Marcos Samaha, CEO do Tenda Atacado: combater racismo estrutural é urgente
Com doutorado sobre as manifestações do racismo estrutural sob a perspectiva de líderes organizacionais, Marcos Samaha implementou programas de diversidade no Tenda e vê urgência em ampliar práticas antirracista na agenda dos CEOs
Marina Filippe
Publicado em 11 de fevereiro de 2022 às 06h00.
Última atualização em 11 de fevereiro de 2022 às 15h48.
Foi numa disciplina de diversidade e inclusão no mestrado em Administração de Empresas concluído em 2016, na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, que Marcos Samaha, de 55 anos, entendeu que deveria aprofundar os estudos e práticas antirracistas na vida pessoal e profissional. Ele, que há 15 anos havia sido impacto pelo tema enquanto trabalhava numa multinacional americana, ali teve novamente o sentimento de que era preciso fazer mais.
"Na multinacional tive o primeiro contato sobre como os Estados Unidos tratava o racismo, enquanto aqui quase não se falava do tema. Anos depois, ainda há muito a ser feito para combater injustiças e desigualdades. Este é um papel de todos, e no ambiente corporativo os líderes precisam tomar consciência e dar o exemplo de que combater racismo estrutural é urgente", diz Samaha.
Presidente da rede de atacado Tenda desde novembro de 2018, o executivo formado em Psicologia e com carreira em diferentes áreas e companhias passou a se interessar pelo racismo estrutural há mais de uma década, mas o tema ganhou mais força no início de 2018, quando iniciou um doutorado sobre as manifestações do racismo estrutural sob a perspectiva de líderes organizacionais, no qual se formou com mérito e um boletim cheio de notas As.
“Escolhi estudar profundamente o racismo estrutural por entender que essa é a maior das injustiças da civilização atual. Como executivo, eu precisava gerar esse impacto e percepção na empresa que lidero”, afirma.
Já na trajetória no Tenda, Samaha vê as políticas de diversidade e inclusão serem estruturadas, participa de movimentos com outros presidentes e acredita no poder das ações afirmativas para uma mudança social necessária. Veja abaixo a entrevista.
Como começou seu interesse na abordagem do racismo estrutural no ambiente corporativo?
Trabalhei há 15 nos numa multinacional americana, onde tive o primeiro contato sobre como os Estados Unidos tratava o racismo estrutural, enquanto aqui quase não se falava do tema. Por meio de palestras e conversas entendi que o racismo estrutural é uma realidade e um dos maiores problemas sociais que temos, talvez uma das maiores injustiças de desenvolvimento civilizatório e humano.
Foi com este entendimento que comecei um doutorado na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em fevereiro de 2018 – e concluído em 2021 – sobre as manifestações do racismo estrutural sob a perspectiva de líderes organizacionais. Nele, foram realizadas 14 entrevistas em profundidade com líderes organizacionais, homens e mulheres, brancos e negros.
Escolhi essa tese porque como executivo enxergava esse racismo estrutural em programas de diversidade e inclusão muitas vezes ineficazes, feitos de fechada. Pude então perceber os diferentes níveis de consciência dos executivos, de ativos à negacionistas, o que demonstra como estamos muito longe de ter o racismo superado.
Além disso, grande parte dos entrevistados afirmam que quando participam de projetos de diversidade as metas ainda são para o longo prazo, que de certa forma alivia a ansiedade do momento presente e geram um conformismo.
Como os resultados da tese impactam o trabalho no Tenda Atacado?
Se olharmos para as multinacionais vemos grande parte delas com projetos de diversidade e inclusão, e nas companhias brasileiras são as grandes, de capital aberto, que despontam no tema. As empresas de médio e grande porte, de controle familiar e sem abertura de capital, como é o caso do Tenda, quase não têm programas estruturados de diversidade e inclusão.
Foi de olho neste cenário que, quando assumi, chamei a consultoria Gestão Kairós, da Liliane Rocha, para nos ajudar a fazer o diagnóstico que trouxe vários indicadores de raça, orientação sexual, de gênero, pessoa com deficiência. E em todos eles estávamos relativamente bem, em comparação com a média das empresas brasileiras, mas era preciso mais.
Assim, definimos um plano e lançamos ações como Criação do selo Tenda Inclui, com a mensagem #SejaVOCÊ representando que as diferenças entre os funcionários os tornam únicos; entrevistas individuais com líderes e não líderes, para entender a percepção sobre o tema e a composição dos indicadores e metas de longo prazo a partir de 2022; reformulação do Código de Conduta e Ética e Canal de Denúncia; participação em eventos externos como o AfroPresença e mais.
Quais os desafios desse processo?
Ainda temos uma liderança de maioria branca e masculina , apesar de haver uma mudança com a chegada de mais mulheres e pessoas negras nas posições de gerência e acima no último ano, totalizando 32% da liderança composta por mulheres 36% por negrose negras. Estamos investindo na diversidade, mas o caminho é longo, conta com a educação e a conscientização para que todos conheçam a gravidade do tema. Não pode ser apenas uma meta do CEO, que tem um papel importante como quem dá o exemplo, mas precisa do engajamento de todos.
É preciso também planejamento estratégico, recrutamento e orçamento, com metas claras e objetivas que mudem a realidade. Pensando nisto, estamos nos preparando para realizar o segundo censo e medir a evolução em breve. Na primeira edição, tivemos 4.736 respondentes dos 6.739 colaboradores funcionários. Isto é 70% de participação, mesmo em período de pandemia, sendo: 100% líderes, 66% não líderes e 91% estagiários/aprendizes. Deles, 41% são mulheres, 43% são negros e 9% se identificam como LGBTI+, sendo 38 pessoas trans.
Como resultado do conjunto de iniciativas, até o momento, 87% dos funcionários afirmam que a diversidade está representada no Tenda, também mais de 80% afirmam perceber a valorização da diversidade em relação a equidade racial, de gênero, de gerações, da diversidade sexual, das pessoas com deficiência, bem como de ideias e pensamentos diferentes.
O Tenda tem também operações na Angola, este tema é tratado institucionalmente?
A operação é da seguinte forma: reporto para o Conselho de Administração, enquanto o diretor geral de Angola reporta ao mesmo Conselho. Ao mesmo tempo, por se tratar de tamanhos muito diferentes, visto que aqui são 40 lojas e lá quatro, é necessário o apoio do Brasil do ponto de vista tecnológico, comercial e de exportações.
Dito isto, todas as sociedades têm o desafio de lidar com a questão racial, mas na Angola o desafio é diferente porque é um país africano de maioria africana que se relaciona com estrangeiros de maioria branca. Assim, a questão racial existe, mas é com outras nuances. O Brasil e os Estados Unidos têm mais semelhanças no debate racial pelo tempo de escravidão que tiveram do que o Brasil com a Angola, por exemplo.
Qual o papel da liderança na prática antirracista?
Fundamental. Aqui, por exemplo, tivemos esse trabalho forte de conscientização que deu espaço para que os diretores e outros líderes percebessem situações que ainda não eram tidas como racistas e chegassem a se emocionar. Acredito que isto foi possível também pela minha liderança. Quando um CEO é racista dificilmente o time vai se manifestar.
Além disto, temos um conselho de administração formado por quatro conselheiros independentes e quatro acionistas, que detém 100% da empresa. Esse conselho participou de todo o processo evolutivo, deu autorização para os investimentos e mais. Isto indica como os acionistas cada vez mais estão conscientes de que uma mudança precisa acontecer e contar com o papel do líder.
Como o senhor dá o exemplo também para outros CEOs?
Além do projeto interno para aumentar a diversidade e a inclusão, o Tenda é uma das empresas fundadoras do Movimento pela Equidade Racial - MOVER, que tem metas como gerar 10 mil novas posições de liderança para pessoas negras e gerar oportunidades para 3 milhões de pessoas até 2030. Acredito que das 47 participantes, o Tenda seja a única de capital fechado.
Participo de fóruns mensais para CEOs nos quais avaliamos avanços e metas. Também incentivo a participação de outras pessoas da companhia em eventos do Mover, como foi o caso no último dia 3, quando nossa head de gente e gestão participou de um evento promovido pela Nestlé ofertando vagas no Tenda exclusivamente para pessoas negras.
Busco mostrar que é papel do CEO incentivar, por exemplo, que os recrutadores sejam inclusivos, não façam seleções com vieses, preconceitos raciais e exclusão de moradores de bairros distantes, por exemplo. É preciso ter ações afirmativas que não exijam intercâmbio, inglês e outros requisitos que excluem grande parte da população negra.
Felizmente, há dez anos começamos a ter ações afirmativas nas Universidades públicas, assim como nas privadas, para a inclusão de negros e da população de baixa renda. Estou me referindo as cotas raciais e ao ProUni, que faz com que o número de universitários negros aumente de forma significativa, e faz com que tenhamos mais mão de obra qualificada. Isto mostra que não há desculpa para não contratar; até porque se a mão de obra não estiver qualificada há espaço para a capacitação. É um projeto longo com ações afirmativas necessárias no presente.
O senhor acredita então na efetividade das cotas para inclusão nas Universidades e de seleções exclusivas nas empresas?
Sim, entendo que é um tema controverso porque quando se fala em cota muita gente vira a cara e não quer saber, fala que vai contra a meritocracia, mas o que é a meritocracia no país com racismo estrutural, que priva uma população de privilégios desde o momento que está na barriga da sua mãe? Uma mulher que não teve um pré-natal adequado, uma maternidade adequada, uma escola adequada e assim por diante? Isto é racismo estrutural. A pobreza tira privilégio de brancos, mas muito mais de negros.
Então, falar em meritocracia num país com desigualdades é cair numa falácia que ignora fatores históricos. Há uma dívida social com as populações negras do Brasil, que vem sendo maltratadas há 500 anos. Para corrigir essa injustiça é preciso entender que não saímos todos do mesmo lugar e com as mesmas ferramentas.
Na sua opinião, a desigualdade e o racismo estão de fato na agenda dos executivos?
Acredito que os CEOs devem se engajar pelo exemplo e isto está evoluindo desde que começamos o trabalho no Tenda em 2018. O Mover está ganhando destaque e divulgando as ações efetivas para inspirar outros movimentos e executivos. Além disto, a problemática social e os eventos que desafortunadamente acontecem tem gerado impacto nas empresas de diferentes setores com grandes indenizações.
Também tenho visto mais negros ocupando cargos executivos, e falando mais sobre o tema na mídia e nas companhias. Isto é muito benéfico para mudar realidades, incentivar jovens e mais, mas acredito também que o debate sobre políticas afirmativas precisa se intensificar na iniciativa privada. Hoje elas ainda não estão tão fortes porque o paradigma da meritocracia faz com que as empresas sejam criticadas quando oferecem vagas exclusivas para negros, por exemplo. Então, é importante haver o debate e acelerar qualquer processo que seja mais inclusivo.
Trabalhar com a diversidade e inclusão nas empresas hoje é uma questão de risco?
Para nós não foi uma análise de risco e sim de engajamento. Queremos que 100% dos funcionários tenham o acolhimento e o pertencimento na empresa. A diversidade e inclusão não é para evitar problemas, mas é inegável que ela ajuda sim a evitá-los.
Infelizmente existem empresas que se engajam para aparecer bonito na foto e fazem diversity washing, quando a vitrine mostra uma coisa e a prática é outra. Mas os consumidores e investidores estão mais atentos e esses casos logo vem à tona, mostrando como o ideal é ter uma prática de diversidade robusta.