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Assentamento zero

O sucesso do governo Lula no campo será tanto maior quanto mais distante ficar das metas de distribuição de terras

EXAME.com (EXAME.com)
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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 11h24.

É um desses casos raros em que a falta de recursos, a inépcia do poder público para executar qualquer tarefa e outras dificuldades da vida acabam sendo uma bênção. Se o Brasil e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tiverem sorte, o atual governo, ao fim de quatro ou de oito anos, fará só metade dos assentamentos rurais que o governo Fernando Henrique fez, ou diz que fez. Se tiverem muita sorte, fará menos ainda, e assim por diante -- numa progressão em que o sucesso do governo será tanto maior quanto mais distante ele ficar de suas metas, sejam elas quais forem, de distribuição de terras. Um bom sinal parece ter surgido nos comentários mais recentes que o presidente fez sobre o assunto, durante um café da manhã com jornalistas. "Não queremos uma disputa de números para saber qual governo assentou mais", disse Lula. Deus o ouça.

O ideal, mesmo, seria executar um programa "Assentamento Zero". Como esse projeto não existe, a saída é ter fé na incapacidade do governo em fazer a "reforma agrária" como ela é geralmente entendida no Brasil -- dar lotes de terra a quem se organiza em acampamentos na beira da estrada ou invade propriedades rurais, mandar cestas básicas para as pessoas terem o que comer nos assentamentos e, a partir daí, esperar que funcionários de uma meia dúzia de repartições públicas resolvam os "detalhes". Não vai dar certo nunca, seja qual for o governo que se proponha a fazer isso e, quanto menores forem as condições práticas para se continuar nessa balada, melhor para todos.

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No tumulto mental estabelecido em torno da questão agrária, Fernando Henrique e o PSDB se orgulham de um desastre. Em seu governo foram assentadas 500 000 famílias no campo -- ou até mesmo 635 000, segundo outros cálculos. Gastaram nisso 25 bilhões de reais. Cerca de 18 milhões de hectares, uma área equivalente a meia Alemanha, foram desapropriados ou comprados pela União e entregues aos sem-terra entre 1995 e 2002. Por qualquer critério que se escolha, em relação ao atual ou aos presidentes que vieram antes dele, o governo FHC está disparado na frente da corrida: mais famílias assentadas por ano, mais dinheiro (do público) gasto por família, mais financiamento por lote demarcado, mais isso, mais aquilo. O problema com essas cifras todas está naquilo que produziram de bom na prática. Com base nelas, o antigo governo acha que distribuiu terras, quando o que conseguiu mesmo, na vida real, foi distribuir miséria.

Os assentados durante os últimos oito anos, salvo algumas exceções, têm tirado da terra que receberam do governo uma renda pouco maior que um salário mínimo mensal, ou nem isso. Muitos continuam a sobreviver com a doação de cestas básicas, pois não conseguem produzir o suficiente para se alimentar. Vivem, na maioria dos casos, em favelas rurais. Não podem pagar agrônomos, sementes, máquinas, fertilizantes, defensivos químicos e todos os demais itens indispensáveis para trabalhar de maneira produtiva. Cerca de 30% já venderam os lotes que ganharam, ou desistiram deles. A maioria dos que ficaram, enfim, está reduzida a uma situação de pedintes, sempre na dependência de doações de alguma autoridade -- Incra, Banco do Brasil, prefeituras, Fome Zero. As coisas não estão desse jeito porque o governo Fernando Henrique quis ou porque o governo Lula é insensível. Estão assim porque é isso mesmo que acontece, e continuará acontecendo, com todas as tentativas de eliminar o atraso rural através da assinatura de papéis que transferem propriedade -- na crença de que as pessoas são pobres porque não têm terra, quando são pobres porque não têm condições de ganhar uma vida decente com o trabalho na agricultura.

Transferir títulos de propriedade sem transferir junto a capacidade de trabalhar a terra de maneira que ela produza renda real pode gerar belas estatísticas, mas na prática acaba não servindo a nada que preste. Para o presidente da República e para todos os membros do seu governo que gostariam sinceramente de melhorar as coisas, seria muito útil investir uns 15 minutos na leitura de uma reportagem publicada no início do mês de julho pelo repórter Luís Maklouf Carvalho no jornal O Estado de S. Paulo. É muito menos do que se precisa para ler qualquer relatório oficial e vale muito mais. A reportagem mostra o que aconteceu, no mundo dos fatos, com o projeto de "reforma agrária" feito pelo governo na Fazenda Itamarati, no Mato Grosso do Sul.

Metade da antiga Fazenda Itamarati que pertencia ao grande produtor de soja Olacyr de Moraes, uma área de 25 000 hectares, foi adquirida pelo governo federal e distribuída entre 1 143 famílias de sem-terra, no que deveria se transformar numa luminosa vitrine nacional e internacional da reforma agrária no Brasil. Deveria mesmo. As terras ali são de primeira qualidade, e a sua grande extensão é ideal para uma cultura rentável como a da soja. A fazenda dispunha de 350 quilômetros de estradas, pivôs centrais para irrigação, equipamentos agrícolas de todo tipo, escola, posto médico. O investimento necessário para tornar essa área uma das mais produtivas do país já estava feito. Mais ou melhor que isso, em suma, ninguém vai achar em lugar nenhum do Brasil para fazer qualquer tipo de reforma agrária. E o que aconteceu com o projeto?

Na última safra, dois anos depois da divisão desses 25 000 hectares, a produção de soja e milho obtida ali pelos sem-terra ficou em um terço do que os antigos donos conseguiam. A maior renda das famílias não passou dos 330 reais por mês -- uma em cada quatro famílias, na verdade, não tem renda nenhuma. Uma parte dos pivôs de irrigação virou sucata. A energia elétrica que existe é fornecida pela outra metade da fazenda, que não foi desapropriada, e é paga pelo governo estadual. A assistência técnica está reduzida a visitas incertas de algum agrônomo do governo, e a assistência de saúde consiste num único médico para 8 000 pessoas. Mais que tudo, a conta não fecha. Na área entregue ao MST (as terras foram divididas entre quatro grupos), e em relação à qual a reportagem mostra cifras precisas, o lucro da safra ficou em cerca de 840 000 reais. Pode ser dinheiro, mas depende de quanta gente fica com ele. Dividido entre as 320 famílias que trabalham ali, isso deu pouco mais de 2 600 reais para cada uma -- ou menos de 220 reais por mês. Pior: mesmo que fossem mantidos os níveis da produção anterior, não sobraria grande coisa a mais.

Se o resultado da reforma agrária numa área "premium" como a Itamarati é esse, o que se poderia imaginar do restante? Não existe solução, dentro da aritmética, quando se pegam 25 000 hectares de qualquer terra, colhe-se um terço a menos e divide-se a renda obtida por 1 143 donos. Se fossem só alguns, poderia funcionar. Mas 1 143? É gente demais para a terra e recurso de menos -- um quadro que não mudaria nem com a desapropriação de todos os latifúndios que o procurador Cláudio Fontelles imagina existir no Brasil. Pode ser desagradável pensar nisso, mas o fato é que nenhum país desenvolvido consegue ter muito mais que 2% ou 3% de sua população vivendo na condição de proprietário rural. Do mesmo modo como não se pode esperar que o Banco do Brasil, por exemplo, dê emprego a 1 milhão de funcionários, não se vê de que jeito seria possível prover uma vida próspera para os 27 milhões de brasileiros que, segundo o MST, precisam receber terras do governo.

O problema do campo, no Brasil, não está nos títulos de propriedade, e sim na pobreza geral resultante de uma economia ainda incapaz de gerar produção e renda suficientes para o bem- estar de todos. Não é o Incra que pode consertar isso.

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