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Cargos de confiança e a fabricação de boas notícias

Governos sobrevivem de boas notícias. Donald Trump acaba de bombardear a Síria em parte para se afastar de uma má notícia: a insinuação (bastante crível) de que foi eleito com ajuda da Rússia. O ataque à Síria joga água nessa história. Michel Temer não tem essa opção. Precisa criar boas manchetes do nada. Fez isso […]

GOVERNO: cada líder partidário se acha no direito de indicar nomes para vários postos / Ueslei Marcelino / Reuters
DR

Da Redação

Publicado em 11 de abril de 2017 às 15h27.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h35.

Governos sobrevivem de boas notícias. Donald Trump acaba de bombardear a Síria em parte para se afastar de uma má notícia: a insinuação (bastante crível) de que foi eleito com ajuda da Rússia. O ataque à Síria joga água nessa história. Michel Temer não tem essa opção. Precisa criar boas manchetes do nada. Fez isso há alguns dias. O ministro do Planejamento, Dyogo Oliveira, decretou que 60% dos cargos DAS-5 e 6 (os mais altos da administração federal) terão que ser preenchidos por funcionários que já prestaram concurso no nível federal, estadual ou municipal. (DAS significa “Direção e Assessoramento Superior”.)

Não havia limite antes. À primeira vista, a ideia parece sensacional. Afinal, já está provado cientificamente que quanto mais funcionários filiados a partidos em cargos DAS um ministério tem, mais escândalos de corrupção haverá naquele órgão (ver State Capacity, Bureaucratic Politicization, and Corruption in the Brazilian State, artigo que escrevi com Kate Bersch e Matthew Taylor, publicado na revista Governance este ano). Mas pessoas concursadas podem ser filiadas a partidos políticos. E todos os diretores corruptos da Petrobras eram funcionários estáveis, antigos na organização.

Mesmo assim, a medida de Oliveira agradou muita gente. O Estadão publicou editorial elogioso, citando-a como exemplo de “moralização administrativa”. O jornal também cita a substituição de 10.000 cargos DAS por “funções comissionadas do Poder Executivo”, que seriam exclusivas de funcionários concursados. Isto foi anunciado em 2016 durante a breve passagem de Romero Jucá (PMDB) pelo Ministério do Planejamento. Hoje senador, Jucá demitiu-se após ser pego conversando com Sérgio Machado, ex-diretor da Transpetro, sobre como parar a Operação Lava-Jato. Apelidadas de FCPE, as funções comissionadas parecem uma ótima maneira de prevenir corrupção. A pergunta óbvia é: por que Romero Jucá apoiaria uma coisa dessas? Apenas duas respostas são críveis: por ingenuidade ou para gerar uma boa notícia para o governo.

Antes de mais nada, o que são cargos DAS? Eles são fruto da reforma administrativa iniciada em 1967, sendo formalizados em dezembro de 1970. Dois anos depois, foram divididos em duas categorias: direção superior e assessoramento superior. São também separados em níveis de 1 a 6, com respectivos salário e atribuições aumentando progressivamente. O funcionário DAS-1 ganha 2.300 reais, enquanto o DAS-6 recebe 14.500 reais. Esses servidores, especialmente os de nível 4 a 6, têm acesso privilegiado à informação governamental e as prerrogativas dos cargos lhes permitem controlar, influenciar e implementar decisões politicamente relevantes.

Em grande medida, a divisão dos cargos obedece à lógica do presidencialismo de coalizão. O presidente eleito recorre às prerrogativas de nomeação para obter maioria no Congresso e compor uma coalizão – majoritária – que o apoie. Explícita ou implicitamente, há uma permuta entre controle partidário de órgãos governamentais (principalmente ministérios e setores de estatais), que inclui o controle das nomeações, e apoio parlamentar no Congresso Nacional. A alocação de verbas do orçamento e a divisão dos cargos são recursos de poder valiosos para o Executivo cimentar uma coalizão majoritária e estável, embora as concessões e acordos políticos não ocorram sem tensões e disputas.

Para além do presidencialismo de coalizão, como é explicada a dinâmica de alocação de cargos de confiança nos últimos anos? Duas perspectivas têm sido colocadas por estudiosos. A primeira, defendida especialmente por acadêmicos que trabalham para órgãos governamentais, foca o lado positivo desses cargos. Não se trata de forçar a barra. A profissionalização da alta administração federal realmente ocorreu. Os ocupantes de cargos DAS tornaram-se mais qualificados e mais bem remunerados entre 1995 e 2014, conforme mostram Pedro Cavalcante e Paulo Carvalho em texto recente na Revista de Administração Pública.

Podemos, a partir disso, imaginar que quanto maior a remuneração do funcionário, menos propensos a atos corruptos eles serão. Isto é comprovado por economistas e é contra nossa intuição: afinal, funcionário público que ganha muito deve ser marajá. Não é verdade no caso dos DAS. O maior salário da categoria, como já mencionei, é 14.500 reais. Alto para a média brasileira, mas longe de escandaloso no setor público. É menos do que ganha um policial federal.

A segunda perspectiva trata cargos de confiança como porta de entrada para atos corruptos. Isso não significa, é claro, que todo detentor de cargo de confiança será corrupto, nem mesmo filiado a partido político. De acordo com o último levantamento que fiz sobre isso com Wesley Seidel, utilizando dados de janeiro deste ano, cerca de 15.000 funcionários DAS não são filiados a partidos, e cerca de 2.000 são. Embora a proporção seja baixa, o número absoluto é alto. O presidente dos Estados Unidos tem a seu dispor por volta de 2.500 cargos de livre nomeação – ou seja, 20% do que seu colega brasileiro. (Esse dado está em The politics of presidential appointments: political control and bureaucratic performance, de David Lewis, Princeton University Press, 2008.) Já que há muitos cargos, cada líder partidário se acha no direito de indicar nomes para vários postos.

Nosso ministro da Justiça, Osmar Serraglio (PMDB), sabe bem como isso funciona. Ajudou a indicar um superintendente estadual do Ministério da Agricultura que tinha um esquema com frigoríficos. O fiscal foi grampeado e nós, brasileiros, ficamos sabendo que o ministro da Justiça chama um funcionário corrupto de “grande chefe”.

Para os políticos, controlar cargos DAS em seus estados é também um ótimo jeito para financiar campanhas. No nível estadual, investigações policiais e do Ministério Público são bem mais raras. Governadores também não terão interesse em atrapalhar esquemas. São cargos DAS-4. Hoje, nos estados, há 640 deles, 155 dos quais são filiados a partidos políticos. Ou seja, 24% – bem acima da média de 11% se levarmos em conta todos os cargos DAS. Podem ser cargos tanto de fiscalização (e a Operação Carne Fraca ilustra bem como essa tarefa pode ser desviada) quanto de definição de alocação de recursos, o que permite ao político recompensar sua base eleitoral e/ou ampliá-la.

Outro problema grave é que o excesso de cargos – hoje são 17.000 5.000 a menos do que quando Michel Temer (PMDB) assumiu a presidência – atrapalham relações hierárquicas nas organizações. Imagine um responsável por uma secretaria dentro de um ministério, ocupante de um DAS-5. Talvez ele tenha chegado àquela posição por conta de uma indicação política. Na prática, ele terá dois chefes: o ministro e o político que o indicou. Caso ele seja filiado a um partido político, complica mais ainda. Neste caso, ele terá que equilibrar as ordens do ministro, os pedidos do político que o indicou e as demandas de sua própria carreira política.

Então a iniciativa de reservar 60% dos DAS-5 e DAS-6 para servidores concursados é uma ótima notícia, não? Quem já prestou concurso pode até ser filiado a um partido político, mas seu emprego não dependerá disso. Infelizmente, a medida será inócua. De acordo com os dados divulgados pelo Portal da Transparência do governo federal, 60% dos cargos DAS-5 já são de servidores, e 51% dos DAS-6 também. Isso indica que algum tipo de expertise é importante para obter cargos de confiança mais relevantes. Embora esteja claro que o governo quer nos enganar com “fake news”, este dado é um alento. Mas o tom pessimista no fim do texto é inevitável: nem começamos a falar dos cargos em empresas estatais… uma caixa­-preta!

(sergio.praca@fgv.br)

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Governos sobrevivem de boas notícias. Donald Trump acaba de bombardear a Síria em parte para se afastar de uma má notícia: a insinuação (bastante crível) de que foi eleito com ajuda da Rússia. O ataque à Síria joga água nessa história. Michel Temer não tem essa opção. Precisa criar boas manchetes do nada. Fez isso há alguns dias. O ministro do Planejamento, Dyogo Oliveira, decretou que 60% dos cargos DAS-5 e 6 (os mais altos da administração federal) terão que ser preenchidos por funcionários que já prestaram concurso no nível federal, estadual ou municipal. (DAS significa “Direção e Assessoramento Superior”.)

Não havia limite antes. À primeira vista, a ideia parece sensacional. Afinal, já está provado cientificamente que quanto mais funcionários filiados a partidos em cargos DAS um ministério tem, mais escândalos de corrupção haverá naquele órgão (ver State Capacity, Bureaucratic Politicization, and Corruption in the Brazilian State, artigo que escrevi com Kate Bersch e Matthew Taylor, publicado na revista Governance este ano). Mas pessoas concursadas podem ser filiadas a partidos políticos. E todos os diretores corruptos da Petrobras eram funcionários estáveis, antigos na organização.

Mesmo assim, a medida de Oliveira agradou muita gente. O Estadão publicou editorial elogioso, citando-a como exemplo de “moralização administrativa”. O jornal também cita a substituição de 10.000 cargos DAS por “funções comissionadas do Poder Executivo”, que seriam exclusivas de funcionários concursados. Isto foi anunciado em 2016 durante a breve passagem de Romero Jucá (PMDB) pelo Ministério do Planejamento. Hoje senador, Jucá demitiu-se após ser pego conversando com Sérgio Machado, ex-diretor da Transpetro, sobre como parar a Operação Lava-Jato. Apelidadas de FCPE, as funções comissionadas parecem uma ótima maneira de prevenir corrupção. A pergunta óbvia é: por que Romero Jucá apoiaria uma coisa dessas? Apenas duas respostas são críveis: por ingenuidade ou para gerar uma boa notícia para o governo.

Antes de mais nada, o que são cargos DAS? Eles são fruto da reforma administrativa iniciada em 1967, sendo formalizados em dezembro de 1970. Dois anos depois, foram divididos em duas categorias: direção superior e assessoramento superior. São também separados em níveis de 1 a 6, com respectivos salário e atribuições aumentando progressivamente. O funcionário DAS-1 ganha 2.300 reais, enquanto o DAS-6 recebe 14.500 reais. Esses servidores, especialmente os de nível 4 a 6, têm acesso privilegiado à informação governamental e as prerrogativas dos cargos lhes permitem controlar, influenciar e implementar decisões politicamente relevantes.

Em grande medida, a divisão dos cargos obedece à lógica do presidencialismo de coalizão. O presidente eleito recorre às prerrogativas de nomeação para obter maioria no Congresso e compor uma coalizão – majoritária – que o apoie. Explícita ou implicitamente, há uma permuta entre controle partidário de órgãos governamentais (principalmente ministérios e setores de estatais), que inclui o controle das nomeações, e apoio parlamentar no Congresso Nacional. A alocação de verbas do orçamento e a divisão dos cargos são recursos de poder valiosos para o Executivo cimentar uma coalizão majoritária e estável, embora as concessões e acordos políticos não ocorram sem tensões e disputas.

Para além do presidencialismo de coalizão, como é explicada a dinâmica de alocação de cargos de confiança nos últimos anos? Duas perspectivas têm sido colocadas por estudiosos. A primeira, defendida especialmente por acadêmicos que trabalham para órgãos governamentais, foca o lado positivo desses cargos. Não se trata de forçar a barra. A profissionalização da alta administração federal realmente ocorreu. Os ocupantes de cargos DAS tornaram-se mais qualificados e mais bem remunerados entre 1995 e 2014, conforme mostram Pedro Cavalcante e Paulo Carvalho em texto recente na Revista de Administração Pública.

Podemos, a partir disso, imaginar que quanto maior a remuneração do funcionário, menos propensos a atos corruptos eles serão. Isto é comprovado por economistas e é contra nossa intuição: afinal, funcionário público que ganha muito deve ser marajá. Não é verdade no caso dos DAS. O maior salário da categoria, como já mencionei, é 14.500 reais. Alto para a média brasileira, mas longe de escandaloso no setor público. É menos do que ganha um policial federal.

A segunda perspectiva trata cargos de confiança como porta de entrada para atos corruptos. Isso não significa, é claro, que todo detentor de cargo de confiança será corrupto, nem mesmo filiado a partido político. De acordo com o último levantamento que fiz sobre isso com Wesley Seidel, utilizando dados de janeiro deste ano, cerca de 15.000 funcionários DAS não são filiados a partidos, e cerca de 2.000 são. Embora a proporção seja baixa, o número absoluto é alto. O presidente dos Estados Unidos tem a seu dispor por volta de 2.500 cargos de livre nomeação – ou seja, 20% do que seu colega brasileiro. (Esse dado está em The politics of presidential appointments: political control and bureaucratic performance, de David Lewis, Princeton University Press, 2008.) Já que há muitos cargos, cada líder partidário se acha no direito de indicar nomes para vários postos.

Nosso ministro da Justiça, Osmar Serraglio (PMDB), sabe bem como isso funciona. Ajudou a indicar um superintendente estadual do Ministério da Agricultura que tinha um esquema com frigoríficos. O fiscal foi grampeado e nós, brasileiros, ficamos sabendo que o ministro da Justiça chama um funcionário corrupto de “grande chefe”.

Para os políticos, controlar cargos DAS em seus estados é também um ótimo jeito para financiar campanhas. No nível estadual, investigações policiais e do Ministério Público são bem mais raras. Governadores também não terão interesse em atrapalhar esquemas. São cargos DAS-4. Hoje, nos estados, há 640 deles, 155 dos quais são filiados a partidos políticos. Ou seja, 24% – bem acima da média de 11% se levarmos em conta todos os cargos DAS. Podem ser cargos tanto de fiscalização (e a Operação Carne Fraca ilustra bem como essa tarefa pode ser desviada) quanto de definição de alocação de recursos, o que permite ao político recompensar sua base eleitoral e/ou ampliá-la.

Outro problema grave é que o excesso de cargos – hoje são 17.000 5.000 a menos do que quando Michel Temer (PMDB) assumiu a presidência – atrapalham relações hierárquicas nas organizações. Imagine um responsável por uma secretaria dentro de um ministério, ocupante de um DAS-5. Talvez ele tenha chegado àquela posição por conta de uma indicação política. Na prática, ele terá dois chefes: o ministro e o político que o indicou. Caso ele seja filiado a um partido político, complica mais ainda. Neste caso, ele terá que equilibrar as ordens do ministro, os pedidos do político que o indicou e as demandas de sua própria carreira política.

Então a iniciativa de reservar 60% dos DAS-5 e DAS-6 para servidores concursados é uma ótima notícia, não? Quem já prestou concurso pode até ser filiado a um partido político, mas seu emprego não dependerá disso. Infelizmente, a medida será inócua. De acordo com os dados divulgados pelo Portal da Transparência do governo federal, 60% dos cargos DAS-5 já são de servidores, e 51% dos DAS-6 também. Isso indica que algum tipo de expertise é importante para obter cargos de confiança mais relevantes. Embora esteja claro que o governo quer nos enganar com “fake news”, este dado é um alento. Mas o tom pessimista no fim do texto é inevitável: nem começamos a falar dos cargos em empresas estatais… uma caixa­-preta!

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