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O lado B do Vale do Silício

Chaos Monkeys: Inside the Silicon Valley Money Machine Autor: Antonio García Martínez. Editora: Ebury Digital. 528 páginas. ————————— David Cohen Antonio García Martínez é um americano de origem cubana que se formou em física, trabalhou no mercado financeiro em Nova York e dali saltou para o Vale do Silício – como empregado, depois como empreendedor […]

MARK ZUCKERBERG: novo livro retrata vaidades e jogos de interesse das empresas de tecnologia, incluindo a história da monetização do Facebook / Justin Sullivan/Getty Images (Justin Sullivan/Getty Images)
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Da Redação

Publicado em 10 de setembro de 2016 às 06h43.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h48.

Chaos Monkeys: Inside the Silicon Valley Money Machine
Autor: Antonio García Martínez.
Editora: Ebury Digital. 528 páginas.

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David Cohen

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Antonio García Martínez é um americano de origem cubana que se formou em física, trabalhou no mercado financeiro em Nova York e dali saltou para o Vale do Silício – como empregado, depois como empreendedor e então como funcionário do Facebook, até ser demitido, menos de dois anos depois de contratado. Não é assim uma história de sucesso que rendesse um livro dos mais inspiradores.

Mas justamente por essa trajetória, digamos, da segunda divisão do empreendedorismo digital, seu relato sobre o mundo das startups de tecnologia tem uma riqueza que jamais terão as histórias das estrelas de primeira grandeza.

Leia a biografia de Steve Jobs, Jeff Bezos, Elon Musk, ou mesmo a de Peter Thiel, e você sairá com uma forte impressão de que eles eram pessoas especiais destinadas ao sucesso. Ou pelo menos a deixar uma marca no universo, na famosa expressão de Jobs.

Chaos Monkeys: Inside the Silicon Valley Money Machine (Macacos caóticos: por dentro da máquina de dinheiro do Vale do Silício) tem um efeito bem diferente. É educativo como poucos. Em vez de mistificar, mapeia o ambiente da economia digital. No lugar de ilusões, injeta cinismo. Em vez de propagar o valor das ideias e dos sonhos de mudar o mundo, aponta as rasteiras, os jogos de interesses, as vaidades.

A começar pela dedicatória – “aos meus inimigos” – percebe-se que García não tem papas na língua. Ele diz que escreveu o livro porque as histórias reais deste novo mundo dos negócios não estão sendo contadas. A dose de veneno com que realiza suas pequenas vinganças contra ex-patrões, ex-rivais e ex-investidores deixa claro que seu relato não é nem um pouco isento, mas funciona como excelente antídoto à mistificação da economia digital.

Foco: arranjar emprego
Tome-se o espírito empreendedor, por exemplo. Pelo menos desde a década de 50 se defende que ele não é apenas um elemento necessário para revigorar a economia (como dizia Schumpeter e sua “destruição criativa”), mas o motor do crescimento (seria, segundo alguns, o responsável pelo maior número de empregos e pelos grandes avanços tecnológicos).

O próprio conceito é debatido à exaustão. É um traço inato (que se encontra em cerca de 10% da população) ou é uma característica que se pode aprender e se tem o dever de ensinar aos jovens? É um instinto animal, oriundo da ambição egoísta, ou é um sentimento idealista, que almeja mudar o mundo?

Talvez o empreendedorismo seja tudo isso junto. Mas hoje em dia é também, como bem demonstra García, uma forma de conseguir emprego. É um jeito de se colocar numa vitrine como peça valorizada. Porque no jogo das grandes empresas de tecnologia compram-se startups não só para ganhar mercado e adquirir patentes, mas também para arregimentar talentos.

Pense em Diane Greene, a responsável pelo crescimento da computação em nuvem do Google. Ela entrou na empresa em novembro de 2015, quando sua startup, a Bebop, foi comprada pelo Google pela bagatela de 380 milhões de dólares. E o que o Google queria com a Bebop, que mexia com softwares de treinamento de RH? Provavelmente nada. Mas Diane é uma das pioneiras em programação de nuvens, uma das grandes apostas do Google.

Ou pense em Berthier Ribeiro-Neto, cujo buscador Akwan foi comprado pelo Google em 2005. Ele é hoje o chefe da engenharia da empresa no Brasil. Ou pense em Jan Koum, o ucraniano-americano que criou o Whatsapp e hoje lidera sua própria criação como uma divisão do Facebook. Para esse tipo de negócio, criou-se até um nome: acqui-hire, mistura de aquisição (acquisition) com contratação (hire).

O que García mostra é que esse jogo chegou a tal nível que boa parte da sanha empreendedora é, hoje, uma corrida por um bom emprego. Mais ou menos como a garotada que se esforça em projetos extra-curriculares para, paradoxalmente, colocar isso no currículo e se tornar mais atraente para as empresas “modernas”, o empreendedorismo é, para muita gente, uma espécie de estágio para o verdadeiro objetivo – um belo de um emprego com direito a opções de ações numa empresa de crescimento promissor.

“Pode-se considerar os dez meses em que trabalhamos 16 horas por dia para criar a AdGrok como um grande processo de RH para ser contratado pelo Facebook”, afirma García.

Lições de cinismo
O espírito empreendedor não é nem de longe a única vítima dessa visão corrosiva de García. Para começo de conversa, ele traça paralelos desconcertantes entre Wall Street, tido por tantos como o mundo da ganância por excelência, e o Vale do Silício – ainda em boa medida encarado como a terra da tecnologia voltada a criar um mundo melhor.

A carreira de García é um exemplo da proximidade entre os dois mundos. Seu PhD em física o capacitou a tornar-se um “quant”, um analista quantitativo que modelava preços de derivativos para a Goldman Sachs. O mesmíssimo talento era requerido no novo mundo da publicidade programática – em que os espaços nos sites são negociados diretamente entre computadores, numa espécie de leilão virtual no mercado da atenção.

E assim García mudou de Nova York para São Francisco. Inicialmente, trabalhou numa startup dedicada a criar produtos de gerenciamento automático de anúncios. Em pouco tempo, deixou a empresa para criar a sua própria startup, na mesma área, voltada para pequenas e médias empresas.

É aí que o livro se torna um valioso guia do mundo da tecnologia. García narra suas aventuras com sócios, investidores, advogados, outros empreendedores. Esqueça a visão edulcorada de todos esses heróis do capitalismo moderno. O retrato que García traça é de uma selva, de muita esperteza e poucos freios morais.

Ele funciona como um informante, ao mesmo tempo ator e testemunha. Até suas observações machistas ajudam a situar o tipo de ambiente que predomina no mundo da tecnologia. García não poupa nem a si mesmo: “eu era inteiramente desprovido da maioria dos limites da moralidade”, afirma.

“Você vai ter que confiar em mim nisso: a história de quase toda startup de estágio inicial é repleta de histórias iguais às minhas”, diz. “Negócios discretamente acertados pelo telefone para não deixar traços legais, traições pelas costas de investidores e co-fundadores, sedução de empregados crédulos para que trabalhem por essencialmente nada.”

Quando saíram do emprego para montar sua própria startup, a AdGrok, García e seus dois sócios foram processados pelo ex-chefe por roubo de propriedade intelectual. García conta como convenceu advogados a defendê-lo com pagamento em ações, em vez de dinheiro. Mas o que funcionou foi a pressão que seus investidores e contatos fizeram sobre o ex-chefe, num mundo em que, segundo ele, conexões são bem mais importantes que inovações.

A parte mais instrutiva do livro é a aula sobre o mundo do venture capital, dos investidores anjos e de como esse mercado se inflacionou e se transformou com o que ele (assim como vários analistas) chama de bolha da tecnologia. “Com tanto dinheiro à espera de investimentos, os melhores empreendedores tinham o luxo de escolher os investidores, em vez do oposto, e muitos investidores se viram ansiosamente tentando participar das rodadas de captação de capital”, afirma.

Daí o poder extraordinário do Y Combinator, a mais famosa incubadora de startups de tecnologia, que influencia os primeiros estágios de vida das empresas. Entrar no clube do Y Combinator é ter acesso a um outro patamar de oportunidades – de dinheiro e network.

Depois de algumas rodadas de investimento, tudo parecia ir bem para a AdGrok: García conseguiu uma oferta de compra do Twitter. Para elevar essa oferta, foi procurar outros interessados. O Google não se interessou, mas omitir esse veredicto do rival Facebook foi fundamental para conseguir uma audiência. Ao final das contas, o Facebook não se interessou pela empresa, mas quis contratar García.

Ele não titubeou. Abandonou os sócios – o Twitter acabou aceitando comprar a empresa mesmo sem ele, por um preço inferior – e mudou-se para o Facebook.

Na terra de Zuckerberg
A segunda parte do livro narra as lutas internas de García no Facebook. Sua missão era descobrir um meio de monetizar o extraordinário tráfego do site.

Quem tiver paciência vai entender mais do que precisa sobre como funciona o mercado de anúncios no mundo digital em geral e nas redes sociais em particular. Para efeitos da história de García, basta entender que ele defendia um modelo aberto (os anunciantes usariam seus próprios programas dentro da página do Facebook, no espaço destinado a eles) e foi derrotado por um modelo fechado (os anunciantes teriam de se submeter aos programas do próprio Facebook, com perda de eficiência).

Alguns anos depois, isso já não importaria. Venceu um terceiro programa, mais adequado ao tráfego em aparelhos móveis. Mas, para García, a guerra significou a demissão – e um olhar um pouco menos que benevolente com a cultura do Facebook.

“Como eu observei mais de uma vez no Facebook, e como imagino seja o caso em todas as organizações, dos negócios ao governo, decisões de alto nível que afetam milhares de pessoas e bilhões em receita são tomadas com base no instinto, em resquícios de brigas políticas e na habilidade de passar mensagens persuasivas para pessoas muito ocupadas, impacientes ou desinteressadas (ou todas as três coisas)”. Zuckerberg, no entanto, é descrito como “um gênio”.

À parte curiosidades como o nome da sala de reuniões de Sheryl Sandberg, a número 2 do Facebook, “Só notícias boas”, e de mais alguns comentários machistas, como a observação de que as mulheres se vestiam mal (com exceção de uma com quem ele trocou uns “amassos” num almoxarifado), quase tudo gira em torno de sua batalha pela monetização.

Ao final da história, García não se deu tão bem no Vale do Silício. Mas também não se deu tão mal. Virou consultor do Twitter, que o havia tachado de traidor (outro indício de que no mundo dos negócios os interesses falam mais alto que os rancores) e de uma empresa de publicidade (“para tirar do Facebook parte dos milhões que eu ajudei a colocar lá”).

Para quem busca algum juízo de valor sobre o Vale do Silício, ou sobre a indústria da tecnologia como um todo, ele está no título. Chaos Monkey, macaco caótico, é um programa criado pela Netflix para testar a resiliência de um produto ou de um site contra falhas aleatórias. Segundo García, as startups são esses macacos caóticos, tentando destruir as estruturas sociais, do mercado de hotéis ao emprego de taxistas. “A questão para a sociedade é se ela pode sobreviver a esses macacos empreendedores intacta, e com que custo humano”.

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