As emoções e o poder do Small Data
É difícil escapar de ouvir o termo Big Data hoje em dia. Não é só a promessa da inteligência artificial, baseada na capacidade de destilar enormes conjuntos de dados, ou o discurso de venda de anúncios do Google e do Facebook, com sua proposta de avaliar e classificar uma população em grupos específicos e entregar-lhes […]
Da Redação
Publicado em 20 de maio de 2016 às 18h01.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h03.
É difícil escapar de ouvir o termo Big Data hoje em dia. Não é só a promessa da inteligência artificial, baseada na capacidade de destilar enormes conjuntos de dados, ou o discurso de venda de anúncios do Google e do Facebook, com sua proposta de avaliar e classificar uma população em grupos específicos e entregar-lhes mensagens supostamente mais eficientes, no momento mais adequado. As grandes cadeias de varejo usam dados de todos os tipos para decidir sobre promoções, preços, compras. Inferências a partir de montanhas de dados tomaram um lugar central em processos de decisão, desde a probabilidade de sucesso de um negócio até chances de um ataque terrorista.
Não que o poder da estatística seja uma grande novidade. Em 1847, o médico húngaro Ignaz Semmelweis, então residente em um hospital de Viena, comparou todos os dados de tratamento nas duas clínicas de maternidade do hospital – uma com taxa de mortalidade de mães de cerca de 10%, outra com taxa de 4% – e concluiu que a febre que atacava tantas pacientes era devida à contaminação provocada por médicos que, além dos partos, também faziam autópsias (na clínica com taxa menor, havia apenas parteiras). Sua instrução para que os médicos lavassem as mãos com solução de cloro antes de entrar na sala de partos reduziu a mortalidade para a faixa dos 2%.
Pela análise de uma profusão de dados, Semmelweis intuíra que micro-organismos podem provocar doenças, uma tese que só seria elaborada anos depois, pelo francês Louis Pasteur, com a teoria dos germes (e mesmo essa só se tornaria plenamente aceita na virada para o século 20). Só que, em vez de ser festejado, ele foi ridicularizado pela classe médica austro-húngara e acabou demitido do hospital.
Segundo Ian Ayres, autor do livro Super Crunchers, Semmelweis é um precursor do atual exército de analistas que estão mudando a cara dos negócios, das políticas, dos esportes. Um recentíssimo exemplo é o Leicester City. Primeiro time médio a ganhar o campeonato inglês em mais de 20 anos, o clube usou análise estatística para estudar adversários, decidir escalações e definir estratégias. A novidade não são as análises, mas o fato de elas serem feitas por um clube mais modesto, sinal de barateamento da tecnologia (essa tendência começou no beisebol, no final dos anos 90, como retratado no filme Moneyball, com Brad Pitt).
Num mundo repleto de informações, o Big Data se apresenta como um meio de buscar sentido. Virou moda.
É por isso que é tão cativante o título do novo livro do dinamarquês Martin Lindstrom, um dos mais influentes profissionais de marketing do mundo: Small Data. Seu argumento principal é que o Big Data, o cotejo de um número exorbitante de informações, é analítico. Falta-lhe o elemento de emoção, fundamental para, mais do que entender a demanda, provocar e moldar a demanda que você quer para o seu produto.
À primeira vista, somos levados a achar que estamos de volta ao embate entre razão e emoção. No campo da tomada de decisões, essa dicotomia gerou duas escolas poderosas: a que aponta os constantes erros da nossa intuição e a que defende a intuição como um método rápido e eficiente, em geral derivado da maestria (um debate que poderia ter como símbolos o capitão James Kirk e o oficial de ciência senhor Spock, do seriado Jornada nas Estrelas).
No livro de Lindstrom, no entanto, logo percebemos que o título chamativo não traduz exatamente uma oposição. Ele propõe uma espécie de complementação ao Big Data, com incursões antropológicas ao universo dos consumidores.
Um tênis gasto indica a estratégia
Lindstrom é uma espécie de Mister M do mundo do marketing. Assim como o ilusionista que, em programas de TV na virada do milênio, expunha os segredos dos mágicos (no Brasil, sua série foi ao ar no Fantástico, da TV Globo), Lindstrom costuma contar truques que as empresas usam para ampliar vendas. Em Brand Sense, de 2010, apontava que o “cheiro de carro novo” vem de um spray instalado na fábrica para dar a sensação de conforto; que a Kellog’s usa laboratórios de som para chegar ao barulho ideal da quebra de seus sucrilhos; que o aroma do Nescafé foi desenvolvido ao longo de décadas para ajudar nas vendas.
Desta vez, ele explica os mecanismos que ele próprio utiliza para tecer estratégias de branding (fortalecimento de marca). O caso da fabricante de brinquedos Lego é um de seus principais trunfos. No início do século, a Lego estava em crise. Todos os estudos que encomendava lhe diziam que a necessidade das novas gerações por gratificação imediata era mais potente do que qualquer bloco de construção poderia suprir. Até que, em 2004, um de seus times visitou um menino de 11 anos, numa cidade de tamanho médio na Alemanha.
O garoto, além de aficionado por montar Legos, era também skatista. Quando lhe perguntaram qual o seu objeto preferido, apontou um tênis velho, gasto nos lados. Por quê? O tênis era não apenas um objeto de estimação, era uma evidência de suas habilidades. Ele estava gasto em pontos que demonstravam que ele sabia fazer manobras difíceis no skate.
A partir daí, o time de Lindstrom percebeu que gratificação imediata não era exatamente o que a nova geração buscava. Mais importante para o status de um moleque era atingir e demonstrar um alto nível de maestria em alguma atividade de sua escolha.
Com base nesse insight, diz ele, a Lego focou em seu produto principal. E ainda criou peças de montagem mais difícil, mais detalhada, que exigiam mais trabalho. Dez anos depois, com o sucesso do filme Uma Aventura Lego, as vendas subiram 11%, para 2 bilhões de dólares, e a Lego ultrapassou a Mattel para se tornar a maior fabricante de brinquedos do planeta, em receita.
Trens que não andam e espelhos-câmeras
O trabalho de campo – as visitas a casas de pessoas – é crucial, segundo Lindstrom, para corrigir as percepções frias dos números e identificar desejos latentes, que possam ser supridos pela empresa.
Um exemplo de conclusão equivocada a partir das estatísticas, apenas, vem da Dinamarca. Após estranhar que o país esteja no topo de várias listas de felicidade e ao mesmo tempo um quarto das mulheres se defina como extremamente estressada, Lindstrom conta o exemplo dos trenzinhos.
Pesquisas haviam identificado que muitas casas de dinamarqueses têm, na sala, trilhos de trem da marca Brio, que carregam uma imagem de ambiente lúdico e construtivo para as crianças. Suas visitas, porém, levantaram que a maioria desses trenzinhos estava intacta – a imagem era exatamente isso: uma imagem, não uma realidade. Algo semelhante ao termo Conversation Kitchen (cozinha para conversas), com que pessoas da indústria de móveis do país se referem às cozinhas que são mais para entretenimento de convidados do que para cozinhar.
Para a indústria, é essencial identificar qual desejo você vai atender. No caso das cozinhas, beleza e impacto vêm na frente de praticidade e poder de cocção.
No caso de uma marca de roupas franco-suíça, a Tally Weijl, a turma de Lindstrom visitou várias casas de meninas no início da adolescência. Descobriu que elas mantinham apego a seus ursinhos de pelúcia, mas já tateavam o mundo da sensualidade (uma conclusão que talvez não necessitasse de nenhuma visita, mas Lindstrom a apresenta como um grande insight).
Sua próxima percepção foi mais inusitada. O trabalho de campo – em conjunto com a análise das contas de telefone das famílias – revelou que as meninas mandavam várias mensagens de manhãzinha, antes de ir para a escola. Elas estavam enviando selfies para as amigas, perguntando se a roupa que haviam escolhido estava boa.
Para dar um impulso à marca, a Tally montou uma loja conceito em Viena (Paris era caro demais). Ali, deram ênfase ao coelhinho rosa símbolo da empresa, um apelo ao lado ainda infantil de seu público alvo. Mas também fizeram um setor de “melhores amigas”. Do lado de fora, uma sala de espera para namorados. Dentro, vestuários com enormes espelhos que são, na verdade, telas com câmeras. Ao toque, elas permitem que a cliente se conecte via rede social e envie fotos com as roupas que experimenta – permitindo uma aprovação ou desaprovação social imediata. Além disso, a loja é repleta de câmeras em vários ângulos, para fazer as meninas se sentirem estrelas. Segundo Lindstrom, a loja-conceito é um sucesso.
O sistema dos 7C
Como se cumprisse os estereótipos do marketing, nem tudo o que Lindstrom fala deve ser tomado ao pé da letra. No livro Buyology (uma brincadeira com os termos buy, comprar, e biology, biologia, que se perdeu na tradução brasileira, A Lógica do Consumo ), em que explora a aplicação de neurociência ao marketing, Lindstrom fez uma experiência de ressonância magnética com fumantes e, a partir dela, afirma que os anúncios contra o fumo na verdade encorajam as pessoas a fumar – as áreas de desejo do cérebro “acendem” quando são expostos aos anúncios. Trata-se de uma conclusão veemente, com base em um estudo de poucos indivíduos, cujo resultado pode ter outras interpretações (os fumantes podem ficar com desejo, mas resistir a ele; os fumantes menos viciados podem reagir de outra forma; os fumantes podem se render ao desejo mas se convencer de que precisam de ajuda para largar o vício).
Outro estereótipo do marketing que Lindstrom aplica sem moderação é o autoelogio. Assim como em livros anteriores, ele nos lembra que passa mais de 300 noites por ano em hotéis ou aviões, que já visitou milhares de famílias em 77 países, que montou sua primeira agência aos 12 anos. Narra seus sucessos com uma pitada de exagero e sua principal fonte é ele mesmo.
Obviamente, recomenda-se cuidado na ingestão de seus conselhos. Mas sua experiência é de fato valiosa. A mera exposição a tantas realidades diferentes, em situações tão íntimas, conferem a ele um manancial de informações e sensações muito rico.
No capítulo final de Small Data, Lindstrom explica a metodologia que chama de 7C:
- coletar informações, com perspectivas diversas do maior número possível de pessoas confiáveis. Estrangeiros, imigrantes, de preferência gente que mantenha um olhar de estranhamento em relação àquela sociedade;
- buscar pistas (em inglês, clues, o segundo C), nos locais mais inusitados: armários, banheiros, quartos, fotos, amuletos. A ideia é encontrar o “eu idealizado”, as pessoas que as pessoas acham que são ou querem ser;
- conectar as pistas, em busca de uma história.
- buscar a causa. É o que ele chama de small mining, mineração pequena: tentar encontrar a emoção por trás da história;
- buscar a correlação dessa emoção com algum momento da vida, em geral algum que tenha proporcionado mudança de hábitos (casamento, saída de casa, primeiro filho…);
- entender a compensação: qual desejo que não está sendo satisfeito naquela situação? (no caso da Tally, uma junção do ambiente físico com a conexão digital; no caso da Lego, status);
- criar um conceito, uma grande ideia capaz de trazer essa compensação.
Para leitores brasileiros, um exemplo local ajuda a colocar as propostas de Lindstrom em perspectiva. No novo livro, ele cita seu trabalho recente com a cerveja Devassa, da Brasil Kirin. Mais uma vez, cita uma small data – garçons brasileiros e italianos servem cerveja da mesma forma, com a garrafa quase na vertical – para chegar a uma conclusão trivial: brasileiros e italianos têm muito em comum.
A estratégia, que ainda deve ser implementada, consiste em adotar, nos bares Devassa, um ritual próprio: garrafa especial, garçons instruídos a oferecer copos com pitadas de algum sabor na borda, do sal ao chocolate, e uma caixa preta com um bloco ao lado, para os clientes anotarem suas preocupações e as depositarem na caixa enquanto estão no bar. Também haverá embaixadores da marca, para fortalecer o apelo à classe B.
Lindstrom se diz otimista com a estratégia, como não poderia deixar de ser. Mas o desafio é grande. A Devassa sofreu com a crise e suas vendas decepcionantes no país contribuíram para que a Kirin tivesse seu primeiro prejuízo global em quase 70 anos de existência.
(David Cohen)