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Energia e riqueza na Amazônia

No rio Madeira, a hidrelétrica de Santo Antônio, primeira grande usina construída no país em três décadas, mostra que a exploração energética da Amazônia - região que concentra dois terços do potencial hídrico do país - pode ser feita com impacto reduzido

A usina de Santo Antônio avança em meio à floresta: o rio Madeira deverá ser o sexto polo hidrelétrico do mundo (./Divulgação)
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Da Redação

Publicado em 13 de maio de 2010 às 15h13.

Sete quilômetros a sudoeste de Porto Velho, capital de Rondônia, o rio Madeira faz uma curva caprichosa em forma de cotovelo. Ali, em sua margem direita, esquecida no meio do mato, desponta a carcaça dos vagões da estrada de ferro Madeira-Mamoré, erguida há um século por encomenda do governo brasileiro para cumprir um acordo com a Bolívia. Hoje, a sucata testemunha a construção da usina hidrelétrica de Santo Antônio, um dos maiores e mais desafiantes canteiros de obras do país. A empreitada, de 13,5 bilhões de reais, é comandada pela construtora Odebrecht em parceria com a Andrade Gutierrez. Em meio à insalubridade equatorial, driblando o calor, os mosquitos e as tempestades, mais de 8 000 homens e mulheres, 7 000 deles de Rondônia, encaram uma jornada frenética. Enquanto equipes de detonação e escavação se revezam esculpindo o granito do leito e das margens do rio para receber a barragem, outras se equilibram como alpinistas, escalando até 50 metros para costurar o esqueleto de aço que irá abrigar as turbinas da hidrelétrica. Logo que a armação metálica termina, começa a concretagem. Quando estiver pronta, a hidrelétrica terá consumido 3,1 milhões de metros cúbicos de concreto, o suficiente para colocar de pé 37 estádios como o Maracanã. Ao contrário da ferrovia Madeira-Mamoré - um projeto deficitário erguido em regime de trabalho semiescravo e desativado nos anos 60 -, a usina de Santo Antônio está cercada de cuidados para não dar errado. "Não temos o direito de fracassar", diz Marcelo Odebrecht, presidente do grupo Odebrecht. "O sucesso de Santo Antônio é indispensável para consolidar a nova fronteira hidrelétrica do país."

ser construída desde os anos 80, quando foram inauguradas Itaipu e Tucuruí, Santo Antônio nasce com três missões de vulto. A primeira é fornecer parte da energia limpa que o Brasil precisará para crescer nas próximas décadas. Em 2014, quando tiver suas 44 turbinas acionadas pelas águas velozes e barrentas do Madeira, a usina deverá produzir energia suficiente para atender 10 milhões de pessoas. Ainda que a região centro-sul do país venha a ser a maior consumidora, a Amazônia também será beneficiada. Hoje, a termelétrica de Porto Velho, que abastece boa parte de Rondônia, consome 1 milhão de litros de óleo por dia. Com energia limpa, Rondônia, um estado que já teve 40% das florestas devastadas para abrigar 12 milhões de cabeças de boi, poderá desenvolver uma economia mais sustentável. A segunda missão é provar que um megaprojeto de infraestrutura como esse pode ser feito em ple na Amazônia, que concentra dois terços do potencial hídrico inexplorado do país e é também o mais rico e vulnerável de seus biomas. À frente desses desafios está o consórcio concessionário da usina, o Santo Antônio Energia - formado pelas estatais Furnas e Cemig, pelo fundo FI FGTS, que é administrado pela Caixa Econômica Federal, pelo banco Banif e pelos grupos Odebrecht e Andrade Gutierrez.

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O consórcio, vencedor da licitação promovida em 2007 pelo governo, investe 900 milhões de reais num programa que cobre desde formação de mão de obra local e construção de moradias, escolas e hospitais até reflorestamento. "O projeto de Santo Antônio e sua gestão socioambiental devem se tornar uma referência na construção de hidrelétricas, que historicamente têm impacto bastante negativo sobre as populações ribeirinhas", diz Ricardo Young, ex-presidente do Instituto Ethos, dedicado à governança corporativa. Antes cético em relação à obra, ele mudou de opinião após visitála. Em Porto Velho, operários também se mostram satisfeitos com a construção. "Isso aqui dá um trabalhão, mas compensa", diz João Paulo Wakaritiana, de 32 anos, da equipe de concretagem. "Além do salário, gosto de ver tudo isso brotando no meio do rio." Pai de cinco filhos, Wakaritiana, descendente da tribo indígena caritiana, ganha cerca de 1 000 reais por mês e sonha com a compra de uma TV e mobília para sua casa.

Finalmente, o terceiro objetivo da obra é a geração de lucros para o consórcio Santo Antônio Energia. A usina é um projeto estratégico para o grupo Odebrecht, dono da maior construtora do país e de um faturamento de 19 bilhões de dólares por ano, com negócios que incluem produção de etanol e petroquímica. "Estamos deixando de ser apenas uma construtora de hidrelétricas para ser também um forte investidor em geração de eletricidade", diz Marcelo Odebrecht. Diferentemente de outras grandes empreiteiras, como a Camargo Corrêa e a Queiroz Galvão, que começaram a investir na geração de energia nos anos 90, só no início da última década a Odebrecht passou a se interessar pelo setor. "Esse é um ramo em que, em razão do know-how, as grandes construtoras têm um interesse cada vez maior em atuar também como investidoras", diz Jerson Kelman, ex-diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e atual presidente da Light.

Em termos de escala, hoje o canteiro de obras de Santo Antônio só encontra paralelo na vizinha hidrelétrica de Jirau, de 3 300 megawatts. Leiloado em 2008, Jirau, um projeto liderado pelo grupo Suez e que é erguido pela Camargo Corrêa no mesmo rio, a 120 quilômetros de Porto Velho, encontra-se em estágio ligeiramente anterior. Santo Antônio deve começar a gerar energia em dezembro de 2011 - um ano antes do prazo fixado - e Jirau deve fazê-lo no primeiro semestre de 2012. Ambos os consórcios apertam o passo para entregar as obras o quanto antes e antecipar a geração de energia. Um dos principais desafios para cumprir os novos prazos de Santo Antônio é a lista de 33 exigências impostas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) para conceder a licença de construção, entre as quais a de proteção dos peixes e a de monitoramento da vazão dos sedimentos do rio. Hoje, tudo indica que Santo Antônio ficará pronta mais cedo que o previsto. Isso vai favorecer o fluxo de caixa do negócio, porque o consórcio poderá vender livremente toda a energia que for produzida antes de dezembro de 2012. Após esse prazo, pelas regras da concessão, 70% da energia gerada terá de seguir para o mercado cativo, controlado pelo governo, por 79 reais o megawatt-hora. Especialistas estimam que, com a antecipação, os sócios de Santo Antônio poderão ganhar 1 bilhão de reais extras.


A opção por adiantar o cronograma deriva do conhecimento que os construtores acumularam sobre o rio. Desde 2001, na época do apagão, a Odebrecht e a estatal Furnas investiram 200 milhões de reais no levantamento hidrológico e geológico do Madeira. De posse do inventário, o consórcio Santo Antônio escolheu a localização mais vantajosa para a usina. "Na hora de cravar o lugar da barragem, a qualidade do terreno é um dado crucial", diz José Bonifácio Pinto Júnior, superintendente da construtora Odebrecht. "Se a rocha do lugar for pobre, o alicerce vai demandar mais aço e concreto, inflando os custos e podendo até inviabilizar o projeto." No caso de Santo Antônio, a curva em forma de cotovelo do Madeira foi escolhida a dedo porque possui uma pedreira de granito, terreno perfeito para servir de berço à hidrelétrica. O trabalho de perfuração da rocha, para receber bananas de dinamite em gel, conta com a presença da bela morena Solange Nascimento, de 21 anos. Musa do canteiro de obras, Solange alterna 8 horas de trabalho com o curso de direito à noite, e há sete meses pilota uma perfuratriz. "É uma tarefa de alta precisão", diz. "Levo 20 minutos para fazer um furo de 3 polegadas com 13 metros de profundidade." Até o fim do projeto, 20 milhões de metros cúbicos de granito, em tons de branco, rosa e cinza, serão removidos do rio.

Para ganhar tempo, de agora em diante o canteiro de obras deverá ganhar um ritmo ainda mais rápido, com a contratação de mais 3 000 operários até o fim do ano. Atualmente, em meio a uma zoeira infernal, 500 veículos pesados, entre tratores, guindastes e caminhões, circulam no canteiro. Tal operação de guerra exige uma coordenação fina entre o consórcio Santo Antônio e os supridores de matéria-prima e maquinário. Dois dos fornecedores vitais se instalaram em Porto Velho. Um deles é uma fábrica de cimento da Votorantim, inaugurada em outubro. O segundo, em operação desde janeiro, é a Indústria Metalúrgica e Mecânica da Amazônia, uma sociedade entre os grupos Bardella e Alston que montou a primeira fábrica de turbinas da região. Feitas sob medida para Santo Antônio e Jirau, as turbinas bulbo são uma novidade em hidrelétricas de grande porte no país. Elas são adequadas a quedas d'água inferiores a 25 metros de altura, como é o caso da corredeira de Santo Antônio, que tem 14 metros de altura. Ao contrário das turbinas de eixo vertical, como as usadas em Itaipu, onde a queda é de 120 metros, as do tipo bulbo funcionam na posição horizontal e trabalham submersas. Apesar do rendimento 30% inferior na geração, são mais indicadas para a Amazônia porque exigem represas menores. Na usina de Santo Antônio, o reservatório formado nas cheias ocupará 110 quilômetros quadrados. A usina de Balbina, construída no estado do Amazonas nos anos 80 e detentora do triste recorde de maior desastre ambiental causado por uma hidrelétrica no país, formou um lago 20 vezes maior - e Balbina gera menos de um décimo da energia prevista para Santo Antônio. "As usinas do Madeira nascem como as mais eficientes de grande porte do país", diz Maurício Tolmasquin, presidente da Empresa de Pesquisa Energética, braço do Ministério de Minas e Energia. Em boa medida, a eficiência resulta da alta velocidade do rio Madeira, nascido na cordilheira dos Andes, na Bolívia. Domar esse rio não é fácil. Célebre pela fúria das águas, durante as cheias o Madeira arrasta árvores de até 30 metros de altura. É daí que vem seu nome. Para evitar que os troncos sejam tragados pelas turbinas, danificando-as, Santo Antônio terá uma engrenagem de interceptação próxima à barragem. Já para os peixes - os famosos bagres, pivôs do moroso processo de licenciamento ambiental da obra - haverá duas escadas em forma de serpentina e com fundo irregular. Elas vão simular a antiga corredeira de Santo Antônio, permitindo que os peixes cruzem a barragem rumo à cabeceira do rio na desova.


A usina já traz benefícios palpáveis para Rondônia. Em seu pico, no fim do ano, a obra terá 11 000 empregados diretos e 35 000 indiretos. Ao longo da construção, 1,4 bilhão de reais serão injetados na economia local na forma de salários e 225 milhões em impostos para Porto Velho. A Odebrecht investe 12 milhões de reais no programa Acreditar, uma parceria com o Senai para treinar 23 000 operários. Desde o começo do ano, seus filhos adolescentes têm 16 cursos gratuitos, nos quais aprendem ofícios como carpintaria e mecânica, além de noções de informática, segurança no trabalho e preservação ambiental. Antes vendedora ambulante em Porto Velho, aos 32 anos, Edite Matos, que na virada do ano se formou no Acreditar, agora é armadora no canteiro de obras. Escalando alturas de até 30 metros de altura, seu ofício consiste em erguer os pilares de ferro que vão sustentar as turbinas. "Amarrar as vigas com arame é muito parecido com costurar", diz Edite. "Depois que você perde o medo, o trabalho é mais fácil do que parece. O chato é aguentar a gozação da peãozada." Mãe de dois filhos, ela está radiante com o salário de 1 000 reais. Aliás, o aquecimento da economia é visível em Porto Velho, cidade de 350 000 habitantes que há um ano ga nhou o primeiro shopping center de Rondônia. O centro comercial tem sala de cinema 3D e suas escadas rolantes se tornaram uma atração turística no estado. Daqui a dois anos, os rondonienses ganharão um cartão-postal ainda mais charmoso. Trata-se da revitalização, bancada pelo consórcio Santo Antônio, de um trecho de 7 quilômetros da antiga linha Madeira-Mamoré, ligando Porto Velho à hidrelétrica. Antes conhecida como a "ferrovia do diabo", por ter matado milhares de trabalhadores de fome e de malária, a maria-fumaça, em sua segunda encarnação, ainda será um símbolo do passado, mas desta vez sustentado pela nova infraestrutura que o país leva à Amazônia.


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