O que a cidade brasileira mais próxima de renda universal tem a ensinar
Durante pandemia, cidade fluminense pôde, em pouco tempo, colocar em prática medidas ousadas, sem esbarrar em dificuldades práticas vistas no resto do país
Ligia Tuon
Publicado em 19 de agosto de 2020 às 13h00.
Última atualização em 19 de agosto de 2020 às 21h22.
Para além dos socorros financeiros do governo federal a cidadãos, empresas e outros entes da federação, cada um fez o que pôde para evitar efeitos mais dramáticos da crise em meio à urgência trazida pela covid-19 .
Alguns, no entanto, puderam fazer melhor, como é o caso de Maricá, cidade de pouco mais de 150 mil habitantes, no Rio de Janeiro , que, num curtíssimo espaço de tempo, colocou em prática medidas ousadas, sem esbarrar em dificuldades vistas no resto do Brasil.
Durante a pandemia, Maricá colocou de pé uma rede de ajuda aos seus cidadãos, e ampliou seu programa de renda básica local, que virou o maior da América Latina, chegando mais perto da Renda Básica Universal, apoiada por teóricos há séculos.
A teoria da renda universal sugere que um governo deve pagar uma quantia única de dinheiro a cada um de seus cidadãos, geralmente uma vez por mês, independentemente de sua renda ou situação de emprego.
Atualmente, os cidadãos com renda familiar mensal de até três salários mínimos, e que moram na cidade há pelo menos três anos, tem direito a R$ 300 ao mês, que podem ser gastos por meio de um cartão carregado com a moeda local, a mumbuca.
Antes da pandemia, as mensalidades eram de R$ 130. Do decreto da Prefeitura para elevar esse valor até o recebimento pelos cidadãos, no dia 25 de março, levou só uma semana.
A moeda digital chamou atenção de estudiosos sobre renda básica universal da comunidade internacional, e, mais recentemente, também atraiu professores da Universidade Federal Fluminense (UFF).
"Se Maricá tivesse que transferir o dinheiro físico, como fez o governo federal com o auxílio emergencial, teriam tido uma dificuldade muito maior. Além disso, a cidade já tinha um bom mapeamento dos cidadãos quando veio a crise, por meio do Cadastro Único", diz Fabio Waltenberg, professor de economia na UFF e um dos autores de estudo sobre o programa de Maricá.
O programa vem ganhando corpo desde 2013, mas virou o maior da América Latina no ano passado, quando deixou de se direcionar às famílias que recebiam até três salários mínimos para beneficiar o indivíduo com renda familiar semelhante.
Nesse momento, a cidade passou a cumprir quase plenamente dois dos três princípios idealizados por uma política de renda básica universal no ano passado: incondicionalidade e individualidade, destacam especialistas no estudo.
Hoje, só não é universal, porque atinge cerca de 25% da população, mas o objetivo é que alcance todos os cidadãos locais no futuro. Desde dezembro, mais de 42 mil pessoas recebem o benefício. Para se ter uma ideia, um estudo do tipo feito pela Finlândia, considerado robusto pela comunidade internacional, atendeu durante dois anos 2 mil pessoas.
Segundo os professores da UFF, o exemplo pode apontar o caminho para uma distribuição mais equitativa de renda no resto do Brasil, além de trazer lições importantes para o debate sobre os benefícios de longo prazo de uma política de distribuição universal.
Vantagens que quase ninguém tem
A menor dificuldade do governo federal em colocar de pé um projeto de renda emergencial durante a crise foi levantar verbas. Identificar os beneficiários elegíveis, separá-los dos não elegíveis, e fazer a primeira parcela chegar nas mãos dos cidadãos, na prática, se provou muito mais complexo e custoso.
Maricá não teve o mesmo problema, porque, além de ter uma boa disponibilidade orçamentária — o programa vem sendo financiado por royalties pagos à cidade pela Petrobras —, quando veio a crise, já havia uma estrutura previamente montada de transferências de renda, viabilizada pela ação de um banco digital comunitário, o Banco Mumbuca, que chegou em 2013 na cidade:
"Para acionar as medidas que atenderam aos beneficiários da Renda Básica de Cidadania, só foi necessário tomar a decisão política de incrementar o valor dos benefícios, medida implementada em poucos dias e sem registro de maiores dificuldades", dizem os pesquisadores.
Além de ter a ajuda da instituição, Maricá faz o uso de sua própria moeda, o que ajuda que o dinheiro seja gasto apenas dentro de seu território, por seus cidadãos.
Como os estabelecimentos locais aceitam a mumbuca, os beneficiários podem comprar o que quiserem com o valor, não só alimentos, como foi feito em outras regiões, mas também produtos de higiene, por exemplo. Isso é importante, destaca o estudo, porque movimenta mais a economia local.
Essa facilidade de implementação confirma as impressões de uma das referências no mundo sobre políticas universais, o filósofo belga Philippe Van Parijs, segundo os pesquisadores da UFF.
Em entrevista recente, Parij destacou que as dificuldades enfrentadas na implementação de medidas assistenciais emergenciais "aumentam nossa consciência de quão mais bem equipadas nossas sociedades e nossas economias estariam para enfrentar desafios como esse se houvesse uma renda básica incondicional permanente".
Outra vantagem da cidade em relação a outras regiões brasileiras foi que, antes mesmo do primeiro caso confirmado de covid-19 no município, a prefeitura passou a adotar diversas medidas para proteger sua população, diz o estudo, como fechamento de escolas, restrição de funcionamento de comércios e suspensão de atividades não essenciais.
O estudo pondera que, apesar de a política atingir bons resultados, tem falhas. O programa de renda acaba não alcançando todo mundo que precisa do benefício, já que há cerca de 60 mil maricaenses no Cadastro Único, mas 30% deles não estão inscritos no programa Renda Básica de Cidadania: "Uma parte da população vulnerável não estava protegida antes da pandemia, e não pôde ser diretamente beneficiada durante esta crise".
Ainda assim, pelo impacto positio que deve ter a ideia, Maricá pode vir a surpreender até Edardo Paes que, no idos de 2016, quando era prefeito do Rio, gerou protestos ao se referir ao local com palavras depreciativas, em conversa com o ex-presidente Lula, gravada no âmbito da investigação da Lava Jato.