STRAUSS: pensador morto em 1973 estudou a improvável tradição filosófica judaica para jogar luz sobre a relação entre filosofia e ordem política / Reprodução
Da Redação
Publicado em 22 de outubro de 2016 às 08h35.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h03.
Perseguição e a Arte de Escrever – e outros ensaios de filosofia política
Autor: Leo Strauss.
Editora: É Realizações. Páginas: 208
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Joel Pinheiro da Fonseca
Momentos de crise política e econômica sempre são acompanhados de um maior interesse pela filosofia e maneiras correlatas de se tratar as grandes questões da humanidade. As relações de mão dupla entre filosofia (ou pensamento livre de maneira geral) e política nunca foram fáceis. O Brasil nunca foi – mesmo em seus momentos mais repressores no Estado Novo e na ditadura militar – um expoente na prática da censura do pensamento; ao mesmo tempo, o pensamento que se cultivou aqui foi sempre mal-sucedido em ter alguma relevância na esfera política. Para mim, um liberal, é impossível não lembrar que aquele que foi o maior pensador liberal de fins do século 20, José Guilherme Merquior, deixou-se entusiasmar e foi levado a apoiar ativamente o governo Collor, que não cumpriu a promessa do liberalismo social por ele defendido.
O filósofo judeu alemão radicado nos EUA, Leo Strauss, vinha de uma outra cultura política, em que as ideias poderiam ser radicalmente banidas e nas quais, ao menos aparentemente, diferentes ideologias produziam atuações políticas muito diferentes. Adotando os EUA como lar depois de fugir da perseguição nazista, viu na democracia liberal o grande veículo para a manutenção de seus valores, sem nunca deixar de ser um filósofo puro sangue: alguém preocupando antes de tudo com o mundo das ideias e sua história. Em “Perseguição e a Arte de Escrever – e outros ensaios de filosofia política”, originalmente publicado em 1952 e lançado no ano passado pela É Realizações, Strauss estuda a improvável tradição filosófica judaica para jogar luz sobre a relação entre filosofia e ordem política.
O judaísmo e o islã, ao contrário do cristianismo – segundo o argumento de Strauss – nunca tiveram uma relação próxima com a filosofia; pelo contrário, a atividade filosófica especulativa não teria, a princípio, qualquer espaço na organização social sagrada que é o objeto primário dos ensinamentos dessas duas religiões. Ao invés de dogmas acerca do mundo espiritual, a revelação no judaísmo e no islã vem para dar uma lei aos homens e criar um povo que vive segundo essas leis.
O cristianismo nasceu filosofando, usando dados da fé para inquirir acerca do universo e incorporando a teologia – parte da filosofia que investiga acerca de Deus, agora partindo de conteúdos das escrituras sagradas – ao próprio corpo doutrinário desde os primeiros séculos e as primeiras desavenças doutrinas. Isso, por um lado, deu ao pensamento cristão uma certa continuidade com os conceitos e termos da filosofia grega e latina. Por outro, tornou a atividade filosófica submissa à autoridade espiritual, matando muitas vezes o espírito investigativo e necessariamente livre que toda filosofia precisa ter.
No judaísmo e no islã, ao contrário, a filosofia sempre foi vista com suspeita, e era preciso a todo momento provar a legitimidade da filosofia. Chegava-se a dizer que era preciso escolher: ou se era filósofo ou se era judeu. Ao mesmo tempo, ela estava livre para voar solta, sem inquisições acerca de sua ortodoxia, desde que o filósofo mantivesse a adesão formal à religião e à lei revelada. Pague o pedágio às autoridades, e você pode pensar o que quiser, desde que não cause escândalo. A obra escrita continha, assim, dois níveis de leitura: um significado para as massas, ou exotérico, baseada no sentido literal e direto do texto; e outro apenas para os filósofos, esotérico. Na filosofia islâmica, isso deu origem à chamada doutrina das “duas verdades”, as verdades da fé e as da razão, que poderiam inclusive se contradizer – algo impensável na filosofia e na teologia cristãs.
Em “Perseguição”, Strauss, depois de delinear esta visão básica na introdução, se debruça sobre a obra de três importantes filósofos judaicos da Idade Média e do início da Idade Moderna: Halevi, Maimônides e Espinosa. Nos três casos, uma linguagem às vezes espiritual esconde um pensamento bastante racionalista, livrando-se da censura sem abrir mão de seu pensamento. Essa dualidade é necessária porque, ao mesmo tempo em que a religião oficial é uma ameaça ao pensamento genuíno, ela é também a fonte de vida do restante da população, e aboli-la seria o mesmo que abolir o povo.
O livro interessará certamente a todos os que estudam história da filosofia, mas seu apelo não para aí. As consequências políticas do pensamento de Leo Strauss continuam a se sentir no mundo atual. Ele foi, afinal, não apenas um estudioso do passado, como seu teve influência direta sobre figuras importantes da política americana. Estou falando dos intelectuais do chamado “neoconservadorismo”, como Irving Kristol, Daniel Bell, Gertrude Himmelfarb e Francis Fukuyama. Supostamente, o governo de George W. Bush representou a chegada ao poder do neoconservadorismo.
Seguindo Platão – que de acordo com Strauss foi a principal influência dos pensadores muçulmanos e judeus na esfera política, ao contrário da influência decisiva de Aristóteles e Cícero no ocidente cristão -, os neoconservadores veem a necessidade de um governo de poucos que guie as massas, usando até mesmo nobres mentiras quando o bem da comunidade o exige. E ainda segundo o argumento Straussiano, a democracia liberal, apesar de suas fraquezas, é o melhor sistema de governo para a filosofia, ainda que tenha que ser defendida de maneiras não democráticas, como a guerra. Todo Estado tem alguma religião ou mitologia que o sustenta, e como a mitologia americana é a única chance de salvar o mundo da pura tirania, a defesa ativa dos interesses norte-americanos no globo é uma pauta de primeira necessidade. Aí temos a guerra da Iraque.
No Brasil, temos larga experiência política com a tensão entre exotérico e esotérico. No plano exotérico, nossa casta de governantes é preocupada com o bem comum e apresenta as posições mais avançadas e progressistas em voga na Europa e nos EUA. Na prática, elas são sempre colocadas a serviço do jogo de poder mais venal e descarado. Não está claro que haja, como acreditava Strauss, nenhuma ligação entre filosofia (da qual, é verdade, temos pouca) e política. De duas, uma: ou a conexão não existe mesmo e o Brasil é apenas uma exposição mais evidente da ilusão que governa o mundo todo; ou então nós é que vivemos em um estado de entropia moral tão gritante que formas de vida institucional normais do resto do mundo não conseguem se desenvolver. Mas não custa sonhar que, mesmo no ambiente hostil à vida do intelecto, a ponte entre a discussão do bem comum e a política possa ser estabelecida, ainda que nas entrelinhas.