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Quebra-galho fiscal

A reforma tributária tem alguns pontos positivos e muitos negativos -- e não dá para saber quais prevalecerão. Certeza, mesmo, só há uma: a conta do contribuinte vai subir

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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 10h33.

A reforma tributária, tal como saiu da primeira votação na Câmara dos Deputados, pode ser assim qualificada: ela tem coisas boas, mas... Ou, o que dá no mesmo, tem coisas ruins, mas... E não se pode dizer qual lado vai prevalecer. Eis um exemplo: a desoneração das exportações foi inteiramente para a Constituição, o que é uma garantia de que não se voltará ao absurdo de cobrar ICMS sobre o produto brasileiro vendido ao exterior. Ponto para a reforma. Mas, para compensar os estados que perderiam arrecadação com a mudança, o fundo federal usado para repassar verbas aos governadores foi ampliado de 4 bilhões para 8 bilhões de reais. O dinheiro extra virá de tributos como o imposto de importação. Ora, trata-se de um imposto regulatório, utilizado pelos governos para abrir ou fechar a entrada de certos produtos. É um instrumento usado em acordos comerciais. Como o governo federal poderá negociar com outros países uma redução no imposto se o dinheiro passa a pertencer também aos estados? Ninguém sabe responder.

Por outro lado, a reforma votada até aqui estabelece a cobrança do imposto de exportação sobre os serviços. Também passará a ser taxada a importação de serviços, assim como se aplicará PIS/Cofins sobre bens importados. Ou seja, enquanto desonera o comércio exterior numa ponta, aumenta a carga em outra. Alega o governo Lula que é preciso taxar as importações para que elas não compitam em posição vantajosa com a produção nacional. Pode ser, mas o resultado disso é o aumento da carga tributária. Estima-se que o governo possa arrecadar 4 bilhões de reais com as diversas cobranças sobre as importações. E entre os importados não há apenas bens supérfluos: o país compra no exterior produtos como trigo, fertilizantes, milho, componentes eletrônicos, entre outros. Portanto, um sem-número de produtos essenciais terá os preços elevados.

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Outro exemplo: a unificação do imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) em legislação federal, substituindo os atuais 27 códigos estaduais, com cinco alíquotas em vez das atuais sabe-se lá quantas, simplifica o sistema e favorece a eficácia econômica. Outro ponto para a reforma. No entanto, a distribuição dos produtos pelas cinco alíquotas pode levar a um aumento da carga tributária.

Tome-se o caso de um produto que "paga" 7% de ICMS em um estado e 12% em outro. Pelo novo sistema, os governadores deverão entrar em acordo sobre qual será a nova alíquota. No exemplo, o que deverá prevalecer: a cobrança de 7% ou a de 12%? Ganha um crédito de ICMS quem encontrar alguém que acredite na uniformização pela alíquota menor. Além disso, definiu-se que a alíquota máxima do ICMS será de 25%, teoricamente uma defesa contra o aumento de impostos. Ocorre que a alíquota de 25% do ICMS representa, na verdade, 33,33% do valor do produto ou da operação. O teto de 25% já existia e, para driblá-lo, inventou-se há muito tempo que o ICMS incide "por dentro", isto é, o imposto integra a base de cálculo. O resultado é um absurdo monumental: paga-se imposto sobre a operação de pagar imposto.

Para entender esse ponto, tome um caso concreto. Uma conta de telefone de 52,82 reais embute exatos 13,21 reais de ICMS, equivalente a 25% do valor total, conforme se informa na fatura. Bastam alguns cálculos para ver que a mordida do Leão é, na verdade, bem maior. Retire da conta o valor do imposto: sobram 39,61 reais, que é o preço do serviço antes da taxação -- ou seja, o valor real da conta. Se a alíquota cobrada fosse mesmo de 25%, a pessoa teria de pagar 9,90 reais de imposto -- abaixo, portanto, dos 13,21 efetivamente pagos. Os 3,31 reais adicionais formam a parte equivalente a imposto cobrado sobre imposto. Pois ficou por isso mesmo na reforma. Sem contar que, hoje, poucos produtos caem na alíquota de 25%, existindo uma real possibilidade de que, na uniformização nacional, se amplie esse número.

Mais um exemplo: a reforma prevê o fim da cumulatividade da Cofins, contribuição de 3% sobre o faturamento que incide em cada fase da cadeia produtiva e encarece a produção nacional. Trata-se de uma antiga e unânime reivindicação do empresariado. Há tempos formou-se um consenso em torno do caráter antieconômico dos impostos que incidem em cascata. O governo federal faz questão de alardear que esse antigo pleito será finalmente atendido. Será?

Quando o governo anterior eliminou a cumulatividade de outra contribuição, o PIS, a alíquota saltou de 0,65% em todas as fases para 1,65% em determinados pontos da cadeia produtiva. Ou seja, alguns setores passaram a pagar muito mais. Qual a garantia de que algo semelhante não vá ocorrer na mudança da base da Cofins? Além disso, se o objetivo de uma reforma tributária é devolver eficiência e competitividade à economia, não seria o caso de corrigir o exagero do PIS?

Outro exemplo: a reforma determina a redução do imposto sobre produtos industrializados (IPI) sobre máquinas e equipamentos, o que é positivo. Mas a decisão ficou pela metade: a cobrança do ICMS será mantida -- e, assim, o Brasil, um país que necessita desesperadamente aumentar os investimentos, continua a ser um dos poucos a taxá-los.

Aí está o problema geral da reforma: ela admite como fatos da vida os maiores absurdos do nosso sistema tributário. O governo Lula garante que não haverá aumento da carga tributária, hoje de 36% do produto interno bruto (PIB). Ora, uma verdadeira reforma deveria também buscar a redução e a simplificação da carga tributária. Alega o governo que isso não é possível, dada a dificuldade financeira nos governos federal, estaduais e das prefeituras. A saída foi montar uma reforma quebra-galho, que procura redistribuir a atual carga. Para arranjar os votos necessários no Congresso, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva acabou concordando com uma redistribuição do bolo, aumentando a parte dos estados e municípios em cerca de 0,45% do PIB. Para que a União não fique no prejuízo, a reforma abre inúmeras possibilidades para recuperar essa perda, assim como deixa oportunidades para que os governos estaduais e as prefeituras aumentem suas receitas. No caso das prefeituras, por exemplo, garantiu-se a contribuição da taxa de coleta de lixo, hoje uma cobrança polêmica, a ser instituída por legislação municipal ordinária. E está na cara que todas as prefeituras vão cobrá-la.

No campo da justiça social, o governo Lula ressalta a importância da desoneração de uma cesta básica de alimentos e remédios. Mas não saiu bem uma desoneração, e sim a cobrança de ICMS pela menor alíquota nacional. Pode ser zero, diz o governo. Mas pode não ser -- e parece claro que muitos estados se recusarão a zerar essa receita. Sendo assim, uma no cravo, outra na ferradura, essa reforma, tal como se encontra até o momento, pode resultar num avanço, se prevalecerem apenas os aspectos positivos, ou num desastre, em caso contrário. Tudo dependerá de legislações infraconstitucionais, nos três níveis da Federação, de modo que não se pode ainda dizer como ficará.

O que se pode, sim, dizer é que a sociedade, as empresas e as pessoas precisam se ocupar disso. Deixado tudo por conta do pessoal de Brasília, o resultado costuma ser sempre o mesmo: aumento de imposto.

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