Economia

O’Keefe, de Stanford: os desafios do Itamaraty

Camila Almeida O Brasil está temporariamente sem ministro das Relações Exteriores desde que, na última quinta-feira (23), foi oficializada a saída do chanceler José Serra (PSDB-SP), por motivos de saúde. Ao longo de quase um ano à frente do cargo, Serra reforçava a necessidade de avançar com os acordos bilaterais — mas nenhuma negociação foi iniciada sob […]

THOMAS O’KEEFE: Para especialista, Brasil precisa se preocupar com protecionismo de Trump / Arquivo pessoal

THOMAS O’KEEFE: Para especialista, Brasil precisa se preocupar com protecionismo de Trump / Arquivo pessoal

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Da Redação

Publicado em 2 de março de 2017 às 12h02.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h31.

Camila Almeida

O Brasil está temporariamente sem ministro das Relações Exteriores desde que, na última quinta-feira (23), foi oficializada a saída do chanceler José Serra (PSDB-SP), por motivos de saúde. Ao longo de quase um ano à frente do cargo, Serra reforçava a necessidade de avançar com os acordos bilaterais — mas nenhuma negociação foi iniciada sob seu comando.

No início de fevereiro, o presidente argentino Mauricio Macri veio a Brasília — graças a uma articulação do ministro da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, Marcos Pereira — e demonstrou interesse em melhorar as relações de comércio entre os dois países, no que seria o primeiro diálogo internacional apresentado pelo governo Temer.

A Argentina tem sido ambiciosa além das fronteiras. Além de querer minimizar as barreiras ao comércio, está nos planos fortalecer o Mercosul. Macri demonstrou interesse em trazer o México mais para perto e tem cobrado que a Espanha lidere as negociações do acordo de livre-comércio entre Mercosul e União Europeia.

O Brasil, porém, não está no mesmo ritmo — e, sem ministro, o marasmo se agrava. Para discutir o posicionamento brasileiro no mercado internacional, EXAME Hoje conversou com Thomas O’Keefe, presidente do Mercosur Consulting Group, escritório de consultoria jurídica e econômica para investidores interessados no bloco,  e professor de Relações Internacionais da Universidade Stanford, com foco nos países da América Latina.

Na entrevista, o especialista falou sobre as perspectivas para o Mercosul, os riscos do protecionismo de Donald Trump, os impasses do livre-comércio e a vantagem que o Brasil tem de poder optar por negociar por conta própria com qualquer país do mundo, sem precisar de acordos que lhe deem respaldo.

No início de fevereiro, o presidente Mauricio Macri, da Argentina, veio ao Brasil para conversar com Michel Temer sobre um acordo bilateral e um estreitamento das relações. É um sinal de que o Mercosul pode voltar a se fortalecer? Ou é de se esperar que a relação só melhore entre os dois?

É normal que as duas maiores economias do Mercosul negociem. E é bom lembrar que a integração começou só entre os dois, quando José Sarney era presidente do Brasil e Raúl Alfonsín da Argentina. Ainda existe um acordo de integração econômica entre os dois, que foi assinado em 1990, antes do tratado do Mercosul que incorporou Paraguai e Uruguai ao processo. O fato de agora Brasil e Argentina estarem falando sobre uma integração econômica mais profunda, não significa uma ameaça ao futuro do Mercosul. Apenas tem sentido que os dois maiores falem entre si.

Mas não se falou muito sobre integração regional, nem sobre estratégias para fazer com que o bloco se fortaleça. É de se esperar que essa conversa ainda demore a acontecer?

Acho que todos os governos da América Latina estão muito preocupados com as declarações do presidente dos Estados Unidos, que quer ter uma política de comércio muito mais protecionista. O mais afetado por isso será o México – e não à toa Brasil e Argentina estão falando da possibilidade de concretar um acordo entre México e Mercosul, ou com o México bilateralmente. Para o Brasil, os Estados Unidos também são um tema preocupante, porque o país está exportando produtos com valor agregado para lá, como aviões fabricados pela Embraer, por exemplo. 

Os Estados Unidos anunciaram sua saída do Acordo Transpacífico e, agora, é provável que o bloco não continue existindo. Que portas se abrem para o Brasil e para os países do Mercosul?

É um incentivo para finalmente se chegar a um acordo de livre comércio com a União Europeia. As declarações protecionistas de Donald Trump são um tema de muita preocupação na União Europeia, que também está tendo seu fim prognosticado por Trump. Essa instabilidade ajuda a aproximar os países europeus do Mercosul e de algumas economias asiáticas, particularmente a China.

A conversa sobre um acordo Mercosul-União Europeia já existe há mais de 20 anos. Por que está demorando tanto? E por que, agora, ele haveria de sair?

O problema principal sempre foi o acesso que os produtos agrícolas do Mercosul teriam ao mercado interno da União Europeia, que não estava interessada em abrir seu mercado para todos os produtos agrícolas exportados pelos países do Mercosul. Mas agora, particularmente, as exportações agrícolas para a Europa não são tão importantes quanto eram no passado. Existem outros mercados para exportar esse tipo de produto, como a Ásia e a África. Existe alternativas no mercado, não é mais um tema tão importante. A realidade mudou. Há mais flexibilidade para se chegar a um acordo.

O fato de a América Latina estar em recessão não faz com que esses acordos sejam mais difíceis de serem firmados? Brasil e Argentina, que são as economias mais fortes, não estão com a capacidade produtiva que deveriam, a indústria não está tão forte e o emprego não está no nível adequado. Isso não prejudica nossa imagem para o resto do mundo?

Apesar da crise, o Brasil é um país de 200 milhões de habitantes – isso é um mercado interno muito importante, com uma população jovem. O Brasil tem grande potencial para qualquer empresa, em qualquer setor produtivo. Pode ser que agora a situação seja muito difícil, mas a maioria das companhias estão olhando para o futuro, daqui a 10 ou 15 anos. Além disso, o Brasil é um país com uma grande quantidade de recursos naturais e fontes de energia, com potencial para ser uma potência não somente na exportação de produtos primários, mas de produtos industriais também. Muitos dos minerais que são incorporados ao processo de manufatura de aviões e automóveis existem no Brasil. Estou seguro de que, se o governo do Brasil seguir o caminho das reformas, dentro de quatro ou cinco anos, a economia estará em plena expansão, e todo mundo estará interessado em fazer negócios no Brasil. É um país importante.

A saída do Reino Unido da União Europeia deixou o bloco enfraquecido. Com eleições na França, na Alemanha e na Holanda este ano, é possível que isso se agrave. Estamos vivendo um momento em que esses acordos comerciais começam a ser questionados? 

O Brexit não significa o fim da União Europeia. A negociação está só começando, vai durar pelo menos dois anos e é possível que eles venham a ter uma relação de comércio muito forte. As vinculações econômicas são muito profundas, e devem seguir sendo. O fato de muitas pessoas estarem dizendo que a União Europeia está muito frágil dá mais razão para os governos provarem que ainda ela faz sentido. Uma maneira para demonstrar isso é chegar a um acordo comercial com outro grupo de países no mundo. Por essa razão, tem sentido a possibilidade de fecharem com o Mercosul.

Donald Trump tem defendido a revisão dos acordos comerciais que os Estados Unidos têm hoje. O mundo pode ficar mais receoso em relação aos acordos de livre comércio? É a hora de pensar em acordos que sejam mais justos, como Trump defende, em termos de tarifas?

Ou você está com o livre comércio ou não está. Não existe meio termo. Se um país acha que a melhor maneira de expandir a economia é o livre comércio, tem que estar comprometido com a ideia de não ter tarifas, não ter exceções e não proteger alguns setores industriais. É verdade que é preciso ter cuidado para que todos os envolvidos estejam jogando sob as mesmas regras. É importante manter os mecanismos de denúncia, como existe dentro da OMC, aos quais se pode recorrer caso algum país esteja subsidiando suas exportações ou interferindo de forma desleal no mercado. O problema não é o livre comércio em si, mas com a infraestrutura que existe para conduzir o comércio internacional. Isso tem sido um problema mesmo dentro da OMC. Economias maiores, como União Europeia, Estados Unidos e Canadá, têm muito mais poder do que os países pequenos. Que condições um país como Antígua e Barbuda tem de ter impacto numa denúncia contra os americanos, caso estejam incorrendo a uma prática desleal de comércio? É necessário um esquema de resolução de controvérsias muito mais forte do que que existe atualmente.

Apesar de existir um acordo de livre comércio no Mercosul, existem várias exceções e barreiras não-tarifárias. O objetivo principal do bloco, que era criar um mercado único entre os países, nunca foi alcançado. Por quê?

Esse é o principal problema do Mercosul. A meta final de um mercado único ainda é um sonho. E a razão principal é porque as economias maiores nunca aceitara 100% essa ideia. O Mercosul era uma maneira de encontrar novos mercados dentro da região e de aumentar o poder de negociação com os Estados Unidos e com a União Europeia. O Brasil nunca esteve comprometido e, após a crise da Argentina, em 2001, para eles também deixou de ser uma política importante. Agora, que Brasil e da Argentina estão falando de promover uma integração mais profunda entre países, vamos ter que esperar para ver se eles estão comprometidos apenas com a economia dos dois ou com todos da América Latina. O atual governo brasileiro tem se mostrado interessado na integração econômica e em fortalecer os acordos de livre comércio. Se o plano é voltar à ideia inicial, isso poderia trazer muitos benefícios para a América do Sul. Se o plano é expandir o Mercosul, incluindo países como México, Peru e Colômbia, também poderia ser uma boa opção. O problema é que nunca passou retórica.

É recorrente o discurso, no Brasil, de que o Mercosul é um atraso. O Brasil precisa do Mercosul?

Não. E sair do bloco é uma opção para o Brasil, em particular. Nos anos 1990, se tinha uma ideia de que o Brasil sozinho não era suficiente para firmar um acordo bilateral com uma economia importante. Daí veio a necessidade de fortalecer primeiro o Mercosul. Hoje, talvez tenha sido mais interessante para o Brasil negociar bilateralmente. A economia se tornou tão grande e importante que qualquer país tem interessado em negociar com o Brasil. A questão é como avançar nessa direção sem criar dilemas diplomáticos com os países vizinhos. Ninguém quer voltar ao pensamento dos anos 1980, em que as forças armadas da Argentina enxergavam o Brasil como inimigo. Ninguém quer voltar a criar à situação de tensão e hostilidade que existia antes do retorno democrático. 

O Brasil por muitos anos foi acusado pelo restante da América do Sul de estar virado de costas para o continente, e aberto para o mar. Sempre foi o único país em que não se fala espanhol. Essas divergências se mantêm até hoje?

Esse sentimento mudou particularmente após o governo Lula, mas começou com o governo FHC. Aos poucos, a ideia de que o Brasil é um país à parte, que não tem nada em comum com o resto do continente foi se transformando. Os governos do Brasil entendem que o futuro do país precisa levar em conta o que está acontecendo nos países vizinhos, que o que acontece além das fronteiras têm impacto nas questões nacionais. O combate ao narcotráfico depende de uma cooperação com Colômbia, Peru e Bolívia; as crises econômicas provocam fluxo de imigrantes. Antigamente, era muito fácil para o Brasil estar protegido pela Amazônia e esquecer das fronteiras com Guiana e Venezuela. Mas, hoje, os problemas que existem nesses países têm impacto na sociedade brasileira e mais ainda do lado contrário, quando existe uma crise no Brasil. Os vínculos culturais e econômicos estão muito mais fortes hoje. O Brasil não é uma ilha isolada. 

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