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Na disputa entre Mazzucato e McCloskey quem perde é a sociedade

Na crise vimos a importante função anticíclica de atuar quando uma crise ocorrer

São visões opostas e excludentes, mas com pouco espaço para um meio do caminho (O Estado Empreendedor e The Myth of the Entrepeneurial State/Divulgação)
DR

Da Redação

Publicado em 29 de agosto de 2022 às 14h50.

Em tempos de eleição, a disputa entre mais Estado ou menos tem voltado a aparecer. De um lado, Lula tem sinalizado a volta de investimentos públicos e uma agenda social mais forte. De outro, Bolsonaro tende a manter as concessões e talvez alguma privatização avance. No fundo, os dois têm visão semelhante do papel do setor público, mas Lula consegue avançar onde Bolsonaro não consegue por estar amarrado à agenda liberal na qual nunca acreditou.

De qualquer maneira, essa discussão volta à baila especialmente após novo choque econômico pela pandemia que acendeu o gatilho da política fiscal. Ela tinha surgido de forma tímida na Grande Recessão de 2008, mas agora surgiu com mais força, pois, de fato, a política monetária sozinha não conseguir ajudar a população durante a crise.

Mas qual o papel do Estado? Na crise vimos a importante função anticíclica de atuar quando uma crise ocorrer. É a visão de que a política fiscal tem papel no curto prazo. Mas teria também no longo prazo? O Estado empreendedor faz sentido afinal?

Dois livros de visões opostas podem deixar o leitor ainda mais perdido. De um lado, Mariana Mazzucato (2013) tem sido campeã no estímulo do Estado como indutor do crescimento via inovação. Na sua visão, ele tem como arregimentar forçar e ser um coordenador de projetos de inovação. Ela cita casos americanos conhecidos da época da guerra fria em que a Nasa teve papel importante em novas tecnologias com a internet tendo sido desenvolvida em suas bases pela estrutura militar americana. Seu livro “ O Estado Empreendedor ” é cheio de referências na mesma linha.

De outro lado, Deirdre McCloskey e Alberto Mingardi (2020) escreveram um livro rebatendo especificamente Mazzucato e que se chama “ The Myth of the Entrepeneurial State ”. Segundo eles, o desenvolvimento econômico dos últimos dois séculos se deu sem o Estado e quando ele entrou mais atrapalhou do que ajudou. Sua visão é de que a inovação por definição é algo imprevisível, fruto da engenhosidade humana que um Estado organizador nunca conseguiria substituir o setor privado à altura. Os exemplos usados por Mazzucato seriam meros acidentes de percurso de investimentos do Estado que não buscavam esse tipo de inovação. Com efeito, precisou vir o setor privado para desenvolver a internet no que conhecemos hoje.

São visões opostas e excludentes, mas com pouco espaço para um meio do caminho. Mazzucato não consegue ver desenvolvimento sem o Estado ter esse papel empreendedor e McCloskey pensa o exato oposto.

Mas nem tanto à terra nem tanto ao mar. O papel empreendedor do Estado em todas as fases de fato não parece contraproducente pelo próprio espírito do que é inovação e nesse sentido McCloskey me parece mais correta. Mazzucato usa muito os exemplos de investimentos feitos pelo BNDES que àquela altura que o livro foi escrito pareciam ser um sucesso e depois se mostraram um fracasso. Não apenas pelo processo de captura que muitas vezes acontece de campeões nacionais serem escolhidos, como foi o caso, mas também pelo grave risco fiscal gerado pelos repasses feitos pelo Tesouro que incharam a dívida bruta e ajudaram a causar a crise fiscal no governo Dilma. Em equilíbrio parcial parece muito bom, mas em equilíbrio geral, o resultado foi bem ruim.

Resgatar esse caminho de Estado presente em todas as fases com restrições fiscais cada vez mais claras me parece contraproducente. Mas o Estado tem o papel de investir na fase inicial que de fato fica muito mais caro para o setor privado que é a ciência básica. Os investimentos em universidades e financiamentos a pesquisas de ponta em ciência básica foram a base do desenvolvimento tecnológico americano. Por acaso, durante a guerra fria o avanço tecnológico estava mais nas mãos dos militares por razões óbvias, mas ter a liberdade para o setor privado buscar inovações que soa mais convincente. Ou seja, a internet provavelmente teria surgido mesmo que não tivesse iniciado pelos militares. Sem falar que esse sistema ficou anos dentro dos canais de comunicação dos militares sem eles terem a pertinência de transformar isso em produto.

Mas esses militares conseguiram chegar a esses resultados pela formação educacional americana que àquela época era inigualável no mundo. Esse é o pulo do gato de países que querem crescer: ter uma base forte de educação e pesquisa em ciência básica e liberdade para o setor privado com potencialidade de ligação entre universidade e empresas privadas, entre ciência básica e ciência aplicada.

De certa forma, esse é um pouco do caminho que se vê no último livro de Daron Acemoglu e James Robinson (2022), “ O Corredor Estreito ”. Mas eles vão além e colocam papéis relevantes para o Estado e a sociedade em conjunto para que os países se desenvolvam. Como eles falam na página XI, "a maneira com que o Estado e sociedade interagem e controlam um ao outro determina a capacidade estatal, as políticas de governo, nossa resiliência, prosperidade, segurança e, por fim, nossa liberdade.” É o que eles chamam de agrilhoar o Estado para que ele sirva à sociedade e não seja ou abusivo ou leniente.

O Estado sem a sociedade vocal não nos leva a nada, ou seja, não adianta ter um Estado empreendedor se a prosperidade não é alcançada quando não há uma sociedade que impeça que o Estado avance além do que deveria. Para isso, educar a população é o melhor remédio e esse o papel cada vez mais necessário do Estado.

Em períodos de tantas restrições, o próximo governo avançaria muito se focasse com relevância em melhorar de fato a capacidade educacional do país em todos os níveis, mas especialmente nos níveis inicias, onde os resultados são bem mais aquém dos ideais.

Mas estamos longe de ver qualquer coisa parecida com isso nas propostas de governo e corremos o risco de termos cada vez mais um Estado e uma sociedade enfraquecidos.

Sergio Vale é economista-chefe da MB Associados

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De qualquer maneira, essa discussão volta à baila especialmente após novo choque econômico pela pandemia que acendeu o gatilho da política fiscal. Ela tinha surgido de forma tímida na Grande Recessão de 2008, mas agora surgiu com mais força, pois, de fato, a política monetária sozinha não conseguir ajudar a população durante a crise.

Mas qual o papel do Estado? Na crise vimos a importante função anticíclica de atuar quando uma crise ocorrer. É a visão de que a política fiscal tem papel no curto prazo. Mas teria também no longo prazo? O Estado empreendedor faz sentido afinal?

Dois livros de visões opostas podem deixar o leitor ainda mais perdido. De um lado, Mariana Mazzucato (2013) tem sido campeã no estímulo do Estado como indutor do crescimento via inovação. Na sua visão, ele tem como arregimentar forçar e ser um coordenador de projetos de inovação. Ela cita casos americanos conhecidos da época da guerra fria em que a Nasa teve papel importante em novas tecnologias com a internet tendo sido desenvolvida em suas bases pela estrutura militar americana. Seu livro “ O Estado Empreendedor ” é cheio de referências na mesma linha.

De outro lado, Deirdre McCloskey e Alberto Mingardi (2020) escreveram um livro rebatendo especificamente Mazzucato e que se chama “ The Myth of the Entrepeneurial State ”. Segundo eles, o desenvolvimento econômico dos últimos dois séculos se deu sem o Estado e quando ele entrou mais atrapalhou do que ajudou. Sua visão é de que a inovação por definição é algo imprevisível, fruto da engenhosidade humana que um Estado organizador nunca conseguiria substituir o setor privado à altura. Os exemplos usados por Mazzucato seriam meros acidentes de percurso de investimentos do Estado que não buscavam esse tipo de inovação. Com efeito, precisou vir o setor privado para desenvolver a internet no que conhecemos hoje.

São visões opostas e excludentes, mas com pouco espaço para um meio do caminho. Mazzucato não consegue ver desenvolvimento sem o Estado ter esse papel empreendedor e McCloskey pensa o exato oposto.

Mas nem tanto à terra nem tanto ao mar. O papel empreendedor do Estado em todas as fases de fato não parece contraproducente pelo próprio espírito do que é inovação e nesse sentido McCloskey me parece mais correta. Mazzucato usa muito os exemplos de investimentos feitos pelo BNDES que àquela altura que o livro foi escrito pareciam ser um sucesso e depois se mostraram um fracasso. Não apenas pelo processo de captura que muitas vezes acontece de campeões nacionais serem escolhidos, como foi o caso, mas também pelo grave risco fiscal gerado pelos repasses feitos pelo Tesouro que incharam a dívida bruta e ajudaram a causar a crise fiscal no governo Dilma. Em equilíbrio parcial parece muito bom, mas em equilíbrio geral, o resultado foi bem ruim.

Resgatar esse caminho de Estado presente em todas as fases com restrições fiscais cada vez mais claras me parece contraproducente. Mas o Estado tem o papel de investir na fase inicial que de fato fica muito mais caro para o setor privado que é a ciência básica. Os investimentos em universidades e financiamentos a pesquisas de ponta em ciência básica foram a base do desenvolvimento tecnológico americano. Por acaso, durante a guerra fria o avanço tecnológico estava mais nas mãos dos militares por razões óbvias, mas ter a liberdade para o setor privado buscar inovações que soa mais convincente. Ou seja, a internet provavelmente teria surgido mesmo que não tivesse iniciado pelos militares. Sem falar que esse sistema ficou anos dentro dos canais de comunicação dos militares sem eles terem a pertinência de transformar isso em produto.

Mas esses militares conseguiram chegar a esses resultados pela formação educacional americana que àquela época era inigualável no mundo. Esse é o pulo do gato de países que querem crescer: ter uma base forte de educação e pesquisa em ciência básica e liberdade para o setor privado com potencialidade de ligação entre universidade e empresas privadas, entre ciência básica e ciência aplicada.

De certa forma, esse é um pouco do caminho que se vê no último livro de Daron Acemoglu e James Robinson (2022), “ O Corredor Estreito ”. Mas eles vão além e colocam papéis relevantes para o Estado e a sociedade em conjunto para que os países se desenvolvam. Como eles falam na página XI, "a maneira com que o Estado e sociedade interagem e controlam um ao outro determina a capacidade estatal, as políticas de governo, nossa resiliência, prosperidade, segurança e, por fim, nossa liberdade.” É o que eles chamam de agrilhoar o Estado para que ele sirva à sociedade e não seja ou abusivo ou leniente.

O Estado sem a sociedade vocal não nos leva a nada, ou seja, não adianta ter um Estado empreendedor se a prosperidade não é alcançada quando não há uma sociedade que impeça que o Estado avance além do que deveria. Para isso, educar a população é o melhor remédio e esse o papel cada vez mais necessário do Estado.

Em períodos de tantas restrições, o próximo governo avançaria muito se focasse com relevância em melhorar de fato a capacidade educacional do país em todos os níveis, mas especialmente nos níveis inicias, onde os resultados são bem mais aquém dos ideais.

Mas estamos longe de ver qualquer coisa parecida com isso nas propostas de governo e corremos o risco de termos cada vez mais um Estado e uma sociedade enfraquecidos.

Sergio Vale é economista-chefe da MB Associados

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