O futuro grande teste chinês
A divulgação do PIB chinês no terceiro trimestre de 6,7% deu certa esperança de uma volta à normalidade depois de um confuso primeiro trimestre, às voltas com a dificuldade do país em lidar com o mercado cambial. Em que pese a expectativa geral de todos sobre um crescimento que continuará em desaceleração gradualmente, começam a […]
Da Redação
Publicado em 19 de julho de 2016 às 11h09.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 17h52.
A divulgação do PIB chinês no terceiro trimestre de 6,7% deu certa esperança de uma volta à normalidade depois de um confuso primeiro trimestre, às voltas com a dificuldade do país em lidar com o mercado cambial. Em que pese a expectativa geral de todos sobre um crescimento que continuará em desaceleração gradualmente, começam a pairar dúvidas mais estruturais sobre a capacidade chinesa de crescimento, mesmo que a taxas menores.
A história recente do país é de tentar retornar ao período de glória que existia até o início do século XIX. Os séculos anteriores pareciam identificar a China como candidata natural a iniciar a Revolução Industrial, dada sua capacidade tecnológica efetivamente maior do que a europeia. Mas o que tem sido amplamente estudado por historiadores econômicos, como Joel Mokyer, Ian Morris e Thomas Newman, é a incapacidade chinesa em lidar com a competição em seu sentido mais amplo. Uma razão para os países europeus terem se desenvolvido foi a existência de uma “República das Letras”, na alegoria de Joel Mokyer, em que a livre circulação de ideias permitia a existência de um mercado competitivo de intelectuais em uma Europa politicamente fragmentada. Da mesma forma, Ian Morris nos lembra das vantagens da disputa competitiva entre Portugal e Espanha durante a era dos Grandes Descobrimentos em relação às decisões monocráticas sobre Zheng He, o grande descobridor chinês. A morte de um imperador patrocinador cortou abruptamente suas aventuras em um país centralizado em que não havia por onde escapar.
A ideia de uma China menos isolada e aberta à competição com o Ocidente parece ter ficado para trás nos últimos anos com um modelo centralizado internamente, mas competitivo externamente. Espalhou-se, corretamente, a imagem de um país em que os líderes subnacionais disputam entre si bons resultados em suas províncias e municípios para ascenderem ao Partido Comunista e se tornarem lideranças nacionais.
Mas essa saudável competição política doméstica pode ter dificuldade em enfrentar o último passo dessa caminhada que seria uma capacidade competitiva da China no mundo. Na história capitalista, a evolução dos países sempre passou por crises de natureza diversa, muitas vezes financeiras, que causavam distúrbios sociais e/ou mudanças políticas. É como se o mundo fosse um conjunto de nações competitivas entre si que passa por momentos de crise que levam a renascimento ou crescimento em alguma outra parte do mundo. Por exemplo, no contexto atual, o Brasil ainda está mal, mas começa a se destacar no meio um avanço do nacionalismo e do protecionismo. É como se o meio capitalista precisasse ter essas válvulas de escape que permitissem que um país momentaneamente mal desse espaço para outro florescer, um pouco nos moldes do que Joel Mokyr e Ian Morris viam no desenvolvimento do Ocidente nos momentos antes da Revolução Industrial. Crescer, assim, depende dessa relação competitiva saudável com outros países. Apenas cresceu quem conseguiu se reinventar econômica e politicamente a cada vez que tais crises ocorreram.
Essa China que quer pertencer a esse padrão competitivo mundial teria que aceitar que crises profundas fazem parte do jogo. Mas as decisões recentes de seus dirigentes parecem sinalizar ainda um país com medo de competição. Ao se defrontar com a desaceleração iminente da economia, a opção foi pela ampliação do papel do Estado, e não das privatizações e do setor privado, como foi a opção do primeiro-ministro chinês Zhu Rongji entre 1998 e 2003. Esse choque liberal foi essencial para o crescimento chinês na década seguinte, que começou a ser revertido quando, defrontado com a crise de 2008, ao invés de optar por ampliar as reformas, o país voltou a se fechar, aumentando o papel do Estado. Boa parte da manutenção do crescimento este ano decorre dos empuxos no investimento das empresas estatais, que precisa cada vez ser mais forte para compensar o enfraquecimento geral do setor privado. Não custa lembrar que um setor privado mais forte pode levar a grupos de interesse divergentes daqueles do Partido Comunista Chinês.
Nesse momento, a China precisa optar pelo salto que quer dar. Para não cair na armadilha da pobreza (poverty trap), terá que se dispor a ser mais competitiva em bens com tecnologia mais avançada. Mas a produção desse tipo de bem demanda também uma classe média mais educada e, por conseguinte, mais demandante de bens sociais. Em geral, a democracia e a liberdade de escolha têm sido itens do cardápio de demandas dentro desses bens sociais, sancionado por um setor privado que se torna grupo de interesse relevante.
Muito se diz que a China é diferente e poderá crescer com um modelo diferente, nesse caso mais controlado e fechado do que o modelo liberal ocidental. Mas o modelo liberal tem na própria democracia a válvula de escape para crises periódicas que sempre ocorrerão. A entrada de Margaret Thatcher e Ronald Reagan nos anos 80 veio como resposta às crises dos anos 70, em que se pensava que o Estado podia mais do que realmente era capaz de fazer.
Pode ser que os chineses queiram caminhar para um padrão à lá Coréia do Sul em que o passo seguinte à ditadura foi a democracia dos anos 80. Como em todas as economias democráticas ocidentais, as respostas às crises muitas vezes demandaram mudanças políticas, como foi na crise asiática de 1997 que acabou por levar à vitória a oposição política ao então presidente Kim Young-sam.
O que se quer dizer aqui é que se a China quiser de fato participar do mundo desenvolvido, terá que aceitar a possibilidade de crises recorrentes que demandam mudanças políticas relativamente rápidas. Um presidente com mandato de oito anos e com tantos poderes, começando a ser contestado em uma crise, tenderia a enfraquecer o funcionamento do sistema político chinês, causando desconfiança na sua capacidade de crescimento.
O maior teste da economia chinesa ocorrerá quando uma crise doméstica ocorrer. Até agora, tirando os eventos de 1989, ela foi contaminada por crises externas. Mas nenhum país consegue crescer permanentemente durante tanto tempo sem passar por alguma turbulência mais grave. A tentativa de evitá-la com mais Estado vai contra a ideia de que a válvula de escape liberal e privada tem sido a saída recorrente e funcional do mundo ocidental. Enquanto esse grande teste não ocorrer, a incerteza sobre uma China que ainda se mantém muito centralizada permanecerá. E dado o elevado nível de endividamento a que o país está chegando, pode ser que a próxima década seja o ponto de definição para os chineses. Mas a história, infelizmente, mostra que a solução pelo fechamento e isolamento pode ainda ser uma tendência das mentes chinesas.
A divulgação do PIB chinês no terceiro trimestre de 6,7% deu certa esperança de uma volta à normalidade depois de um confuso primeiro trimestre, às voltas com a dificuldade do país em lidar com o mercado cambial. Em que pese a expectativa geral de todos sobre um crescimento que continuará em desaceleração gradualmente, começam a pairar dúvidas mais estruturais sobre a capacidade chinesa de crescimento, mesmo que a taxas menores.
A história recente do país é de tentar retornar ao período de glória que existia até o início do século XIX. Os séculos anteriores pareciam identificar a China como candidata natural a iniciar a Revolução Industrial, dada sua capacidade tecnológica efetivamente maior do que a europeia. Mas o que tem sido amplamente estudado por historiadores econômicos, como Joel Mokyer, Ian Morris e Thomas Newman, é a incapacidade chinesa em lidar com a competição em seu sentido mais amplo. Uma razão para os países europeus terem se desenvolvido foi a existência de uma “República das Letras”, na alegoria de Joel Mokyer, em que a livre circulação de ideias permitia a existência de um mercado competitivo de intelectuais em uma Europa politicamente fragmentada. Da mesma forma, Ian Morris nos lembra das vantagens da disputa competitiva entre Portugal e Espanha durante a era dos Grandes Descobrimentos em relação às decisões monocráticas sobre Zheng He, o grande descobridor chinês. A morte de um imperador patrocinador cortou abruptamente suas aventuras em um país centralizado em que não havia por onde escapar.
A ideia de uma China menos isolada e aberta à competição com o Ocidente parece ter ficado para trás nos últimos anos com um modelo centralizado internamente, mas competitivo externamente. Espalhou-se, corretamente, a imagem de um país em que os líderes subnacionais disputam entre si bons resultados em suas províncias e municípios para ascenderem ao Partido Comunista e se tornarem lideranças nacionais.
Mas essa saudável competição política doméstica pode ter dificuldade em enfrentar o último passo dessa caminhada que seria uma capacidade competitiva da China no mundo. Na história capitalista, a evolução dos países sempre passou por crises de natureza diversa, muitas vezes financeiras, que causavam distúrbios sociais e/ou mudanças políticas. É como se o mundo fosse um conjunto de nações competitivas entre si que passa por momentos de crise que levam a renascimento ou crescimento em alguma outra parte do mundo. Por exemplo, no contexto atual, o Brasil ainda está mal, mas começa a se destacar no meio um avanço do nacionalismo e do protecionismo. É como se o meio capitalista precisasse ter essas válvulas de escape que permitissem que um país momentaneamente mal desse espaço para outro florescer, um pouco nos moldes do que Joel Mokyr e Ian Morris viam no desenvolvimento do Ocidente nos momentos antes da Revolução Industrial. Crescer, assim, depende dessa relação competitiva saudável com outros países. Apenas cresceu quem conseguiu se reinventar econômica e politicamente a cada vez que tais crises ocorreram.
Essa China que quer pertencer a esse padrão competitivo mundial teria que aceitar que crises profundas fazem parte do jogo. Mas as decisões recentes de seus dirigentes parecem sinalizar ainda um país com medo de competição. Ao se defrontar com a desaceleração iminente da economia, a opção foi pela ampliação do papel do Estado, e não das privatizações e do setor privado, como foi a opção do primeiro-ministro chinês Zhu Rongji entre 1998 e 2003. Esse choque liberal foi essencial para o crescimento chinês na década seguinte, que começou a ser revertido quando, defrontado com a crise de 2008, ao invés de optar por ampliar as reformas, o país voltou a se fechar, aumentando o papel do Estado. Boa parte da manutenção do crescimento este ano decorre dos empuxos no investimento das empresas estatais, que precisa cada vez ser mais forte para compensar o enfraquecimento geral do setor privado. Não custa lembrar que um setor privado mais forte pode levar a grupos de interesse divergentes daqueles do Partido Comunista Chinês.
Nesse momento, a China precisa optar pelo salto que quer dar. Para não cair na armadilha da pobreza (poverty trap), terá que se dispor a ser mais competitiva em bens com tecnologia mais avançada. Mas a produção desse tipo de bem demanda também uma classe média mais educada e, por conseguinte, mais demandante de bens sociais. Em geral, a democracia e a liberdade de escolha têm sido itens do cardápio de demandas dentro desses bens sociais, sancionado por um setor privado que se torna grupo de interesse relevante.
Muito se diz que a China é diferente e poderá crescer com um modelo diferente, nesse caso mais controlado e fechado do que o modelo liberal ocidental. Mas o modelo liberal tem na própria democracia a válvula de escape para crises periódicas que sempre ocorrerão. A entrada de Margaret Thatcher e Ronald Reagan nos anos 80 veio como resposta às crises dos anos 70, em que se pensava que o Estado podia mais do que realmente era capaz de fazer.
Pode ser que os chineses queiram caminhar para um padrão à lá Coréia do Sul em que o passo seguinte à ditadura foi a democracia dos anos 80. Como em todas as economias democráticas ocidentais, as respostas às crises muitas vezes demandaram mudanças políticas, como foi na crise asiática de 1997 que acabou por levar à vitória a oposição política ao então presidente Kim Young-sam.
O que se quer dizer aqui é que se a China quiser de fato participar do mundo desenvolvido, terá que aceitar a possibilidade de crises recorrentes que demandam mudanças políticas relativamente rápidas. Um presidente com mandato de oito anos e com tantos poderes, começando a ser contestado em uma crise, tenderia a enfraquecer o funcionamento do sistema político chinês, causando desconfiança na sua capacidade de crescimento.
O maior teste da economia chinesa ocorrerá quando uma crise doméstica ocorrer. Até agora, tirando os eventos de 1989, ela foi contaminada por crises externas. Mas nenhum país consegue crescer permanentemente durante tanto tempo sem passar por alguma turbulência mais grave. A tentativa de evitá-la com mais Estado vai contra a ideia de que a válvula de escape liberal e privada tem sido a saída recorrente e funcional do mundo ocidental. Enquanto esse grande teste não ocorrer, a incerteza sobre uma China que ainda se mantém muito centralizada permanecerá. E dado o elevado nível de endividamento a que o país está chegando, pode ser que a próxima década seja o ponto de definição para os chineses. Mas a história, infelizmente, mostra que a solução pelo fechamento e isolamento pode ainda ser uma tendência das mentes chinesas.