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A democracia dividida

Um quadro político fragmentado e uma aliança eleitoral muito diversificada devem conter os ímpetos do novo governo. Mas Lula seguirá um rumo próprio, bem diferente do de FHC

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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 11h04.

As eleições de 2002 produziram muita mudança. Parece óbvio, mas para muita gente essa ficha ainda não caiu. Para começar, o processo de divisão do poder e de fragmentação do quadro partidário se aprofundou significativamente. Lula da Silva elegeu-se presidente da República com a vasta maioria, que não se transmitiu nem para o eixo partidário nem para a ordem federativa.

Lula, além de manter seu eleitorado de 1998, 32%, conquistou ainda 82% dos 33% de votos que estavam efetivamente em disputa. Na Câmara, os eleitores deram ao PT a maior bancada, mas não a maioria -- nem mesmo se somados os partidos que apoiaram Lula no primeiro e no segundo turno, que chegariam a 213 cadeiras. No Senado, o PT ficou com a terceira bancada e sua coalizão mais ampla, a do segundo turno, somou 30 senadores no total.

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No eixo federativo, o PT elegeu três governadores e perdeu o Rio Grande do Sul, o estado mais importante que governava. O PSDB manteve o controle político de São Paulo, de Goiás e do Ceará e retomou Minas Gerais, ainda no primeiro turno. Todos estados politicamente importantes no jogo federativo. O Rio, nas mãos de Rosinha Garotinho, ainda que formalmente do PSB, é um caso à parte. No Espírito Santo, o governador eleito, Paulo Hartung, também não representa o "PSB histórico". O PMDB, por meio de facções distintas, ficou com o controle político de toda a Região Sul. Certamente, a liderança de maior peso qualitativo será a de Germano Rigotto. Roberto Requião, por sua parceria histórica com o PT, terá peso político desproporcional à qualidade de sua liderança no partido. O PT ainda reelegeu Joaquim Roriz, um tradicional adversário do partido, dos poucos que não estiveram aliados a Lula. E manteve Pernambuco, um eixo importante de influência política no Nordeste. A Bahia continua nas mãos de Antonio Carlos Magalhães.

Essa fragmentação do eixo federativo torna a relação com os governadores um dos principais problemas para o presidente eleito, que tem sinalizado saber disso. Ele está prometendo manter aberto um fórum de negociações com os governadores. Essa idéia de institucionalizar uma negociação permanente com os governadores pode se constituir em um avanço no entendimento federativo, uma das áreas em que o governo FHC investiu muito pouco. Conseguir estabelecer um mínimo de cooperação com os governos estaduais será fundamental, sobretudo para promover alterações no quadro tributário.

Esse equilíbrio, pela divisão do controle do sistema político nacional entre várias forças político-partidárias, representa uma defesa do processo democrático, dando mais força ao sistema de pesos e contrapesos essencial no presidencialismo. A contrapartida é que torna a governança muito mais complexa. Se, de um lado, evita a superconcentração de poderes e a possibilidade de abusos de poder, de qualquer parte, de outro é um complicador da governança e da governabilidade, porque consumirá mais tempo nas decisões, que passarão a depender de ampla negociação prévia.

Mas não é só no campo das relações entre poderes e na federação que teremos mudanças significativas. O governo Lula seguirá um rumo próprio e muito diferente do que foi o governo de Fernando Henrique e daquilo que o mercado financeiro imagina como única via possível. Com certeza, buscará fazer mudanças cada vez mais profundas na ordem econômica. Seu peso político e estatal estará a favor de forças que ficaram à margem do poder central nos últimos dez anos. Não será apenas "mais do mesmo". Lula não será um "FHC de barbas" nem sua equipe econômica clone da dupla Malan-Armínio. As diferenças não serão apenas de aparência, mas de fundo, substantivas.

Será mais que simples rotatividade no poder. Houve uma mudança radical na correlação de forças sociais e políticas no país. A expressão eleitoral de Lula, representada por sua votação espetacular, é mais ampla que seu partido, sua coalizão partidária e que a própria aliança social que o apoiou ostensivamente, representada não apenas pelos setores populares organizados mas por ampla fatia das classes médias e por parcela do empresariado. Entre essas forças da aliança social de Lula estão algumas que vivem inevitável declínio socioeconômico, outras que continuam ativas nos centros dinâmicos da sociedade e da economia e outras que são emergentes. Embora menor que a expressão eleitoral de Lula, essa aliança tem densidade sociopolítica própria e expressa uma nova realidade política. É sociologicamente impossível que não implique profundas mudanças na relação governo-sociedade e nas políticas públicas.

Um governo que nasce com tal grau de apoio eleitoral e tão heterogênea aliança social tem forte legitimidade, mas é também ameaçado por alto potencial de contrariedade interna. Começa administrando, desde o primeiro dia, o risco de produzir muita frustração. E Lula tem demonstrado perceber isso. Suas declarações, às quais se somam as do presidente do PT, José Dirceu, e as do coordenador da equipe técnica de transição, Antônio Palocci, têm deixado claro que o governo será mais amplo que o PT e que não é possível atender no curto prazo a todas as promessas nem realizar todos o compromissos políticos assumidos ao longo da trajetória do PT até o poder presidencial. Em muitos casos, nem sequer nos quatro anos de mandato. Mas, ao contrário do que muitos imaginam, essa consciência dos limites dificilmente significará tolerância em relação a todas as limitações, financeiras, econômicas e políticas, impostas ao governo de início. Sob nova direção, o governo buscará empurrar ao máximo esses limites para seus pontos extremos. É possível que se contenha diante da ameaça de ruptura no delicado equilíbrio macroeconômico, para evitar problemas ainda maiores. Mas será, muito provavelmente, um governo que exercitará ao máximo a arte de governar na borda da ruptura, tentando aproximar o que é possível do desejável.

Abre-se, sem dúvida, uma conjuntura complexa para o país e para o novo governo. Haverá muita novidade. Há muito que aprender de parte a parte. O PT vai descobrir Brasis que nunca julgou existir. O Brasil vai ver faces do PT e um estilo de governo que nunca viu. O novo governo terá de aprender a lidar de forma mais ágil com o mercado para não ficar administrando volatilidades todo o tempo. O mercado terá de aprender a linguagem e as inclinações do novo governo para não ficar criando expectativas irrealistas nem vendo risco onde não há e deixando de vê-lo onde realmente estiver.

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