A crise fiscal terá consequências de longo prazo
"As duas últimas semanas poderão entrar para a história econômica brasileira como o turning point que nos levou para um caminho sem volta"
Da Redação
Publicado em 29 de outubro de 2021 às 15h33.
Por Sergio Vale*
As duas últimas semanas poderão entrar para a história econômica brasileira como o turning point que nos levou para um caminho sem volta. Pode parecer dramático isso, mas o fato é que o Brasil mostrou que apesar de ter a maior quantidade de regras fiscais do mundo consegue dar um jeito de burlá-las quando for conveniente. No último caso, a sinalização foi de quebra efetiva da regra do teto.
O problema de quebrar a regra como foi feito é que a partir de agora o mercado vai ter muita desconfiança sobre regras fiscais que forem feitas. Se mais uma foi quebrada, como acreditar em outras que venham pela frente, especialmente com o calendário eleitoral tão difícil com as lideranças nas pesquisas de Lula e Bolsonaro?
Essa quebra de reputação poderá trazer consequências severas de longo prazo, como já vimos acontecer no passado em outras situações. O default no pagamento do serviço da dívida em 1987 trouxe repercussões negativas para a confiança brasileira pelas duas décadas seguintes.
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Vale dizer que nosso problema de dívida não é de solvência, posto que a maior parte da dívida é interna. Na época em que mais de 60% da dívida era externa, nós dependíamos de reservas internacionais para que não houvesse crise de balanço de pagamentos, algo que foi muito comum em nossa história. No caso da dívida agora, o calote poderia vir por inflação, que corrói o valor da dívida, especialmente desinflando seu tamanho em proporção do PIB, como aconteceu este ano no Brasil. Mas a solução inflacionária é a pior de todas, vide o caso argentino que se mantém em crise permanente com uma inflação de 50% e sem solução no curto prazo.
As dificuldades à frente se dão basicamente porque as reformas que serão necessárias de serem feitas são cada vez mais difíceis. Já chegamos na carne de muitos gastos mais fáceis que poderiam ser diminuídos nas despesas discricionárias, especialmente investimento. Estes gastos estão hoje em torno de R$ 100 bilhões, que parece muito, mas é menos da metade do que já foi há alguns anos e no limite para colocar a máquina pública em funcionamento. As reformas precisarão ser mais profundas, como a administrativa de quem está no serviço público, e uma reforma da previdência adicional, afetando aposentadoria rural e voltando a aumentar a idade mínima para se aposentar. São reformas cada vez mais complicadas politicamente e que demandariam um presidente com ampla capacidade de conciliação, que parece não termos hoje. Falta alguém com o espírito de Tancredo Neves, que era um consenso na transição da ditadura para a democracia.
Sem esse presidente de consenso, corremos o risco de chegar em 2023 naufragando ainda em polarização e com um Congresso ainda fragmentado e dividido impedindo que reformas aconteçam. Será muito diferente de 2003, quando Lula assumiu tende o aval de Fernando Henrique Cardoso e um trabalho conjunto de governo e oposição para se votar matérias relevantes para o país, algo que se viu acontecer inclusive em alguns estados, como foi o caso do Espírito Santo.
A economia hoje se vê às voltas com um maior uso da política fiscal para estimular crescimento, especialmente depois da crise de 2008 e da pandemia em 2020. A política fiscal americana tem dado o tom do que pode ser feito para gastos públicos que podem ser produtivos, especialmente relacionados à ciência básica, educação, meio ambiente e infraestrutura. Mas os EUA têm uma grande diferença com o resto do mundo, que é ser o emissor da moeda de reserva da maioria dos países. Seu problema de endividamento se torna menor quando sua moeda se mantém sob a confiança dos investidores e o dólar se mantém com flutuação muito moderada. Além disso, as taxas de juros extremamente baixas asseguram uma dívida emitida de custo baixo.
O caso brasileiro é de um país sujo risco fiscal piora a percepção dos investidores (não emitimos dólar) além de termos uma taxa de juros básica que vai caminhar para mais de 10% ano que vem. Ainda não entramos em dominância fiscal, mas o risco é grande. Isso se dá quando aumentar o juro piora a inflação pelo impacto no câmbio via percepção de deterioração do fiscal pelo aumento de seu custo. Brasília está fazendo um grande esforço para levar o país para essa situação.
Vale dizer que investir nos pilares básicos que os americanos estão fazendo é importante. Precisa haver investimentos especialmente em ciência básica e educação, mas há que se ter muito cuidado quando se fala em política industrial em uma economia industrialmente diversificada como a nossa. Escolher os setores a receber benefícios sempre é uma arte e os exemplos recentes têm sido muito ruins, como o que se viu recorrentemente com o BNDES.
Nesse sentido, causa certa preocupação que a esquerda venha dando sinais claros que que não entendeu o que aconteceu nos últimos anos. A coletânea recém-lançada de Nelson Barbosa e Andre Roncaglia, “Bidenomics nos Trópicos”, mostra como a esquerda tem uma visão romantizada do espaço que se pode utilizar para a política pública. A essa altura acreditar que o II PND do governo Geisel só não funcionou porque deveria ter sido aprofundado mostra como a esquerda poderá causar problemas novamente na economia se continuar nessa toada.
Seria recomendável a todos os candidatos a presidente ano que vem que olhassem com atenção outro livro, de Affonso Celso Pastore, “Erros do Passado, Soluções para o Futuro”. Este, sim, mostra de forma clara e robusta os diversos erros que ocorreram em nossa economia nas últimas décadas e dá o básico do que não fazer novamente. Especialmente nesse momento de crise fiscal, o que deixa a quebra do teto ainda mais assombrosa é que nós já passamos por várias outras crises fiscais no passado e sabemos onde isso vai dar. Não é falta de conhecimento técnico, como era no caso da hiperinflação dos anos 80, para o qual ainda não se tinha o arcabouço teórico claro do que fazer, nem a vontade política para a mesma. Esse casamento virtuoso da economia e da política só veio a acontecer em 1994. Pastore mostra com clareza como era difícil lidar com uma passividade monetária nos anos 80 para o qual não se sabia o que fazer.
Mas hoje não podemos dizer que não se sabe o que fazer. O balanço dos erros está na condução da economia e da política sobre algo que já mais do que conhecido. Isso causa certa frustração, especialmente por olharmos o futuro e a terceira via, mesmo que apareça, tenha que ser um Tancredo Neves duplicado para enfrentar a polarização que nos aflige. Por isso, tudo, 2022 será um ano difícil, com crescimento zerado, inflação perto de 5% e taxa de câmbio se aproximando de R$/US$ 6,0. A estagflação que estamos passando, com queda de PIB per capita de 1,8% entre 2020 e 2022 e inflação de mais de 18% acumulada dá o tom das dificuldades que estamos enfrentando.
*Sergio Vale é economista-chefe da MB Associados.
Por Sergio Vale*
As duas últimas semanas poderão entrar para a história econômica brasileira como o turning point que nos levou para um caminho sem volta. Pode parecer dramático isso, mas o fato é que o Brasil mostrou que apesar de ter a maior quantidade de regras fiscais do mundo consegue dar um jeito de burlá-las quando for conveniente. No último caso, a sinalização foi de quebra efetiva da regra do teto.
O problema de quebrar a regra como foi feito é que a partir de agora o mercado vai ter muita desconfiança sobre regras fiscais que forem feitas. Se mais uma foi quebrada, como acreditar em outras que venham pela frente, especialmente com o calendário eleitoral tão difícil com as lideranças nas pesquisas de Lula e Bolsonaro?
Essa quebra de reputação poderá trazer consequências severas de longo prazo, como já vimos acontecer no passado em outras situações. O default no pagamento do serviço da dívida em 1987 trouxe repercussões negativas para a confiança brasileira pelas duas décadas seguintes.
- Assine a EXAME e fique por dentro das principais notícias que afetam o seu bolso.
Vale dizer que nosso problema de dívida não é de solvência, posto que a maior parte da dívida é interna. Na época em que mais de 60% da dívida era externa, nós dependíamos de reservas internacionais para que não houvesse crise de balanço de pagamentos, algo que foi muito comum em nossa história. No caso da dívida agora, o calote poderia vir por inflação, que corrói o valor da dívida, especialmente desinflando seu tamanho em proporção do PIB, como aconteceu este ano no Brasil. Mas a solução inflacionária é a pior de todas, vide o caso argentino que se mantém em crise permanente com uma inflação de 50% e sem solução no curto prazo.
As dificuldades à frente se dão basicamente porque as reformas que serão necessárias de serem feitas são cada vez mais difíceis. Já chegamos na carne de muitos gastos mais fáceis que poderiam ser diminuídos nas despesas discricionárias, especialmente investimento. Estes gastos estão hoje em torno de R$ 100 bilhões, que parece muito, mas é menos da metade do que já foi há alguns anos e no limite para colocar a máquina pública em funcionamento. As reformas precisarão ser mais profundas, como a administrativa de quem está no serviço público, e uma reforma da previdência adicional, afetando aposentadoria rural e voltando a aumentar a idade mínima para se aposentar. São reformas cada vez mais complicadas politicamente e que demandariam um presidente com ampla capacidade de conciliação, que parece não termos hoje. Falta alguém com o espírito de Tancredo Neves, que era um consenso na transição da ditadura para a democracia.
Sem esse presidente de consenso, corremos o risco de chegar em 2023 naufragando ainda em polarização e com um Congresso ainda fragmentado e dividido impedindo que reformas aconteçam. Será muito diferente de 2003, quando Lula assumiu tende o aval de Fernando Henrique Cardoso e um trabalho conjunto de governo e oposição para se votar matérias relevantes para o país, algo que se viu acontecer inclusive em alguns estados, como foi o caso do Espírito Santo.
A economia hoje se vê às voltas com um maior uso da política fiscal para estimular crescimento, especialmente depois da crise de 2008 e da pandemia em 2020. A política fiscal americana tem dado o tom do que pode ser feito para gastos públicos que podem ser produtivos, especialmente relacionados à ciência básica, educação, meio ambiente e infraestrutura. Mas os EUA têm uma grande diferença com o resto do mundo, que é ser o emissor da moeda de reserva da maioria dos países. Seu problema de endividamento se torna menor quando sua moeda se mantém sob a confiança dos investidores e o dólar se mantém com flutuação muito moderada. Além disso, as taxas de juros extremamente baixas asseguram uma dívida emitida de custo baixo.
O caso brasileiro é de um país sujo risco fiscal piora a percepção dos investidores (não emitimos dólar) além de termos uma taxa de juros básica que vai caminhar para mais de 10% ano que vem. Ainda não entramos em dominância fiscal, mas o risco é grande. Isso se dá quando aumentar o juro piora a inflação pelo impacto no câmbio via percepção de deterioração do fiscal pelo aumento de seu custo. Brasília está fazendo um grande esforço para levar o país para essa situação.
Vale dizer que investir nos pilares básicos que os americanos estão fazendo é importante. Precisa haver investimentos especialmente em ciência básica e educação, mas há que se ter muito cuidado quando se fala em política industrial em uma economia industrialmente diversificada como a nossa. Escolher os setores a receber benefícios sempre é uma arte e os exemplos recentes têm sido muito ruins, como o que se viu recorrentemente com o BNDES.
Nesse sentido, causa certa preocupação que a esquerda venha dando sinais claros que que não entendeu o que aconteceu nos últimos anos. A coletânea recém-lançada de Nelson Barbosa e Andre Roncaglia, “Bidenomics nos Trópicos”, mostra como a esquerda tem uma visão romantizada do espaço que se pode utilizar para a política pública. A essa altura acreditar que o II PND do governo Geisel só não funcionou porque deveria ter sido aprofundado mostra como a esquerda poderá causar problemas novamente na economia se continuar nessa toada.
Seria recomendável a todos os candidatos a presidente ano que vem que olhassem com atenção outro livro, de Affonso Celso Pastore, “Erros do Passado, Soluções para o Futuro”. Este, sim, mostra de forma clara e robusta os diversos erros que ocorreram em nossa economia nas últimas décadas e dá o básico do que não fazer novamente. Especialmente nesse momento de crise fiscal, o que deixa a quebra do teto ainda mais assombrosa é que nós já passamos por várias outras crises fiscais no passado e sabemos onde isso vai dar. Não é falta de conhecimento técnico, como era no caso da hiperinflação dos anos 80, para o qual ainda não se tinha o arcabouço teórico claro do que fazer, nem a vontade política para a mesma. Esse casamento virtuoso da economia e da política só veio a acontecer em 1994. Pastore mostra com clareza como era difícil lidar com uma passividade monetária nos anos 80 para o qual não se sabia o que fazer.
Mas hoje não podemos dizer que não se sabe o que fazer. O balanço dos erros está na condução da economia e da política sobre algo que já mais do que conhecido. Isso causa certa frustração, especialmente por olharmos o futuro e a terceira via, mesmo que apareça, tenha que ser um Tancredo Neves duplicado para enfrentar a polarização que nos aflige. Por isso, tudo, 2022 será um ano difícil, com crescimento zerado, inflação perto de 5% e taxa de câmbio se aproximando de R$/US$ 6,0. A estagflação que estamos passando, com queda de PIB per capita de 1,8% entre 2020 e 2022 e inflação de mais de 18% acumulada dá o tom das dificuldades que estamos enfrentando.
*Sergio Vale é economista-chefe da MB Associados.