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Reforma tributária à brasileira

O perigo dessa reforma é que, também diferentemente da previdência, ela não acabe na sanção do presidente

 (Roque de Sá/Agência Senado/Flickr)
(Roque de Sá/Agência Senado/Flickr)

Com a aprovação no Senado da reforma tributária, perdemos a oportunidade de ter a excelente proposta original, verdadeiramente revolucionando a estrutura tributária brasileira. A ideia da PEC 45, além de modernizar e muito nosso sistema, trazia inovações como o cashback em alimentos, por exemplo.

Mesmo assim, o sistema tende a diminuir o contencioso tributário em relação ao sistema mais do que confuso que temos hoje. A questão da não-cumulatividade dos impostos de bens e serviços, por exemplo, pode finalmente ser generalizada, depois de anos de exceções que foram sendo permitidas por decisões judiciais. Os enormes resíduos tributários que eram acumulados e nunca recuperados têm uma chance de diminuírem bastante depois da implementação total da reforma. A infinidade de alíquotas que existiam também desaparece, se tornando apenas quatro, o que claramente simplifica um sistema confuso como o nosso.

Não é pouco o que se conseguiu, mas dada a expectativa inicial a frustração também não deixa de ser grande. Diferentemente da reforma da previdência, que tinha grupos de interesse contrários, a da reforma tributária talvez tenha juntado de forma histórica o maior grupo de pressão contra a reforma que já vimos. Foram estados, municípios e inúmeros setores organizados da sociedade que conseguiram entrar nas exceções sem ter justificativa econômica para tal. Isso acabou piorando na aprovação no Senado com a adição de uma quarta alíquota para profissionais liberais entre outras exceções que foram agregadas.

O perigo dessa reforma é que, também diferentemente da previdência, ela não acabe na sanção do presidente. Serão pelos menos dez anos de testes e aprovações de leis ordinárias para acomodar os diversos regimes especiais criados e a definição das próprias alíquotas.

Ao longo desse período, dado que se abriu brechas além do necessário, o risco é que novas deteriorações aconteçam. A entrada de novas exceções não pode ser descartada, bem como leituras jurídicas que podem ser feitas desvirtuando o novo regime aprovado. Muito da não-cumulatividade dos impostos de bens e serviços foi caindo ao longo dos anos por decisões tanto do STF quanto do STJ, como mostra fartamente o livro “Reforma tributária e neutralidade do IVA”, de uma equipe de autores do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV Direito em São Paulo.

O problema de uma reforma tributária que fica longe da simplicidade é que as decisões judiciais podem acabar a tornando ainda mais complexa. Será uma quantidade muito grande de leis ordinárias no total, mais de 40 provavelmente, e que serão alvo claro de judicialização no futuro em torno dos créditos acumulados que, de certa forma, continuarão a trazer dificuldades. Alíquotas diferentes, Zona Franca de Manaus, sistemas fora da reforma, como o Simples, entre outras têm potencial para que as empresas ou setores que se sintam prejudicados vá discutir na Justiça. É verdade que o contencioso cairá, mas surgem flancos à frente.

Indefinições sobre a cesta básica se mantém, pois não se sabe o que a compõe e será uma enorme briga para se ter a composição final. Além do fato de que o desconto para a cesta básica local também é brecha para um sem-número de itens poderem virar exceções regionais, complicando ainda mais a reforma. Aqui a oportunidade perdida do cashback é muito clara. A digitalização financeira da população nos últimos anos, especialmente da população mais pobre, permite que um sistema como esse funcione normalmente. Seria um avanço de nível internacional e teria o papel do que deveria ter o imposto sobre alimentos: auxiliar quem é de fato mais pobre. Não vejo sentido eu ter desconto de imposto em produtos de uma cesta básica na mesma proporção que a população pobre teria. Foi uma chance perdida de se ver essa parte da reforma como um programa social. Mas há uma brecha aberta pelo relator ao se considerar o caskback para gás de cozinha que pode ser um prenúncio de um uso mais geral na revisão daqui a cinco anos.

No geral, temos uma reforma que define nossa incapacidade irretocável de não se modernizar. Chegamos atrasados a uma reforma com diversos estudos de caso mundo afora e ainda assim evitamos as boas práticas já conhecidas. Essa nossa insistência em chegar atrasado em reformas importantes, assim como foi a da previdência também, nos garantirá crescimento medíocre por longos anos. É a armadilha da renda média sendo renovada insistentemente por nós.