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É necessário investir muito na avaliação da necessidade e no detalhamento e planejamento dos projetos (Hispanolistic/Getty Images)
Redação Exame
Publicado em 31 de janeiro de 2024 às 14h04.
Por Rafael Kelman*
O livro How Big Things Get Done, do pesquisador Bent Flyvbjerg e o jornalista Dan Gardner, resume brilhantemente as conclusões de uma pesquisa sobre as razões para o insucesso de projetos de diferentes portes e complexidades. As conclusões derivam de uma pormenorizada análise de uma base de dados elaborada há décadas por Flyvbjerg, com mais de 16 mil projetos.
A principal estatística impressiona: somente 0,5% dos projetos são construídos no prazo, dentro do orçamento e com o benefício imaginado. Em alguns casos, os desvios entre previsão e realidade são brutais, destruindo empresas ou seriamente impactando as finanças públicas. Para ilustrar, o telescópio da NASA James Webb acabou custando USD 8,8 bilhões, ou 450% acima do previsto.
Os autores argumentam que apesar das notórias evidências estatísticas, aprende-se muito pouco com os próprios erros e menos ainda com os erros dos outros. Por isso, resolveram destilar os aprendizados com tantos fracassos numa espécie de “manual de boas práticas” para o desenvolvimento de projetos, que são aplicados nos mais diversos contextos: por empresas (como construtoras), poder público ou até indivíduos quando resolvem reformar a casa. Na lista de boas práticas, há recomendações que merecem destaque.
Primeiro, investir muito na avaliação da necessidade e no detalhamento e planejamento dos projetos. Esse custo é nada comparado aos desvios durante a construção. Segundo, a construção deve ser a mais rápida possível porque as condições que levaram à decisão de investimento podem mudar com atrasos, que frequentemente decorrem de projetos mal estudados. Os autores sintetizaram bem esses dois pontos com a frase "Think Slow, Act Fast", uma brincadeira com o livro do Daniel Kahneman “Thinking, Fast and Slow”.
Segundo, avaliar se o projeto faz ou não sentido, mesmo que realizado com perfeição. Como diz Elon Musk, “possivelmente o erro mais comum de um engenheiro inteligente é otimizar uma coisa que não deveria existir”. A abordagem de Musk, chamada de “first principles”, consiste em reduzir a situação a uma verdade básica e fundamental (física). A partir daí, estudar em detalhe o papel de cada componente do artefato que se pretende conceber para atingir uma determinada funcionalidade, sem apego à forma “tradicional” como essa funcionalidade vem sendo prestada. Para ilustrar: quando estimou o custo de construção de um foguete da SpaceX, Musk não fez um benchmark de mercado nem se baseou em “bom senso”. Ao invés disso, sua equipe analisou em detalhe as partes necessárias de um foguete, depois os preços das matérias-primas necessárias para construí-las e como poderiam ser forjadas. Descobriram que seria possível construir um foguete gastando uma fração do custo vigente. O mesmo procedimento permite projetar ou avaliar ganhos de escala. Se faço dez foguetes, para quanto o custo unitário cai? E se fizer 100 ou 1000? Mas não só isso: também permite avaliar restrições na disponibilidade de matéria prima, o que pode condicionar a solução escolhida.
Terceiro, modularizar. Se um projeto ou processo puder ser dividido em componentes menores, padronizados e repetitivos - de preferência automatizados - isso tende a reduzir riscos de atrasos e sobrecustos. Os romanos tinham um ditado: Repetitio mater studiorum est, ou "A repetição é a mãe de todo o aprendizado". Apesar de esse conceito ter sido absorvido em diferentes ramos industriais, surpreendentemente ainda é negligenciado por muitos decisores. Quando acatado, resulta em ganhos tecnológicos e econômicos. Por exemplo, a padronização da fabricação de placas solares resultou na redução de custos superior a 90% em apenas uma década.
O Empire State Bulding é um ótimo exemplo do bem-sucedido “grupo 0,5%”. Sua construção foi concluída em 1931 antes do prazo, abaixo do custo e com benefícios maiores que os previstos. A razão do sucesso foi ter reunido os principais fatores mencionados: (i) o planejamento da obra foi meticuloso, a ponto de o número exato de parafusos necessários ser conhecido antes de seu início; (ii) a construção foi rápida porque reuniu uma quantidade enorme de trabalhadores que adotaram um processo análogo ao de uma linha de produção: cada andar repetia a mesma “fórmula” do andar anterior, o que levou a um ganho de produtividade (no auge da obra, um andar era erguido por dia).
Quais dessas lições podem ser aplicadas ao setor energético?
Lição 1: Modularidade
A primeira é que grandes projetos “únicos”, como usinas hidrelétricas e nucleares, costumam ser os mais problemáticos na amostra de Flyvbjerg. No outro extremo estão as usinas solares, com menor risco construtivo. A explicação, agora previsível para o leitor, é que a massificação da produção de módulos solares fotovoltaicos conseguiu cortar custos. Uma usina solar de grande porte, com mais de 1 milhão de módulos fotovoltaicos, por exemplo, é uma versão maior de uma instalação de poucos módulos no telhado de uma residência. A mesma modularidade, que traz grande vantagem fabril necessária à massificação da produção, também permite uma execução construtiva com menos riscos.
As baterias também vêm observando significativas reduções de custo (90% em dez anos, tal como ocorreu com os módulos solares) pelo efeito da massificação da produção. Até recentemente uma equipe manualmente colocava as células nas baterias, hoje o processo é 100% automatizado.
Os projetos de PCHs também poderiam adotar, tanto quanto possível, o conceito de padronização, ao menos na seleção do equipamento eletromecânico. Assim como é mais econômico e leva menos tempo comprar um terno prêt-à-porter do que encomendar um sob medida ao alfaiate, faz mais sentido encomendar um equipamento de prateleira, produzido em série, do que projetar e construir um conjunto turbina-gerador para a queda e vazão específicas. Trata-se do típico caso em que o ótimo é inimigo do bom. Na China, por exemplo, os fabricantes entregam equipamentos para certas quedas e vazões. O empreendedor ajusta seu projeto para o que existe, trocando um equipamento ótimo e caro, por ser sob medida, por outro bom o suficiente e mais barato.
Estes insights são naturalmente relevantes quando miramos a transição energética global. Neste sentido, tecnologias como as SMR (small modular reactors) com potência bem menor que as nucleares convencionais e adotando uma estratégia de “linha de produção” têm atraído interesse de investidores como Bill Gates, que nos últimos tempos vem apoiando a empresa TerraPower.
Lição 2: Corridas tecnológicas têm limite de velocidade
Para as eólicas, a questão é mais intrigante porque num primeiro momento elas se tornaram bastante competitivas por serem modulares e fabricadas num ambiente controlado quanto à complexidade de engenharia e processos. Entretanto há hoje sinais de um mercado que aumenta o prêmio de risco desses projetos com relação ao observado na amostra de Flyvbjerg, possivelmente por conta da brutal concorrência entre fabricantes, especialmente em projetos offshore. Com efeito, a busca por aumentos de potência unitária dos geradores tem ampliado a complexidade da tecnologia e desestruturado as cadeias produtivas. Os juros mais altos também atrapalham bastante esta corrida.
Neste contexto, o conceito de que a energia eólica seria uma solução modular tanto quanto a solar fotovoltaica começa a ser questionado. A dinâmica do mercado força uma tecnologia que hoje combina “mais do mesmo” com “projetos únicos”. Este comportamento pode ser predatório com decorrente perda de valor para as empresas.
As ações da Ørsted, maior empresa eólica offshore do mundo, por exemplo, caíram 25% após a companhia ter anunciado que reduziria o valor de seu portfólio nos EUA em 2 bilhões de euros devido a problemas significativos de sua cadeia de suprimentos. Talvez a indústria eólica devesse se reorganizar para, curiosamente, reduzir o ritmo de inovação e trabalhar na massificação dos modelos no mercado.
Lição 3: É preciso ajustar o viés otimista do planejador
Na amostra de Flyvbjerg, usinas solares custam somente 1% acima do orçamento previsto, eólicas 13% a mais, hidrelétricas 75% a mais e nuclear, pasmem, 238%. Ainda sobre nucleares, cerca de 50% do universo de projetos construídos tem sobrecusto superior a 50% e, neste subconjunto, o sobrecusto médio é de 427%. Neste quesito, os autores advogam que seja incluído no orçamento dos projetos um prêmio de risco característico da categoria do projeto. Eles denotam essa abordagem de Reference-Class Forecasting (RCF).
Trazendo para o setor elétrico brasileiro, a recomendação seria para a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) deixar de considerar no Plano Decenal de Energia (PDE) os custos previstos em condições “normais” dos projetos (usualmente retiradas de estudos de viabilidade) para adotar custos ajustados (RCF) por fatores de risco derivados da experiência real com projetos similares.
Naturalmente, a aproximação por categoria de projeto pode ser precária. Um projeto hidrelétrico de grande porte com túnel (um elemento de risco construtivo) em uma região com forte oposição social motivada por preocupações sobre os impactos socioambientais (outro fator de risco) deveria ter um prêmio de risco superior ao de uma hidrelétrica de pequeno porte, de fácil construção e não controversa.
Em 2017, a PSR trabalhou neste tema para a TNC (The Nature Conservancy). O contexto era como incorporar os riscos dos projetos no planejamento do desenvolvimento do potencial hidrelétrico da bacia do rio Magdalena (o principal rio da Colômbia). Em termos gerais, os objetivos da pesquisa foram: (i) como atribuir prêmios de risco aos projetos individuais em função de suas complexidades socioambientais? (ii) como a inclusão de um prêmio de risco aos projetos impacta o planejamento setorial que visa minimizar o custo da energia aos consumidores finais? A pesquisa demostrou que na expansão ótima alguns projetos de maior porte, complexidade e controversos foram substituídos por outros menores, com menor risco de sobrecustos e atrasos.
A estratégia de aproximar o problema do planejamento ao mundo real com a inclusão de prêmios de riscos pode até ser controversa (os agentes podem argumentar que seus projetos são diferentes e estão sendo discriminados pela aplicação de uma metodologia geral, assim como 80% dos motoristas acham que dirigem melhor que a média). Apesar dessa incerteza no processo, seu uso é de interesse público, pois o PDE indicará um portfólio diferente de tecnologias que são referência e influenciam decisões de investimento feitas pelo mercado.
Por óbvio, considerações similares podem ser feitas para outros setores da economia em outras instituições. O que traz uma conclusão ainda mais geral: o Brasil deveria montar a sua base de dados de projetos de todos os tipos (estradas, aeroportos, saneamento, energia, ferrovias, portos, construções, etc.) com as duas variáveis de interesse (atrasos e sobrecustos com relação aos valores previstos) e, se não for pedir muito, um conjunto de variáveis explicativas candidatas para os problemas (ex. construção, licenciamento ambiental, assinatura de contrato, mudança de governo, etc.). Assim seria possível, com técnicas estatísticas ou outros métodos (ex. machine learning), melhorar a previsão do RCF de cada projeto. Essa base de dados é tão importante para um planejamento nacional e possível diagnóstico de “custos Brasis”, que talvez fizesse sentido exigir dos responsáveis técnicos pelos projetos a preparação de um registro com estas informações como requisito para a autorização de operação.
Conclusões
* Diretor Executivo da PSR