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A política nos divide, o humor nos redime

A atual crise política radicalizou as posições já extremadas de nossos amigos e conhecidos nas redes sociais e na vida real. Demonstrações de ódio e intolerância cresceram significativamente nas últimas semanas. Para nossa sorte e alegria, junto com a polarização radical, veio também uma enxurrada de conteúdos humorísticos, muitos da melhor qualidade. O exemplo distintivo […]

ODORICO PARAGUAÇU REFLETE SOBRE O BRASIL: é na jocosidade que nos vemos sem facção, nos desnudarmos de preferencias e rimos juntos da nossa sina /
ODORICO PARAGUAÇU REFLETE SOBRE O BRASIL: é na jocosidade que nos vemos sem facção, nos desnudarmos de preferencias e rimos juntos da nossa sina /
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Silvio Genesini

Publicado em 9 de junho de 2017 às, 13h21.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às, 18h02.

A atual crise política radicalizou as posições já extremadas de nossos amigos e conhecidos nas redes sociais e na vida real. Demonstrações de ódio e intolerância cresceram significativamente nas últimas semanas. Para nossa sorte e alegria, junto com a polarização radical, veio também uma enxurrada de conteúdos humorísticos, muitos da melhor qualidade.

O exemplo distintivo de como o humor se estabelece de maneira quase involuntária é o episódio que envolveu o polêmico – amado e odiado – ministro do STF, Gilmar Mendes. Em um congresso de operadoras de planos de saúde (nada a ver com política) o ministro, ao expressar sua opinião sobre a necessidade do país ter mais gerentes na política, afirmou que “o Brasil parece uma grande organização Tabajara”.

O humorista Hélio de la Peña, um dos integrantes do Casseta e Planeta, que criou o quadro, respondeu: “As organizações Tabajaras protestam contra comparações chulas e fantasiosas. Nossos advogados serão acionados”. O ministro, entrando no espírito, tuitou: “não queria ofender a organização”. No entanto, o julgamento pelo TSE da chapa Dilma-Temer mostra que as organizações continuam em pleno vigor no país.

No mesmo diapasão, o perfil oficial do seriado House of Cards da Netflix publicou (em português): “Tá difícil de competir”. Quando provocados se poderiam fazer um House of Cards brasileiro disseram que nem mesmo se reunissem 20 roteiristas premiados seriam capazes de tanta imaginação. Insistindo na jogada de marketing da comparação afirmaram que a estreia da série só se daria em 30 de maio, para evitar qualquer equívoco. Não parou aí. Colocaram um gigantesco painel no aeroporto de Brasília com a seguinte frase, atribuída a Frank Underwood (o político bandido da série); “Escolher dinheiro em vez de poder. Um erro que quase todos cometem”.

A criatividade não se limitou às charges amadoras que costumamos receber dos nossos amigos. Um longo clip (dos criadores Pedro Guadalupe e João Basílio), em forma de paródia, da música Faroeste Caboclo do Legião Urbana conta a história empresarial da JBS e dos irmãos Batistas. Nem todo mundo gostou, claro, alegando que partes da história estavam mal contadas.

Um outro compositor, Matheus Mota, musicou, em ritmo de samba, um trecho da famosa carta que Temer enviou à Dilma em 2015 com o nome de “A Senhora”. Nela, o atual presidente lamenta-se de não ser bem tratado por Dilma, que havia demitido ministros de sua confiança por retaliação. Os exemplos são muitos e, provavelmente, já conhecidos por todos de tanto que são postados e compartilhados.

Esse lado “não sério” do Brasil é o nosso melhor lado neste instante em que o desamparo e a sucessão de delações e confissões escabrosas parece não ter fim. É atribuído ao general francês Charles de Gaulle a afirmação (nunca confirmada) de que o Brasil não seria um país sério. Este é o melhor momento da nossa trágica história para rirmos do próprio destino.

Apesar de também haver chistes partidários e ideológicos, a maioria deles é democrático na gozação não poupando nenhuma das bandas envolvidas na disputa ideológica. É na jocosidade que nos vemos sem facção, nos desnudarmos de preferencias e rimos juntos da nossa sina. É na graça que nos aproximamos do outro que nos é diferente e criamos uma ponte para o entendimento. No espaço largo da comicidade, os nossos malvados favoritos viram apenas malvados, pura e simplesmente.

É nesse caldeirão homogêneo que Lula, Aécio e Temer ganham um cartaz de filme de faroeste com o título: “3 homens e 1 destino”. Que Paulo Maluf aparece com um sorriso maroto e a legenda: “São todos amadores”. Ou ainda, a fotografia de Rodrigo Maia, presidente da Câmara, com o texto: “Já vou me adiantando: #foramaia”. A imaginação é rude e implacável a ponto de colocar a foto do Ministro Herman Benjamin com a legenda: “Eu juro que não sabia que Tom Jobim tinha filho com Erundina”

Para a síntese redentora, temos o personagem Odorico Paraguaçu, da novela “Bem Amado”, sentenciando: “Nem coxinhas, nem mortadelas. No momento somos todos pamonhas”. É essa consciência de que somos todos pamonhas que pode nos levar adiante na construção de um novo país.

Muito se tem dito de uma pretensa superioridade dos laços sociais e da cordialidade brasileira como um modelo avançado de sociedade. Domenico De Masi defendeu tal posição, recentemente, em seu livro “O Futuro Chegou”. Visto de agora, do meio da confusão, a previsão do italiano, que gosta muito destes alegres trópicos, soa como uma ironia ou mesmo puro deboche. Quem dera o futuro nunca chegasse.

Com a falência generalizada das elites e a incapacidade de sairmos deste período infindável de fracassos, a tendência é pensarmos justo o contrário. Que o nosso modelo de país é intrinsicamente errado e que nossa singularidade é torta. Talvez possamos apenas dizer que nosso humor é mais escrachado, inconsequente e irreverente. Mas, não seriam todos os humoristas, em todos os lugares do mundo, um porto seguro contra a rigidez das ideologias e a camisa de força do politicamente correto? Vide a quantidade imensa de gozações e imitações, que extrapolam o desrespeito, feitas com o presidente Trump na América.

Eu, que sou cético e não acredito em modelos, que acho que o mundo atual descontruiu padrões anteriores e não tem nenhuma intenção de colocar outra referência ou paradigma no lugar, concluo, simplesmente, que somos o que somos e vivemos intensamente todas as horas do fim de uma era que estávamos fadados a viver. Como se ter vivido fosse necessário para avançar.

Que o humor nos purgue e nos salve.