“A marca Brasil está arranhada no exterior”, diz Guilherme Leal, da Natura
Em entrevista exclusiva, o co-fundador da fabricante de cosméticos afirma que o Brasil precisa de uma estratégia diante da crise climática
Rodrigo Caetano
Publicado em 10 de outubro de 2020 às 10h11.
Nem as empresas, nem o governo. O que vai garantir a preservação da Amazônia é uma agenda de Estado, que depende do diálogo entre todas as partes interessadas na região. Para Guilherme Leal, co-fundador e co-presidente do conselho da Natura, o fracasso brasileiro em proteger a floresta compromete o futuro do País e tira uma das suas maiores vantagens competitivas: os recursos naturais.
A Natura é uma das empresas mais vocais na grande mobilização empresarial pela proteção da floresta, que reúne 40% do PIB nacional . A fabricante de cosméticos tem muito a perder com a questão. Sua imagem no Exterior está muito atrelada à biodiversidade brasileira, consequência de décadas de desenvolvimento de produtos baseados em insumos amazônicos, obtidos de maneira sustentável junto a comunidades de ribeirinhos e indígenas.
Mas, se a marca Natura segue bem avaliada lá fora, o mesmo não se pode dizer da marca Brasil, que está arranhada. “Hoje, a importância da credibilidade das marcas no mercado internacional é enorme”, afirma Leal. “O valor das marcas não é só para negócios, mas também para países. E a “marca Brasil” está arranhada no exterior.”
Leia, a seguir, a íntegra da entrevista, feita por e-mail:
40% do PIB brasileiro se mobilizou para pedir o fim do desmatamento na Amazônia. O que motiva uma mobilização desse porte, neste momento?
As empresas e entidades que se uniram nessa mobilização estão preocupadas com a gravidade da crise e seus impactos sociais, ambientais e econômicos. Há um claro agravamento da percepção negativa do Brasil no exterior, com enorme potencial de prejuízos não apenas de reputação, mas também para o desenvolvimento de negócios e projetos estruturais para o país. Hoje, a importância da credibilidade das marcas no mercado internacional é enorme. O valor das marcas não é só para negócios, mas também para países. E a “marca Brasil” está arranhada no exterior . É um valor intangível, mas real. Acredito que os setores empresarial, financeiro e a sociedade civil têm um papel fundamental no debate e nas ações para a conservação e o desenvolvimento da Amazônia. Reconhecemos que, por muito tempo, os negócios se mantiveram afastados do debate da sustentabilidade. Agora percebem que são parte essencial do problema e da solução.
O que está em jogo para o Brasil, para as empresas e para a Natura?
Em primeiro lugar, está em jogo o futuro da floresta e de tudo que ela representa em termos de sociobiodiversidade e das riquezas que lá existem. Além da riqueza natural, a riqueza cultural e do conhecimento. Do homem interagindo com uma natureza que torna sua vida possível, da diversidade cultural das comunidades, das variadas línguas e etnias que vivem na floresta. A Amazônia é um dos maiores patrimônios do nosso país e da humanidade. Alguns setores da economia dependem diretamente da floresta em pé. O agronegócio depende das chuvas produzidas pela Amazônia. Para empresas que valorizam e investem na biodiversidade brasileira, como a Natura, é fundamental preservar a floresta e manter uma relação saudável com as comunidades locais.
Além disso, o Brasil é um dos países com maior potencial de desenvolver uma economia circular, de baixo carbono e inclusiva. E a preservação da Amazônia é condição indispensável para isso. Nesse sentido, também está em jogo a nossa oportunidade de construir um futuro sustentável para o nosso país, onde conservação e desenvolvimento econômico caminham lado a lado. O Brasil pode de fato ser uma liderança ambiental. Temos potencial para em algumas décadas nos tornarmos uma liderança em desenvolvimento sustentável e a Amazônia é parte importante disso. Nossa vantagem comparativa está nos recursos naturais, que precisamos transformar em vantagem competitiva .
Para as empresas, é importante notar que estão surgindo barreiras reais para quem não está alinhado à questão da sustentabilidade. Quem não se adaptar terá dificuldades de acesso a capital. Há uma crescente pressão do segmento financeiro em relação a esses temas, que têm colocando a agenda ESG como orientadora de políticas de investimento. A sustentabilidade passa por cima dos demais critérios para quem busca capital? Não, mas pode facilitar muito. Ao mesmo tempo estamos vivendo uma situação de alta liquidez no mundo. Para uma nova economia verde existem recursos presentes e crescente disposição de investir nisso. Se avançarmos na regulação do mercado de carbono , em projetos sérios de conservação, etc, tem dinheiro importante do exterior para vir ao Brasil.
O que de concreto o setor empresarial pode fazer para proteger o meio ambiente?
Acreditamos que as empresas devem ser agentes de transformações amplas na sociedade e não meros meios de geração de riqueza. Uma das nossas crenças mais fortes, expressa há cerca de 30 anos e viva até hoje, é que o valor e a longevidade de um negócio estão ligados à sua capacidade de contribuir para a evolução da sociedade e para o seu desenvolvimento sustentável. Cabe às empresas conhecer todas as externalidades ambientais que causa e tomar medidas para eliminar as negativas. Se não for possível eliminar no curto prazo, é preciso reduzir, mitigar ou, na pior das hipóteses, compensá-las. Elas também têm que promover a rastreabilidade total de suas cadeias de produção, buscando a inclusão de fornecedores indiretos que estejam envolvidos com problemas ambientais. Isso pode ser feito de várias formas, dentre elas a educação ambiental da cadeia e incentivos ou condições comerciais favoráveis, por exemplo. Mas, é importante deixar claro que as empresas sozinhas não vão “salvar” a Amazônia . Na verdade, nenhuma organização ou setor vai solucionar o problema isoladamente. A superação de um desafio tão complexo só será possível a partir de um esforço coletivo e articulado, do qual as empresas devem fazer parte. A aposta deve ser na inteligência coletiva.
Há diálogo com o governo? Em que nível (ministerial, executivo etc)?
A questão da Amazônia não é de governo, mas de Estado. E a presença do Estado ali, em todas as suas instâncias, é fundamental para o desenvolvimento da região. A ação do Estado hoje está fragmentada. Não haverá solução sem diálogo com as diferentes instâncias do Estado. Acreditamos que só chegaremos às soluções para a crise na Amazônia a partir de um diálogo aberto e cooperativo com os diversos setores da sociedade. Todos os níveis de governo têm enorme relevância e poder de transformação. É um ator chave nesse processo, que precisa corresponder à enorme responsabilidade que tem perante a sociedade. Estou falando também da dimensão local, das prefeituras, das secretarias municipais, das pessoas que estão na linha de frente. Sem elas, não há solução viável. É essa busca pelo diálogo que estamos fazendo na iniciativa uma Concertação pela Amazônia. O principal objetivo é institucionalizar no Brasil um debate plural e democrático voltado para o desenvolvimento sustentável da região. Até o momento, nos conectamos com cerca de 200 atores relevantes, que incluem, além do governo, lideranças indígenas, antropólogos, empresários, economistas, jornalistas etc. Especificamente no governo, já dialogamos com diversas esferas, como com o vice-presidente Hamilton Mourão, presidente do Conselho Nacional da Amazônia Legal, com os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente, e BNDES. Também tivemos conversa com o Consórcio de Governadores do Norte, com prefeitos, vereadores e com representantes do judiciário e do Ministério Público.
O que é maior, a pressão internacional de países europeus, a pressão dos investidores ou a pressão dos consumidores?
Os três grupos têm muita relevância. A Europa, apesar de não ter tanto peso nas exportações, dita tendências e pode influenciar o modo pelo qual o Brasil é visto no mundo todo. Sabemos que os investimentos externos são necessários para qualquer projeto de desenvolvimento nacional e essa fuga de capital que estamos assistindo agora preocupa bastante. Os consumidores são a ponta da cadeia e uma rejeição em massa a produtos brasileiros pode ter consequências gravíssimas. É o grupo mais difícil de gerenciar as percepções dada sua escala e diversidade. Além disso não podemos esquecer da pressão da mídia, que também é muito relevante. O fato é que há uma percepção crescente sobre a importância dos serviços ecossistêmicos prestados pela Amazônia diante de pesquisas que mostram que mudanças climáticas e perda de biodiversidade são hoje um risco global.
Para a Natura &Co, que tem uma imagem muito atrelada ao meio ambiente e, em especial, à Amazônia, a manutenção de uma política anti-ambiental por parte do governo pode significar prejuízos financeiros?
A questão ambiental não se limita a uma única empresa. Estamos diante de um problema sistêmico, que põe em risco o desenvolvimento econômico de todo o país. Como disse, a Amazônia provê serviços ecossistêmicos indispensáveis para uma série de atividades econômicas e para a vida cotidiana das pessoas. O Brasil precisa de uma estratégia diante da crise climática. Pela biodiversidade e matriz energética que possui, o país deveria ser líder na agenda de uma retomada verde. Temos visto uma intensificação da cobrança para que as empresas atuem na geração de valor não só para os acionistas, mas para todos os seus stakeholders. Desse modo, há uma maior pressão e busca de informação sobre o que estamos fazendo na Amazônia. Considero essa pressão positiva porque tem contribuído para que os setores se articulem e produzam respostas efetivas.