Delações Premiadas e a Lava Jato (Parte 2)
Marcelo Odebrecht fez de tudo para não ser delator. Após Ricardo Pessoa, dono da empreiteira UTC, revelar os detalhes do cartel formado para saquear os investimentos em infraestrutura dos governos petistas, Odebrecht sabia que teria de fornecer informações detalhadas sobre os esquemas (não necessariamente tudo, pois ainda tinha esperança de firmar um acordo de leniência […]
Da Redação
Publicado em 23 de junho de 2017 às 08h58.
Marcelo Odebrecht fez de tudo para não ser delator. Após Ricardo Pessoa, dono da empreiteira UTC, revelar os detalhes do cartel formado para saquear os investimentos em infraestrutura dos governos petistas, Odebrecht sabia que teria de fornecer informações detalhadas sobre os esquemas (não necessariamente tudo, pois ainda tinha esperança de firmar um acordo de leniência favorável para salvar-se como pessoa jurídica). Comprometeria não só sua empresa, mas também os variados atores políticos que viabilizaram – e se aproveitaram, é claro – dos atos corruptos.
De acordo com a legislação brasileira, delatores podem negociar tanto com policiais federais quanto com procuradores do Ministério Público. A Polícia Federal tem incentivos para obter o máximo de informações que auxiliarão as investigações, com novos leads, e terá um ganho reputacional com isso. Afinal, poderão vender à sociedade a ideia de que “sem uma Polícia Federal forte e autônoma, vocês não saberiam quão corrupto é o país e continuariam tendo seu dinheiro desviado”. No entanto, policiais não podem negociar a redução de penas e multas. E é este o maior incentivo para que um possível delator revele mais informações sobre os esquemas de corrupção.
Também o Ministério Público avalia os custos e benefícios de firmar acordos de colaboração premiada com suspeitos de corrupção. À primeira vista, quanto mais acordos realizados, melhor para a instituição. Mais informações sobre os crimes serão reveladas, mais políticos serão implicados, maior o ganho reputacional para os procuradores, mais pressão pública haverá para que o Judiciário (tanto de primeira instância, como Sérgio Moro, quanto em “quarta instância”, o Supremo Tribunal Federal) puna os criminosos mais relevantes. Mas será ruim, para o Ministério Público, se os acordos de colaboração forem vistos como excessivamente generosos para os delatores. Pessoas como o ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, vivem com conforto em prisão domiciliar. (Quando dirigente público, Machado recebia auditores do Tribunal de Contas da União com pompa, contando a história do papai que foi prefeito de Garanhuns e no fim de ano abria os cofres da prefeitura para ajudar os pobres, “hoje infelizmente por causa da imprensa a gente tem que fazer política de um jeito diferente”.)
Esse dilema dos procuradores foi facilitado pela baixíssima expectativa de punição de corruptos no Brasil. Mesmo após o Mensalão, no qual 38 políticos e empresários foram julgados pelo STF, analistas discutiam se o comportamento do Judiciário seria consistente ao longo do tempo e se o escândalo mudaria os cálculos dos atores corruptos (ver, por exemplo, o texto ““A great leap forward for democracy and the rule of law? Brazil’s Mensalão Trial”, de Greg Michener e Carlos Pereira, publicado no Journal of Latin American Studies em 2016).
Ora, quanto menor a expectativa de punição judicial, menos chance haverá de um criminoso topar um acordo de colaboração premiada. Afinal, notórios implicados em esquemas como o deputado federal Paulo Maluf (PP) livraram-se da cadeia, durante décadas, por usarem todos os recursos jurídicos possíveis, alongando o andamento dos processos para que os crimes prescrevessem – ou seja, para que os promotores não pudessem mais puni-los devido ao tempo passado entre o suposto ato e a possível punição. Para que, então, firmar acordos?
No caso de empreiteiros como Odebrecht e Ricardo Pessoa (UTC), acordos de colaboração com os órgãos de combate à corrupção eram ainda menos prováveis. Mesmo com as evidências mostradas pelo doleiro Alberto Youssef e o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa em 2014, Pessoa e Odebrecht pensavam que poderiam se livrar com apenas uma multa por formação de cartel, a ser firmada com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), conforme conta o jornalista Vladimir Netto (“Lava Jato: o juiz Sergio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil”, Ed. Primeira Pessoa, 2016).
O ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, famoso advogado criminalista, tentou intermediar um acordo nesse sentido com Rodrigo Janot, Procurador-Geral da República. O Ministério Público Federal toparia punir os corruptos apenas com uma multa bilionária. (“1 bi. Confissão cartel. Trazer a investigação para o STF. Estudar o acordão [a melhor forma]. Fragilizar as delações. Eliminar as delações/denúncias arquivadas. Ações de improbidade”. Essas foram as anotações encontradas na casa de Ricardo Pessoa pela Polícia Federal.) Thomaz Bastos não teve sucesso. Pessoa foi preso em novembro de 2014. Seis meses depois, solto pela primeira vez e com forte perspectiva de voltar à cadeia, o empreiteiro firmou colaboração premiada com o Ministério Público Federal. Apresentou provas documentais de propina para PP, PT e PMDB.
Àquela altura, a delação mais relevante de corruptores havia sido a dos empresários da Toyo Setal, uma empresa bem menor. Augusto Ribeiro de Mendonça Neto e Júlio Camargo mostraram o envolvimento de Renato Duque (ex-diretor de Serviços da Petrobras) e o operador Fernando Baiano – ambos se tornaram colaboradores do Ministério Público Federal posteriormente. Foram os primeiros a expor o cartel das empreiteiras. Marcelo Odebrecht foi preso menos de um mês depois de Pessoa falar, sem que tivesse sido divulgado ainda o conteúdo da delação do dono da UTC.
Se Odebrecht fosse perfeitamente racional, teria corrido para firmar um acordo de colaboração premiada assim que foi preso. Já estava evidente que o clima de punição no Brasil estava mudando. Quanto mais cedo colaborasse, maiores as chances de estabelecer um acordo com menos tempo na cadeia. Mas o “espectro do julgamento” ainda não era forte suficiente para forçar sua confissão. Conforme Stephanos Bibas escreve, os estudiosos de colaborações premiadas costumam exagerar a expectativa de punição como driver desse expediente (“Plea Bargaining Outside the Shadow of Trial”, publicado na Harvard Law Review em 2004). Pessoas são otimistas e empreendedores como Odebrecht arriscam bastante. É uma bela combinação para não se dar bem.
Uma decisão do Supremo Tribunal Federal em março de 2016 complicou mais ainda a situação dos empresários e políticos corruptos. Os juízes atualizaram a interpretação do princípio da presunção de inocência ao decidir que quem for condenado em segunda instância deve começar a cumprir sua pena imediatamente, sem poder recorrer em liberdade ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou ao próprio Supremo. Logo em seguida à decisão, o deputado federal Wadih Damous (PT) protocolou projeto de lei para voltar ao quadro anterior, no qual recursos jurídicos impediriam o condenado de permanecer preso (ver “Projeto de Wadih Damous visa impedir execução provisória da pena”, Raquel Alves, JOTA, 3-Maio-2016). Não funcionou.
Delações como as de Delcídio do Amaral, Ricardo Pessoa e Marcelo Odebrecht implicaram dezenas de políticos dos mais diversos partidos. Ficou cada vez mais difícil afirmar, como muitos faziam em 2015 e 2016, que a Operação Lava Jato perseguia o Partido dos Trabalhadores. Afinal, os delatores inicialmente frisavam, na interpretação dos simpatizantes ao PT, os crimes cometidos por petistas e minimizam o envolvimento de tucanos e peemedebistas. Um interessante estudo mostra que além da corrupção (neste caso, o escândalo do Mensalão), a guinada do PT à agenda econômica conservadora em 2003 causou confusão entre os militantes do partido. (É o texto “The Dynamics of Partisan Identification When Party Brands Change: The Case of the Workers Party in Brazil”, de Andy Baker, Barry Ames, Anand Sokhey e Lucio Rennó, publicado no Journal of Politics em 2015.)
Simpatizantes preferem ignorar informações do que atualizar suas crenças sobre quais partidos políticos são organizações criminosas. Do jeito que as coisas vão, as eleições de 2018 serão as com menor identificação partidária na história. Consequência ruim – mas razoável – da Operação Lava Jato.
Marcelo Odebrecht fez de tudo para não ser delator. Após Ricardo Pessoa, dono da empreiteira UTC, revelar os detalhes do cartel formado para saquear os investimentos em infraestrutura dos governos petistas, Odebrecht sabia que teria de fornecer informações detalhadas sobre os esquemas (não necessariamente tudo, pois ainda tinha esperança de firmar um acordo de leniência favorável para salvar-se como pessoa jurídica). Comprometeria não só sua empresa, mas também os variados atores políticos que viabilizaram – e se aproveitaram, é claro – dos atos corruptos.
De acordo com a legislação brasileira, delatores podem negociar tanto com policiais federais quanto com procuradores do Ministério Público. A Polícia Federal tem incentivos para obter o máximo de informações que auxiliarão as investigações, com novos leads, e terá um ganho reputacional com isso. Afinal, poderão vender à sociedade a ideia de que “sem uma Polícia Federal forte e autônoma, vocês não saberiam quão corrupto é o país e continuariam tendo seu dinheiro desviado”. No entanto, policiais não podem negociar a redução de penas e multas. E é este o maior incentivo para que um possível delator revele mais informações sobre os esquemas de corrupção.
Também o Ministério Público avalia os custos e benefícios de firmar acordos de colaboração premiada com suspeitos de corrupção. À primeira vista, quanto mais acordos realizados, melhor para a instituição. Mais informações sobre os crimes serão reveladas, mais políticos serão implicados, maior o ganho reputacional para os procuradores, mais pressão pública haverá para que o Judiciário (tanto de primeira instância, como Sérgio Moro, quanto em “quarta instância”, o Supremo Tribunal Federal) puna os criminosos mais relevantes. Mas será ruim, para o Ministério Público, se os acordos de colaboração forem vistos como excessivamente generosos para os delatores. Pessoas como o ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, vivem com conforto em prisão domiciliar. (Quando dirigente público, Machado recebia auditores do Tribunal de Contas da União com pompa, contando a história do papai que foi prefeito de Garanhuns e no fim de ano abria os cofres da prefeitura para ajudar os pobres, “hoje infelizmente por causa da imprensa a gente tem que fazer política de um jeito diferente”.)
Esse dilema dos procuradores foi facilitado pela baixíssima expectativa de punição de corruptos no Brasil. Mesmo após o Mensalão, no qual 38 políticos e empresários foram julgados pelo STF, analistas discutiam se o comportamento do Judiciário seria consistente ao longo do tempo e se o escândalo mudaria os cálculos dos atores corruptos (ver, por exemplo, o texto ““A great leap forward for democracy and the rule of law? Brazil’s Mensalão Trial”, de Greg Michener e Carlos Pereira, publicado no Journal of Latin American Studies em 2016).
Ora, quanto menor a expectativa de punição judicial, menos chance haverá de um criminoso topar um acordo de colaboração premiada. Afinal, notórios implicados em esquemas como o deputado federal Paulo Maluf (PP) livraram-se da cadeia, durante décadas, por usarem todos os recursos jurídicos possíveis, alongando o andamento dos processos para que os crimes prescrevessem – ou seja, para que os promotores não pudessem mais puni-los devido ao tempo passado entre o suposto ato e a possível punição. Para que, então, firmar acordos?
No caso de empreiteiros como Odebrecht e Ricardo Pessoa (UTC), acordos de colaboração com os órgãos de combate à corrupção eram ainda menos prováveis. Mesmo com as evidências mostradas pelo doleiro Alberto Youssef e o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa em 2014, Pessoa e Odebrecht pensavam que poderiam se livrar com apenas uma multa por formação de cartel, a ser firmada com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), conforme conta o jornalista Vladimir Netto (“Lava Jato: o juiz Sergio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil”, Ed. Primeira Pessoa, 2016).
O ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, famoso advogado criminalista, tentou intermediar um acordo nesse sentido com Rodrigo Janot, Procurador-Geral da República. O Ministério Público Federal toparia punir os corruptos apenas com uma multa bilionária. (“1 bi. Confissão cartel. Trazer a investigação para o STF. Estudar o acordão [a melhor forma]. Fragilizar as delações. Eliminar as delações/denúncias arquivadas. Ações de improbidade”. Essas foram as anotações encontradas na casa de Ricardo Pessoa pela Polícia Federal.) Thomaz Bastos não teve sucesso. Pessoa foi preso em novembro de 2014. Seis meses depois, solto pela primeira vez e com forte perspectiva de voltar à cadeia, o empreiteiro firmou colaboração premiada com o Ministério Público Federal. Apresentou provas documentais de propina para PP, PT e PMDB.
Àquela altura, a delação mais relevante de corruptores havia sido a dos empresários da Toyo Setal, uma empresa bem menor. Augusto Ribeiro de Mendonça Neto e Júlio Camargo mostraram o envolvimento de Renato Duque (ex-diretor de Serviços da Petrobras) e o operador Fernando Baiano – ambos se tornaram colaboradores do Ministério Público Federal posteriormente. Foram os primeiros a expor o cartel das empreiteiras. Marcelo Odebrecht foi preso menos de um mês depois de Pessoa falar, sem que tivesse sido divulgado ainda o conteúdo da delação do dono da UTC.
Se Odebrecht fosse perfeitamente racional, teria corrido para firmar um acordo de colaboração premiada assim que foi preso. Já estava evidente que o clima de punição no Brasil estava mudando. Quanto mais cedo colaborasse, maiores as chances de estabelecer um acordo com menos tempo na cadeia. Mas o “espectro do julgamento” ainda não era forte suficiente para forçar sua confissão. Conforme Stephanos Bibas escreve, os estudiosos de colaborações premiadas costumam exagerar a expectativa de punição como driver desse expediente (“Plea Bargaining Outside the Shadow of Trial”, publicado na Harvard Law Review em 2004). Pessoas são otimistas e empreendedores como Odebrecht arriscam bastante. É uma bela combinação para não se dar bem.
Uma decisão do Supremo Tribunal Federal em março de 2016 complicou mais ainda a situação dos empresários e políticos corruptos. Os juízes atualizaram a interpretação do princípio da presunção de inocência ao decidir que quem for condenado em segunda instância deve começar a cumprir sua pena imediatamente, sem poder recorrer em liberdade ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou ao próprio Supremo. Logo em seguida à decisão, o deputado federal Wadih Damous (PT) protocolou projeto de lei para voltar ao quadro anterior, no qual recursos jurídicos impediriam o condenado de permanecer preso (ver “Projeto de Wadih Damous visa impedir execução provisória da pena”, Raquel Alves, JOTA, 3-Maio-2016). Não funcionou.
Delações como as de Delcídio do Amaral, Ricardo Pessoa e Marcelo Odebrecht implicaram dezenas de políticos dos mais diversos partidos. Ficou cada vez mais difícil afirmar, como muitos faziam em 2015 e 2016, que a Operação Lava Jato perseguia o Partido dos Trabalhadores. Afinal, os delatores inicialmente frisavam, na interpretação dos simpatizantes ao PT, os crimes cometidos por petistas e minimizam o envolvimento de tucanos e peemedebistas. Um interessante estudo mostra que além da corrupção (neste caso, o escândalo do Mensalão), a guinada do PT à agenda econômica conservadora em 2003 causou confusão entre os militantes do partido. (É o texto “The Dynamics of Partisan Identification When Party Brands Change: The Case of the Workers Party in Brazil”, de Andy Baker, Barry Ames, Anand Sokhey e Lucio Rennó, publicado no Journal of Politics em 2015.)
Simpatizantes preferem ignorar informações do que atualizar suas crenças sobre quais partidos políticos são organizações criminosas. Do jeito que as coisas vão, as eleições de 2018 serão as com menor identificação partidária na história. Consequência ruim – mas razoável – da Operação Lava Jato.