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Precisamos falar sobre a fome: Como podemos ser capazes de reverter essa situação?

Mais do que nunca, a insegurança alimentar e a fome são problemas mundiais amplificados pela escalada inflacionária global

Doação de alimentos no Brasil durante a fase mais aguda da pandemia: mais de 33 milhões de brasileiros estão em situação de fome em 2022 (Ednubia Ghis/Fotos Públicas)
DR

Da Redação

Publicado em 17 de junho de 2022 às 14h21.

Neste ano de 2022, as manchetes dos principais veículos de comunicação, no Brasil e no mundo, destacam a insegurança alimentar como realidade de um número crescente de indivíduos, especialmente no Brasil, onde houve aumento grave do número de pessoas que estão passando pela situação de fome.

Mais do que nunca, a insegurança alimentar e a fome são problemas mundiais amplificados pelos efeitos que a escalada inflacionária global vem trazendo, mesmo para economias dos países mais desenvolvidos.

Vivemos uma tempestade perfeita: problemas nas cadeias globais de produção, ainda decorrentes dos efeitos da crise pandêmica da Covid-19; comprometimento da produção agrícola em face de eventos climáticos extremos, cada vez mais frequentes; e, não menos importante, os impactos da Guerra da Ucrânia sobre os preços de fertilizantes e alimentos.

As dimensões da crise vêm sendo objeto de avaliação por diversos olhares, cito aqui, como exemplo, o dossiê Fighting the Hunger War - Project Syndicate , publicado no último dia 09 de junho, reunindo artigos de especialista para discutir a crise global pela qual passamos.

Nos Estados Unidos, não propriamente a questão da fome, mas as discussões sobre o aumento de preços, em patamares que não se verificava há quarenta anos, levaram The New York Times, em sua edição de 14 de junho, a debater sobre as razões desta elevação, que vem sendo identificada pelos Democratas, através do termo “greedflation”, em alusão a um suposto aumento das margens de lucro das grandes companhias neste momento de crise global.

No Brasil, o debate tem múltiplas e importantes evidências de gravidade. Em primeiro lugar, o II Vigisan, Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, publicado também em junho, com base em pesquisa domiciliar realizada entre novembro de 2021 e abril de 2022, nos mostra que em termos populacionais, já são 125,2 milhões de pessoas residentes em domicílios com insegurança alimentar (IA) e mais de 33 milhões em situação de fome (IA grave).

Depois, a perda de renda do trabalhador brasileiro pode ser aferida por uma comparação entre o salário-mínimo e o valor da cesta básica entre janeiro de 2019 e abril de 2022. Considerando 2019, o valor de uma cesta básica de 35 produtos importava dispêndio de 46,6% do salário-mínimo vigente à época. Agora, em abril, esta mesma cesta já alcança 62,6%, dos R$ 1.210,00, valor do mínimo em vigência.

Ou seja, houve um aumento de 16 p.p. da participação da cesta básica nos dispêndios de um trabalhador que percebe o salário básico de nossa economia. O que equivale dizer que o salário-mínimo deveria ser hoje de R$ 1.626,40 para manter a relação existente em janeiro de 2019.

Outra evidência das dificuldades porque vem passando a população brasileira está nos dados relativos à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD – Contínua) de 2021. A publicação do IBGE aponta que a renda média do brasileiro, R$ 1.353, foi a mais baixa desde que o levantamento começou a ser realizado em 2012. E, além disso, embora a queda tenha se verificado em todas as faixas de renda, entre os 5% mais pobres, esta redução foi maior e atingiu 48% em dez anos.

Em face das evidências, é essencial entender que soluções podem ser apontadas para equacionar esta realidade. E este é um debate complexo e em plena ebulição.

Por um lado, de parte de organismos e analistas internacionais há relativo consenso de que soluções globais relativas à regulação de estoques e cooperação entre países são centrais neste momento de crise, especialmente diante da constatação de que o conflito do Leste Europeu e crise climática continuarão a pressionar os estoques de alimentos no mundo.

No entanto, os obstáculos a essas políticas de cooperação internacional têm sido cada vez maiores, especialmente por conta das manifestações nacionalistas que hoje estão presentes em vários países, entre eles a Rússia, que joga papel central em relação ao mercado mundial de alimentos.

No caso do Brasil, algumas políticas centrais do ponto de vista da segurança alimentar, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que beneficia os agricultores familiares, e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que proporciona apoio nutricional às crianças e jovens em idade escolar, vêm passando por problemas graves de implementação. Além disto, também do ponto de vista da rede de proteção social há problemas a serem sanados, especialmente quanto ao redesenho e abrangência de programas como o Auxílio Brasil.

Assim, tanto do ponto de vista nacional, quanto internacional, fatores políticos, econômicos, ambientais e de governança global operam no sentido de tornar mais complexa a implementação de políticas de combate à insegurança alimentar e de redução da pobreza.

Para não terminar sem falarmos de esperança de que podemos mudar este jogo, cabe citar iniciativas que merecem nossa atenção.

Por um lado, através das Nações Unidas, nas discussões do Foods Summit System, realizado em setembro de 2021, os 5 Action Tracks compilaram ideias para assegurar inovação e mudança nos sistemas de produção, distribuição e consumo de alimentos.

Por outro, o Abdul Latif Jameel Poverty Action Lab (J-PAL), do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), vem trabalhando através de uma rede de 262 pesquisadores, de 91 universidades ao redor do mundo, produzindo evidências sólidas sobre o que funciona em termos de políticas de redução da pobreza.

Apesar dos tempos difíceis, há esforços, evidências e propósito para reverter o atual estado de coisas, que afeta bilhões de indivíduos em nosso planeta.

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Neste ano de 2022, as manchetes dos principais veículos de comunicação, no Brasil e no mundo, destacam a insegurança alimentar como realidade de um número crescente de indivíduos, especialmente no Brasil, onde houve aumento grave do número de pessoas que estão passando pela situação de fome.

Mais do que nunca, a insegurança alimentar e a fome são problemas mundiais amplificados pelos efeitos que a escalada inflacionária global vem trazendo, mesmo para economias dos países mais desenvolvidos.

Vivemos uma tempestade perfeita: problemas nas cadeias globais de produção, ainda decorrentes dos efeitos da crise pandêmica da Covid-19; comprometimento da produção agrícola em face de eventos climáticos extremos, cada vez mais frequentes; e, não menos importante, os impactos da Guerra da Ucrânia sobre os preços de fertilizantes e alimentos.

As dimensões da crise vêm sendo objeto de avaliação por diversos olhares, cito aqui, como exemplo, o dossiê Fighting the Hunger War - Project Syndicate , publicado no último dia 09 de junho, reunindo artigos de especialista para discutir a crise global pela qual passamos.

Nos Estados Unidos, não propriamente a questão da fome, mas as discussões sobre o aumento de preços, em patamares que não se verificava há quarenta anos, levaram The New York Times, em sua edição de 14 de junho, a debater sobre as razões desta elevação, que vem sendo identificada pelos Democratas, através do termo “greedflation”, em alusão a um suposto aumento das margens de lucro das grandes companhias neste momento de crise global.

No Brasil, o debate tem múltiplas e importantes evidências de gravidade. Em primeiro lugar, o II Vigisan, Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, publicado também em junho, com base em pesquisa domiciliar realizada entre novembro de 2021 e abril de 2022, nos mostra que em termos populacionais, já são 125,2 milhões de pessoas residentes em domicílios com insegurança alimentar (IA) e mais de 33 milhões em situação de fome (IA grave).

Depois, a perda de renda do trabalhador brasileiro pode ser aferida por uma comparação entre o salário-mínimo e o valor da cesta básica entre janeiro de 2019 e abril de 2022. Considerando 2019, o valor de uma cesta básica de 35 produtos importava dispêndio de 46,6% do salário-mínimo vigente à época. Agora, em abril, esta mesma cesta já alcança 62,6%, dos R$ 1.210,00, valor do mínimo em vigência.

Ou seja, houve um aumento de 16 p.p. da participação da cesta básica nos dispêndios de um trabalhador que percebe o salário básico de nossa economia. O que equivale dizer que o salário-mínimo deveria ser hoje de R$ 1.626,40 para manter a relação existente em janeiro de 2019.

Outra evidência das dificuldades porque vem passando a população brasileira está nos dados relativos à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD – Contínua) de 2021. A publicação do IBGE aponta que a renda média do brasileiro, R$ 1.353, foi a mais baixa desde que o levantamento começou a ser realizado em 2012. E, além disso, embora a queda tenha se verificado em todas as faixas de renda, entre os 5% mais pobres, esta redução foi maior e atingiu 48% em dez anos.

Em face das evidências, é essencial entender que soluções podem ser apontadas para equacionar esta realidade. E este é um debate complexo e em plena ebulição.

Por um lado, de parte de organismos e analistas internacionais há relativo consenso de que soluções globais relativas à regulação de estoques e cooperação entre países são centrais neste momento de crise, especialmente diante da constatação de que o conflito do Leste Europeu e crise climática continuarão a pressionar os estoques de alimentos no mundo.

No entanto, os obstáculos a essas políticas de cooperação internacional têm sido cada vez maiores, especialmente por conta das manifestações nacionalistas que hoje estão presentes em vários países, entre eles a Rússia, que joga papel central em relação ao mercado mundial de alimentos.

No caso do Brasil, algumas políticas centrais do ponto de vista da segurança alimentar, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que beneficia os agricultores familiares, e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que proporciona apoio nutricional às crianças e jovens em idade escolar, vêm passando por problemas graves de implementação. Além disto, também do ponto de vista da rede de proteção social há problemas a serem sanados, especialmente quanto ao redesenho e abrangência de programas como o Auxílio Brasil.

Assim, tanto do ponto de vista nacional, quanto internacional, fatores políticos, econômicos, ambientais e de governança global operam no sentido de tornar mais complexa a implementação de políticas de combate à insegurança alimentar e de redução da pobreza.

Para não terminar sem falarmos de esperança de que podemos mudar este jogo, cabe citar iniciativas que merecem nossa atenção.

Por um lado, através das Nações Unidas, nas discussões do Foods Summit System, realizado em setembro de 2021, os 5 Action Tracks compilaram ideias para assegurar inovação e mudança nos sistemas de produção, distribuição e consumo de alimentos.

Por outro, o Abdul Latif Jameel Poverty Action Lab (J-PAL), do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), vem trabalhando através de uma rede de 262 pesquisadores, de 91 universidades ao redor do mundo, produzindo evidências sólidas sobre o que funciona em termos de políticas de redução da pobreza.

Apesar dos tempos difíceis, há esforços, evidências e propósito para reverter o atual estado de coisas, que afeta bilhões de indivíduos em nosso planeta.

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