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A construção dos “direitos econômicos” do brasileiro

A média de crescimento do PIB per capita de dez anos deve alcançar a baixa histórica, considerando uma série longa desde o início do século passado

(Leonidas Santana/Getty Images)
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Da Redação

Publicado em 21 de dezembro de 2021 às 10h56.

Última atualização em 21 de dezembro de 2021 às 11h05.

Por Sergio Vale

2022 promete ser mais um ano de desafios, como se já não os tivéssemos aos montes nas últimas décadas. Mas será um ano particularmente interessante para percebermos se o Brasil teve algum grau de evolução real na condução de sua economia ou não. O cerne da questão, de fato, está em 2023, quando se inicia um novo mandato, mas ano que vem saberemos as pautas econômicas que venceram a eleição e um vislumbre do que poderá ser a presidência a partir do ano seguinte.

A importância disso fica clara quando percebemos aonde chegaremos ano que vem. A média de crescimento do PIB per capita de dez anos deve alcançar a baixa histórica, considerando uma série longa desde o início do século passado (gráfico 1). Nem na década perdida dos anos 80 chegamos a um resultado tão ruim. Mas ao chegar ao piso naquele momento passamos por um momento de retomada, com reformas redirecionando a economia, a começar com o Plano Real, mas também com reformas microeconômicas e, tão importante quanto, uma certa estabilidade política que se prenunciava no início do mandato de Lula. O Brasil parecia ter alcançado a capacidade de gerir a economia sem ranços ideológicos. Como sabemos, essa história acaba mal em 2006 quando a política econômica muda de trajetória e começamos a construir as bases da deterioração da década seguinte.

Gráfico 1. Média móvel de dez anos do crescimento do PIB per capita brasileiro (%)

Média móvel de dez anos do crescimento do PIB per capita brasileiro (%) (IPEADATA, MB ASSOCIADOS)

Não será simples sair de uma base tão deteriorada quando a política está polarizada e os compromissos mínimos em economia, como vimos na quebra da regra do teto, não conseguem ser seguidos. O tamanho do trabalho não é pouco e terá que passar por um desafio que parecia ter ficado para traz, que é a estabilidade macroeconômica. Estamos com uma inflação de 10%, com o BC trabalhando sozinho para contê-la, e uma política fiscal em deterioração com sua captura quase completa pelo Congresso. Um sistema presidencialista tão personalista como o nosso com um Congresso que tem se fortalecido na criação de política econômica tem tudo para dar errado.

Mas o Brasil tem essa velha mania de buscar caminhos heterodoxos para solucionar seus problemas. Digno de nota é o livro recém reeditado de José Murilo de Carvalho, Cidadania no Brasil, que mostra de forma muito interessante como os direitos sociais antecederam os direitos políticos no Brasil da primeira metade do século passado. Ao invés de ter o caminho normal de buscar a luta por direitos sociais via participação política, Getúlio inverteu a ordem. Em uma sociedade pouco politizada ele se transformou no “doador” de direitos sociais para a população. Ficou a ideia de um direito dado e não conquistado.

Essa ideia de direitos sociais que vem de forma paternalista foi uma constante ao longo de nossa história, quase sempre sem levar em conta um outro tipo de cidadania que entendo como sendo tão relevante quando que é o que chamo de direitos econômicos. Em uma sociedade que o descaso com a condução da política econômica é uma constante, nós corremos o risco de inverter novamente o processo e dar direitos sociais para a população sem lhes garantir os direitos econômicos antes. Neste caso, entende-se como o direito a estabilidade econômica que gera aumento da riqueza. Direitos sociais ajudariam a diminuir a desigualdade de renda, mas sem os direitos econômicos que garantem a estabilidade econômica, os ganhos sociais não se sustentam como vimos acontecer nas últimas décadas.

O problema é que 2022 será um ano de discussão de direitos sociais, o que é meritório, claro, mas sem também a necessária preocupação com os direitos econômicos da sociedade. Corremos o risco novamente de chegar em 2023 e gastarmos política para ganhos sociais que se perderiam sem os ganhos econômicos também.

Nesse sentido, vale resgatar ideia que trouxe em outro artigo este ano sobre um indicador de vulnerabilidade macroeconômica que desenvolvi. Esse indicador considera 9 variáveis para 19 países emergentes e fiz dessa vez uma comparação entre 2002 e 2020 (gráficos 2 e 3). O que fica claro é como o Brasil depois de vinte anos ainda se encontra em forte instabilidade macroeconômica, com a Argentina sendo a campeã.

Gráfico 2. Índice de Vulnerabilidade Macroeconômica 2002

Índice de Vulnerabilidade Macroeconômica 2002 (IPEADATA, MB ASSOCIADOS/Divulgação)

Gráfico 3. Índice de Vulnerabilidade Macroeconômica 2020

Índice de Vulnerabilidade Macroeconômica 2020 (IPEADATA, MB ASSOCIADOS/Divulgação)

Tabela 1. Índice de Vulnerabilidade Macroeconômica 2002 e 2020 comparada por indicador

Índice de Vulnerabilidade Macroeconômica 2002 e 2020 comparada por indicador (IPEADATA, MB ASSOCIADOS/Divulgação)

Interessante notar que ao longo desses anos algumas questões passaram a ser ainda maior fonte de instabilidade quando se compara com 2002 (tabela1). Considerando 100% o pior caso, notamos como o Brasil tem uma taxa de poupança que permanece sendo das mais baixas do mundo, assim como investimento, e pior do que estava em 2002. Além disso, as questões fiscais aparecem hoje muito piores do que no passado, com a diferença de que em 2002 as questões externas eram mais relevantes, como o déficit em conta corrente e o baixo crescimento das exportações. Essas questões bastante, mas o cerne da baixa capacidade de crescimento permanece o mesmo: baixas taxas de poupança e investimento e alto risco fiscal que aumenta o prêmio de risco do país.

Temos que criar essa ideia da estabilidade econômica como um direito da sociedade, assim como o social e o político. Sem aquela essas duas podem gradativamente serem erodidas, como temos visto nos últimos anos. 2022 será o ano para termos ideia se o paternalismo economicamente irresponsável ainda ditará as regras.

Sergio Vale é economista-chefe da MB Associados

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Por Sergio Vale

2022 promete ser mais um ano de desafios, como se já não os tivéssemos aos montes nas últimas décadas. Mas será um ano particularmente interessante para percebermos se o Brasil teve algum grau de evolução real na condução de sua economia ou não. O cerne da questão, de fato, está em 2023, quando se inicia um novo mandato, mas ano que vem saberemos as pautas econômicas que venceram a eleição e um vislumbre do que poderá ser a presidência a partir do ano seguinte.

A importância disso fica clara quando percebemos aonde chegaremos ano que vem. A média de crescimento do PIB per capita de dez anos deve alcançar a baixa histórica, considerando uma série longa desde o início do século passado (gráfico 1). Nem na década perdida dos anos 80 chegamos a um resultado tão ruim. Mas ao chegar ao piso naquele momento passamos por um momento de retomada, com reformas redirecionando a economia, a começar com o Plano Real, mas também com reformas microeconômicas e, tão importante quanto, uma certa estabilidade política que se prenunciava no início do mandato de Lula. O Brasil parecia ter alcançado a capacidade de gerir a economia sem ranços ideológicos. Como sabemos, essa história acaba mal em 2006 quando a política econômica muda de trajetória e começamos a construir as bases da deterioração da década seguinte.

Gráfico 1. Média móvel de dez anos do crescimento do PIB per capita brasileiro (%)

Média móvel de dez anos do crescimento do PIB per capita brasileiro (%) (IPEADATA, MB ASSOCIADOS)

Não será simples sair de uma base tão deteriorada quando a política está polarizada e os compromissos mínimos em economia, como vimos na quebra da regra do teto, não conseguem ser seguidos. O tamanho do trabalho não é pouco e terá que passar por um desafio que parecia ter ficado para traz, que é a estabilidade macroeconômica. Estamos com uma inflação de 10%, com o BC trabalhando sozinho para contê-la, e uma política fiscal em deterioração com sua captura quase completa pelo Congresso. Um sistema presidencialista tão personalista como o nosso com um Congresso que tem se fortalecido na criação de política econômica tem tudo para dar errado.

Mas o Brasil tem essa velha mania de buscar caminhos heterodoxos para solucionar seus problemas. Digno de nota é o livro recém reeditado de José Murilo de Carvalho, Cidadania no Brasil, que mostra de forma muito interessante como os direitos sociais antecederam os direitos políticos no Brasil da primeira metade do século passado. Ao invés de ter o caminho normal de buscar a luta por direitos sociais via participação política, Getúlio inverteu a ordem. Em uma sociedade pouco politizada ele se transformou no “doador” de direitos sociais para a população. Ficou a ideia de um direito dado e não conquistado.

Essa ideia de direitos sociais que vem de forma paternalista foi uma constante ao longo de nossa história, quase sempre sem levar em conta um outro tipo de cidadania que entendo como sendo tão relevante quando que é o que chamo de direitos econômicos. Em uma sociedade que o descaso com a condução da política econômica é uma constante, nós corremos o risco de inverter novamente o processo e dar direitos sociais para a população sem lhes garantir os direitos econômicos antes. Neste caso, entende-se como o direito a estabilidade econômica que gera aumento da riqueza. Direitos sociais ajudariam a diminuir a desigualdade de renda, mas sem os direitos econômicos que garantem a estabilidade econômica, os ganhos sociais não se sustentam como vimos acontecer nas últimas décadas.

O problema é que 2022 será um ano de discussão de direitos sociais, o que é meritório, claro, mas sem também a necessária preocupação com os direitos econômicos da sociedade. Corremos o risco novamente de chegar em 2023 e gastarmos política para ganhos sociais que se perderiam sem os ganhos econômicos também.

Nesse sentido, vale resgatar ideia que trouxe em outro artigo este ano sobre um indicador de vulnerabilidade macroeconômica que desenvolvi. Esse indicador considera 9 variáveis para 19 países emergentes e fiz dessa vez uma comparação entre 2002 e 2020 (gráficos 2 e 3). O que fica claro é como o Brasil depois de vinte anos ainda se encontra em forte instabilidade macroeconômica, com a Argentina sendo a campeã.

Gráfico 2. Índice de Vulnerabilidade Macroeconômica 2002

Índice de Vulnerabilidade Macroeconômica 2002 (IPEADATA, MB ASSOCIADOS/Divulgação)

Gráfico 3. Índice de Vulnerabilidade Macroeconômica 2020

Índice de Vulnerabilidade Macroeconômica 2020 (IPEADATA, MB ASSOCIADOS/Divulgação)

Tabela 1. Índice de Vulnerabilidade Macroeconômica 2002 e 2020 comparada por indicador

Índice de Vulnerabilidade Macroeconômica 2002 e 2020 comparada por indicador (IPEADATA, MB ASSOCIADOS/Divulgação)

Interessante notar que ao longo desses anos algumas questões passaram a ser ainda maior fonte de instabilidade quando se compara com 2002 (tabela1). Considerando 100% o pior caso, notamos como o Brasil tem uma taxa de poupança que permanece sendo das mais baixas do mundo, assim como investimento, e pior do que estava em 2002. Além disso, as questões fiscais aparecem hoje muito piores do que no passado, com a diferença de que em 2002 as questões externas eram mais relevantes, como o déficit em conta corrente e o baixo crescimento das exportações. Essas questões bastante, mas o cerne da baixa capacidade de crescimento permanece o mesmo: baixas taxas de poupança e investimento e alto risco fiscal que aumenta o prêmio de risco do país.

Temos que criar essa ideia da estabilidade econômica como um direito da sociedade, assim como o social e o político. Sem aquela essas duas podem gradativamente serem erodidas, como temos visto nos últimos anos. 2022 será o ano para termos ideia se o paternalismo economicamente irresponsável ainda ditará as regras.

Sergio Vale é economista-chefe da MB Associados

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