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METROPOLE EM TRANSE

O setor de serviços e o trabalho feminino avançam, mas falta uma política para estimular as atividades com maior potencial de gerar emprego

EXAME.com (EXAME.com)
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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 11h05.

Na Grande São Paulo, os bairros parecem cidades, as cidades se assemelham a estados e a região inteira é uma nação com 18 milhões de habitantes. Em população, é um "país" maior que o Chile. A gigantesca metrópole é também uma terra em transe. Estão ocorrendo mudanças na estrutura de emprego, na renda familiar, no crescimento populacional e no perfil de consumo das diferentes classes sociais. Essas mutações criam e destroem oportunidades e deixam atordoados governos, cidadãos, analistas e empresas.

O pano de fundo da metamorfose paulistana é a sua incrível transformação econômica. A orgulhosa metrópole industrial foi substituída por um ainda envergonhado centro financeiro e de serviços. O melhor indicador desse fenômeno é o emprego industrial: depois de atingir 36% da população economicamente ativa no Plano Cruzado (1986), caiu para apenas 20% em 2000, segundo a Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), do Seade/Dieese. No mesmo período, a participação do setor de serviços passou de 47% para 60%. Entre as causas da mudança destaca-se a importante transformação técnica da indústria. Ela consegue hoje empregar menos, por meio da subcontratação e da terceirização de serviços. Além disso, observa-se uma importante migração de determinados segmentos industriais (como o têxtil e o alimentício) para outras regiões. Todos reconhecem -- especialmente no ABC -- que há uma crise estrutural no emprego industrial. A discordância começa quando se discutem seus efeitos sociais. Por isso, é fundamental fazer uma avaliação mais precisa das conseqüências da grande transformação.

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DO OPERÁRIO AO MOTOBOY
Do ponto de vista social, o emprego industrial é tipicamente masculino, sindicalizado e com carteira assinada. Já o emprego nos serviços é mais feminino, intermitente e informal. Em 1985, 52% das mulheres (de 20 a 59 anos) da região pertenciam à população economicamente ativa. Em 2000, a proporção já era de 66%. Muito rapidamente o operário de macacão e a doméstica foram substituídos pelo motoboy e pela atendente de telemarketing como símbolos do trabalhador paulistano.

A crise no emprego industrial teve impacto no nível de renda pessoal, mas não necessariamente na renda familiar. Embora o rendimento médio do chamado "chefe de domicílio" venha caindo -- atingiu agora um nível inferior ao do início do Plano Real --, a renda média familiar vem se comportando melhor graças quase exclusivamente ao aumento do emprego feminino (veja gráfico). O forte aumento do trabalho feminino explica o estranho paradoxo: a renda familiar manteve-se mesmo nos momentos de crise, apesar da queda mais acentuada do rendimento individual (masculino), decorrente da derrocada do emprego na indústria. Não por acaso, os governistas escolhem a renda familiar como indicador. A oposição, a renda individual. Ambos subestimam a intensidade e a importância da transformação por que passamos.

Nesse cenário de rápida mudança social, a proporção de famílias com renda superior a dez salários mínimos caiu de 33% em 1997 para 27% em 2000. Em outras palavras, é provável que a crise do emprego industrial seja também a crise da chamada classe B. O fenômeno se agrava com a falta de correção da tabela do imposto de renda, com a defasagem dos salários do funcionalismo público e com o aumento desproporcional do preço das escolas e dos planos de saúde, serviços típicos da classe média. De fato, com exceção da moradia, a evolução dos preços desde o início do Plano Real está favorecendo os grupos de baixa renda. Preços de itens de consumo popular, como alimentação e vestuário, cresceram nos últimos anos muito abaixo da inflação. Em conseqüência das mudanças nas estruturas de preços e de renda, o volume de recursos disponíveis para o consumo e a massa salarial das classes populares mantiveram-se mesmo depois da crise cambial de 1998-1999, em contraste com o que ocorreu com a renda disponível para a classe média.

Além da crise da classe B, outra característica da metrópole é o grande número de jovens de baixa renda. Em 2000, 60% das pessoas com renda familiar inferior a dez salários mínimos em São Paulo tinham menos de 30 anos (contra 47% daquelas com renda familiar superior a dez salários). Uma importante parcela dessa população de menor renda tem entre 20 e 30 anos. Há hoje muitos jovens entrando no mercado de trabalho, casando-se e buscando moradia. Entre os jovens casais de menor renda produzem-se também novos arranjos familiares. Predominam agora as famílias pequenas. É também maior a proporção de pessoas que moram sozinhas e de famílias pobres chefiadas por mulheres. Quando têm menos filhos e duas fontes de renda no domicílio, as novas famílias driblam melhor a instabilidade no emprego e concebem novas formas de consumir.

FREIO NO BABY BOOM
A Grande São Paulo passa por uma importante queda na fecundidade. Atualmente, segundo o IBGE, o número médio de filhos por mulher aproxima-se de 2, situando-se em torno da chamada taxa de reposição da população. Com essa queda e a simultânea redução dos saldos migratórios, ocorre outra importante mudança demográfica: a diminuição do ritmo de crescimento populacional. A taxa anual de crescimento na década de 90 foi de 1,8% ao ano, longe do alucinante ritmo dos anos 70 (4,5%). O índice está agora mais próximo da média nacional.

Para o olhar atento, porém, destacam-se as intensas mudanças demográficas dentro da metrópole. Na década passada, a população no centro da cidade de São Paulo diminuiu em termos absolutos, enquanto a da periferia da capital e dos municípios no entorno continuou a apresentar acentuado crescimento (veja mapa). A destruição e produção de novos espaços e mercados urbanos atingiu vários segmentos empresariais, como o varejo e os serviços em domicílio (telefonia, energia, gás, saneamento). Houve impactos também no setor de transportes e na área habitacional.

Apesar da crise do emprego industrial, todos os dados sugerem que, comparado ao restante do Brasil, o principal drama social de São Paulo não está na questão da renda. Os problemas sociais mais urgentes concentram-se na área habitacional. Esta outra crise está relacionada à perversa dinâmica demográfica intra-urbana, às mudanças no padrão de ocupação do solo e aos preços da habitação. Os mais pobres preservaram sua renda disponível, mas esta não é suficiente para assegurar moradia. Depois do Plano Real, morar em São Paulo ficou mais difícil e mais caro. Desde julho de 1994 os custos da habitação cresceram 191%, enquanto a inflação ficou em 100%, segundo o índice Fipe. A favela e o cortiço vão se tornando cada vez mais onipresentes. Isso mostra que uma política habitacional verdadeiramente ativa, além de gerar mais emprego e renda, teria o poder de rebaixar os custos de habitação, o que aumentaria a renda disponível para consumo e melhoraria as condições de vida.

PASSADO SEM VOLTA
Chorar sobre o leite derramado da perda de postos de trabalho na indústria não mudará a metrópole. Não há política industrial que faça o emprego nesse segmento retornar aos níveis dos anos 80. A saída está em dinamizar o setor de serviços modernos, que vêm conquistando terreno no mundo inteiro. Serviços domésticos e em áreas de limpeza e segurança não são capazes de produzir um efetivo aumento na proporção de trabalhadores registrados, bem remunerados e capacitados, de que a metrópole tanto necessita. Esses empregos são gerados nos chamados "serviços produtivos", relacionados a atividades como informática, comunicação, marketing, pesquisa e desenvolvimento, serviços financeiros e internet.

Não por acaso, Rio de Janeiro e Curitiba tentam se reposicionar nesse terreno por meio de uma combinação entre políticas de renovação urbanística, marketing e busca de novas vocações empresariais. Belo Horizonte e Florianópolis tratam de apoiar agressivamente o setor de software, com a isenção do ISS e outros instrumentos de atração de empresas. São Caetano, Santo André e Barueri reduziram drasticamente a alíquota desse imposto e conseguiram captar importantes investimentos. E São Paulo? Nossa cidade nunca teve uma política consistente nesse campo. Aqui a ação municipal tem se resumido à mera condenação da guerra fiscal. São Paulo apresenta evidentes vantagens competitivas no segmento de serviços modernos, mas é preciso resgatar com urgência a função pública de planejar: além de ordenar o uso e a ocupação do solo, o poder público precisa induzir localmente as atividades mais dinâmicas do setor de serviços, a fim de estimular seu potencial para gerar bons empregos e renda.

Haroldo da Gama Torres é demógrafo e doutor em ciências sociais, consultor da Popular Comunicação e do Data Popular e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole - CEM (Cebrap/Seade)

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