonesa até que surpreendeu positivamente ao crescer 0,4% em relação a igual período do ano anterior, quando o mercado esperava um incremento de apenas 0,1%. O índice foi puxado pelo consumo privado, pelas exportações e pelos gastos públicos. Nos três últimos meses de 2015, o PIB japonês encolheu 0,4% — o que, anualizado, representa 1,4% de contração. Daquela vez, a surpresa foi negativa: o mercado esperava redução de 1,2%. Depois de quatro anos de estímulos monetários, como parte do programa apelidado de Abenomics, os salários não cresceram o suficiente para incentivar o cauteloso consumidor japonês a ir às compras.

Crescimento baixo tem sido parte da rotina há várias décadas no Japão. De 1980 para cá, o PIB cresceu em média 0,48% ao ano. O índice mais alto foi 3,2% no segundo trimestre de 1990; e o mais baixo, -4%, no primeiro trimestre de 2009. Nesta década, os índices foram: -0,5% em 2011; 1,8% em 2012; 1,6% em 2013; -0,1% em 2014; e 0,4% em 2015. Nos últimos 20 anos, o problema tem sido associado à deflação. Assim como a inflação, a deflação se alimenta da inércia. O raciocínio é simples. Se as coisas vão ficar mais baratas daqui a um tempo, por que comprá-las agora? A compra do que não é de primeira necessidade vai sendo adiada indefinidamente.

Igual, mas ao contrário

Parece bizarro, para um país de história — e presente — inflacionário, mas, para entender os japoneses, basta inverter o sinal brasileiro: se as coisas vão ficar mais caras, é preciso comprá-las já. A demanda não diminui, a capacidade de produção não a acompanha devido a problemas estruturais, como juros altos — usados para conter a inflação —, encargos trabalhistas, carga tributária, problemas de infraestrutura etc., e os preços então sobem. No caso japonês, o adiamento da compra mantém a demanda baixa; e a capacidade de produção ociosa não justifica novos investimentos, mesmo com os juros negativos e com a injeção de dinheiro na economia pelo governo; com a agravante de que o imposto sobre as vendas está subindo.

A promessa de Abe de romper esse círculo vicioso e gerar uma inflação de 2% ao ano não está sendo cumprida. Em março, os preços ao consumidor tiveram a maior queda em três anos: 0,3%. A reação a isso é incrivelmente desproporcional e revela as imensas distorções e fatores econômicos que se retroalimentam numa bola de neve: o consumo doméstico, quando anualizado, diminuiu 5,3%, o índice mais alto em um ano. No último trimestre de 2015, a queda já havia sido de 3,3%.

Um pouco como quando já não temos assunto, o governo japonês falou do tempo ao justificar esse desempenho sofrível: o inverno foi relativamente quente e inibiu o consumo associado ao frio, como aquecedores. “Os fundamentos econômicos estão bons”, afirmou Yoshihide Suga, ministro-chefe da Casa Civil. “Esperamos uma recuperação firme do ambiente de negócios.”

Analistas do JP Morgan são menos otimistas. “Embora estejamos inclinados a atribuir a fragilidade do gasto do consumidor ao inverno mais ameno do que o usual, essa fragilidade é mais ampla do que a venda de aparelhos relacionados à estação”, afirma um relatório do banco. Harumi Taguchi, economista-chefe da consultoria IHS Global Insight em Tóquio, concorda que o tempo não ajudou e prevê crescimento para este trimestre, porém modesto. Ela observa que o consumo de carros e outros bens duráveis não vinculados ao clima também têm um desempenho fraco. Segundo a economista, dois fatores inibem o consumo: o baixo crescimento da renda e a perspectiva de aumento no imposto sobre as vendas.

Para conter um endividamento que já alcança 237% do PIB, Abe adotou uma política de aumento progressivo desse imposto. Em abril de 2014, ele subiu de 5% para 8%. A elevação inibiu o consumo e a atividade, empurrando o país para dois trimestres de crescimento negativo em 2014. O plano era aumentar o imposto novamente, de 8% para 10%, em outubro do ano passado, mas, diante do impacto negativo, Abe adiou a medida para abril do ano que vem, a menos que haja uma crise financeira como a de 2008 ou uma catástrofe natural.

Com as dificuldades de reerguer a economia, há dúvidas sobre se o governo insistirá na ideia, mas o ministro das Finanças, Taro Aso, confirmou a intenção na quarta-feira 25. “A elevação do imposto sobre as vendas é um fator muito importante na manutenção da confiança nas finanças do Japão”, declarou ele no Parlamento. Aso disse ter estabelecido esse compromisso perante os ministros das Finanças e presidentes dos bancos centrais do G-7 no dia 18, numa reunião preparatória para a cúpula.

Na tentativa de estimular a economia, o Japão viu seu déficit fiscal explodir. Em 2015, o rombo foi de 6% do PIB. Para conter essa sangria, o governo freou os investimentos públicos no último trimestre do ano passado. Anualizada, a contração foi de 10,3%. Em contrapartida, os investimentos privados tiveram aumento anualizado de 5,7%.

A sra. Watanabe

A trajetória japonesa é parecida com a de outras economias avançadas. A dívida pública nos Estados Unidos cresceu de 64% do PIB, em 2008, para 104%, no ano passado; na zona do euro, o índice subiu de 66% para 93% — extrapolando os parâmetros do Tratado de Maastricht, que estabelece como meta uma relação dívida-PIB de no máximo 60%, assim como um déficit de 3%; no Japão, o endividamento saltou de 176% para 237%.

Parte desses recursos foi gasta recomprando títulos do governo para injetar dinheiro na economia. Essas operações, conhecidas pela sigla em inglês QE (de quantitative easing), têm custado de 20% a 25% do PIB dos países ricos. O Banco do Japão (BOJ, o banco central japonês) acumula hoje títulos num valor correspondente a 77% do PIB. Desde a implantação da Abenomics, no fim de 2012, a base monetária tem aumentado a um ritmo de 80 trilhões de ienes (725 bilhões de dólares) ao ano, cerca de 17% do PIB. É a maior base monetária do mundo desenvolvido.

No dia 29 de janeiro, o BOJ surpreendeu o mercado rebaixando a taxa básica de juro de 0% para -0,1%. Significa que os bancos — e, portanto, os clientes — passaram a pagar para manter o dinheiro de seus correntistas e investidores. O Banco Central Europeu mantém uma taxa básica de -0,3%. Dinamarca, Suécia e Suíça também trabalham com juros negativos. A ideia é estimular o consumo e as atividades produtivas. Entretanto, no caso do Japão, o dinheiro excedente, tanto o injetado pelo governo por meio da recompra de títulos quanto o gerado pelo juro negativo, tem sido canalizado para os mercados imobiliário e financeiro.

A questão é: por que a proverbial Sra. Watanabe, o arquétipo da dona de casa japonesa, teima em poupar em vez de consumir, mesmo com tantos estímulos? Além de uma cultura reforçada por décadas de juros baixos e deflação, essa atitude tem uma racionalidade bastante atual. Se o iene pode ser emprestado a juro baixo, o que faz a esperta Sra. Watanabe? Investe seu dinheirinho em moedas que se valorizam, atreladas a economias que crescem. Uma das preferidas é o dólar australiano.

Diante dessa dinâmica, os economistas argumentam que são necessárias reformas estruturais para tirar o Japão do atoleiro, entre elas a flexibilização do mercado de trabalho, a abertura para o investimento estrangeiro e a retirada de proteções que evitam a falência de empresas não competitivas e insolventes. São medidas que esbarram, tanto quanto os hábitos da Sra. Watanabe, em barreiras culturais e psicológicas, que se traduzem em resistência política.

Abe tem procurado enfrentar essas resistências, ainda que com menos agressividade do que seu discurso de campanha parecia indicar. O primeiro resultado da Abenomics foi a introdução, no ano passado, de um código de governança corporativo. As medidas envolvem a coibição das ações cruzadas, por meio das quais as empresas protegem sua rentabilidade comprando ações de outras empresas. Essa prática gera duplicidade nos balanços, diminuindo a transparência.

Além do código de governança, a imposição do juro negativo também facilitou que os bancos e as empresas não financeiras pudessem vender suas ações cruzadas para investidores em busca de novas opções. Esse movimento incluiu a recompra das próprias ações pelas empresas. Do corte do juro, em 29 de janeiro, até o dia 19 de maio, 282 empresas haviam anunciado a recompra de suas ações, totalizando 35,7 bilhões de dólares.

Segundo cálculos da Goldman Sachs, as recompras atingem 1,9%, ante uma média de 1,5% nos últimos dez anos. “O crescimento das recompras em 2016 é muito incomum, porque as empresas normalmente não recompram mais ações em um mercado em queda ou quando os rendimentos estão baixos”, observa Kathy Matsui, estrategista-chefe da Goldman Sachs em Tóquio. “Muito dessa tendência se deve às reformas na governança.”

Não é só no Brasil que “reformas” é uma palavra-chave. Nenhum motivo para um haraquiri, mas o Japão tem muito a fazer para superar seu drama angustiante.

(Lourival Sant’Anna)

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