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Promessas irrealizáveis não significam política

O presidente Trump exigiu no começo deste mês que o Congresso se mexa depressa para autorizar seu plano de reforma tributária. Mas até agora ele não ofereceu, efetivamente, um projeto nesse sentido. Não só não existe tal proposta legislativa detalhada como o governo Trump sequer se decidiu sobre os contornos básicos do que quer. Enquanto […]

OBAMACARE: Trump se elegeu jurando acabar com o programa de saúde, mas não conseguiu cumprir a promessa /
DR

Da Redação

Publicado em 28 de setembro de 2017 às 12h29.

O presidente Trump exigiu no começo deste mês que o Congresso se mexa depressa para autorizar seu plano de reforma tributária. Mas até agora ele não ofereceu, efetivamente, um projeto nesse sentido. Não só não existe tal proposta legislativa detalhada como o governo Trump sequer se decidiu sobre os contornos básicos do que quer.

Enquanto isso, 17 democratas do Senado—mais de um terço dos representantes da convenção do partido—assinaram o documento do senador Bernie Sanders para ampliar o Medicare a fim de cobrir toda a população. Até aqui, entretanto, Sanders não revelou uma estimativa de quanto isso custaria ou um projeto específico detalhando como isso seria bancado.

Não quero sugerir que estes casos são comparáveis: o mix trumpiano característico de ignorância e fraudulência não tem equivalente entre os democratas. Ainda assim, as duas histórias levantam dúvidas sobre quanto a clareza política importa, se é que isso é quantificável, quando se trata da capacidade dos políticos de vencer eleições e, talvez mais importante, de governar.

Quanto às eleições: o fato de que Trump esteja na Casa Branca indica que os políticos podem se safar dizendo aos eleitores praticamente qualquer coisa que soe bem. Afinal, Trump prometeu cortar impostos, proteger a Previdência Social e o Medicare de cortes, propiciar cobertura de saúde para todos os americanos e quitar a dívida nacional, e não pagou preço algum pela inconsistência óbvia dessas promessas.

Vejam só, a matemática tem um conhecido viés liberal. E o comprometimento da mídia tradicional com uma cobertura “equilibrada” virtualmente assegura falsa equivalência o bastante para obscurecer até mesmo a fraude mais óbvia.

Por outro lado, o fracasso aviltante do Trumpcare mostra que a realidade às vezes importa.

É verdade, os republicanos por muito tempo não pagaram preço algum por mentir sobre o Obamacare; aquelas mentiras, efetivamente, ajudaram-nos a assumir o controle do Congresso. Mas quando eles também conseguiram o comando da Casa Branca, para que a perspectiva de revogar a Lei de Saúde Acessível se tornasse realidade, as mentiras os alcançaram.

Uma vez que o público entendeu que dezenas de milhões de americanos perderiam a cobertura com os planos republicanos, houve uma retaliação enorme; pode até dar aos democratas o controle da Casa Branca no ano que vem, apesar de todas as manipulações distritais e outras desvantagens estruturais que eles enfrentam.

A história da reforma tributária – na verdade, dado o provável contexto de qualquer proposta legislativa que possa enfim surgir e que possamos chamar de “reforma” tributária – está começando a parecer bastante semelhante. Durante a campanha, o Sr. Trump conseguia se safar com a pose de populista econômico enquanto propunha um plano fiscal que acrescentaria 6 trilhões de dólares ao déficit, com metade dos benefícios indo para o 1% mais rico da população. Esse tipo de história da carochinha pode não funcionar uma vez que uma proposta de verdade seja apresentada.

De fato, o próprio Trump parece estar experimentando uma dissonância cognitiva. “Os ricos não vão se beneficiar de jeito algum com esse plano”, afirmou ele recentemente. Do mesmo modo que as declarações de que o Trumpcare não faria ninguém ficar sem cobertura de saúde, essa afirmação levanta dúvidas sobre o que está se passando na cabeça do presidente: será ele desatento, mentiroso ou as duas coisas?

De qualquer modo, tais declarações vão tornar ainda mais difícil passar alguma coisa: a diferença entre o que ele garante e qualquer coisa que os republicanos no Congresso estejam dispostos a aprovar é tão grande que vira praticamente um convite ao ridículo e a outra insurreição popular.

Eu acrescentaria ainda que cortes de impostos para empresas e para os ricos têm pouco apoio popular. Mesmo muitos daqueles que se autodefinem como republicanos, em particular entre os eleitores da classe trabalhadora que apoiaram o Sr. Trump, respondem nas pesquisas que as empresas e os ricos pagam muito pouco, e não demais. O Sr. Trump parece imaginar que ele pode angariar apoio maciço do eleitorado para seus planos fiscais, mas é difícil entender de que maneira.

Mas será que a pressão por um sistema de saúde de pagante único está levando os democratas por um caminho parecido?

Ao contrário de praticamente qualquer coisa que Trump e Cia. estejam propondo, o Medicare para todos é uma boa ideia, em princípio. No entanto, fazê-la acontecer de fato provavelmente significaria encarar uma séria retaliação política. Por um lado, é algo que exigiria um aumento substancial dos impostos. Por outro, significaria dizer a muitos milhões de americanos que obtêm sua cobertura de saúde de seus empregadores, e que de modo geral estão satisfeitos com seu plano de saúde, que eles precisam abrir mão dele e aceitar algo diferente. Você pode dizer que o novo sistema é melhor, mas será que eles vão acreditar?

Tais preocupações podem não parecer muito evidentes neste momento: dado o controle republicano da Casa Branca, o pagante único vai ser no máximo um desejo para os próximos três anos ou mais. Mas e se o apoio vigoroso ao pagante único – ao contrário de um apoio relativamente flexível para a cobertura universal, seja lá como ela for colocada em prática – se transformar em uma prova de fogo? Nesse caso, os democratas podem eventualmente se ver encarando um desastre no estilo Trump, incapazes de implementar sua visão surreal ou de deixá-la para lá.

O ponto é que, enquanto promessas surreais podem não te afetar nas eleições, elas podem se tornar um grande problema quando você tenta governar. Ter uma visão do futuro é bom, mas ser realista quanto às dificuldades também é bom. Democratas, levem isso em consideração.

(Este artigo foi publicado originalmente no The New York Times do dia 15 de setembro de 2017.)

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O presidente Trump exigiu no começo deste mês que o Congresso se mexa depressa para autorizar seu plano de reforma tributária. Mas até agora ele não ofereceu, efetivamente, um projeto nesse sentido. Não só não existe tal proposta legislativa detalhada como o governo Trump sequer se decidiu sobre os contornos básicos do que quer.

Enquanto isso, 17 democratas do Senado—mais de um terço dos representantes da convenção do partido—assinaram o documento do senador Bernie Sanders para ampliar o Medicare a fim de cobrir toda a população. Até aqui, entretanto, Sanders não revelou uma estimativa de quanto isso custaria ou um projeto específico detalhando como isso seria bancado.

Não quero sugerir que estes casos são comparáveis: o mix trumpiano característico de ignorância e fraudulência não tem equivalente entre os democratas. Ainda assim, as duas histórias levantam dúvidas sobre quanto a clareza política importa, se é que isso é quantificável, quando se trata da capacidade dos políticos de vencer eleições e, talvez mais importante, de governar.

Quanto às eleições: o fato de que Trump esteja na Casa Branca indica que os políticos podem se safar dizendo aos eleitores praticamente qualquer coisa que soe bem. Afinal, Trump prometeu cortar impostos, proteger a Previdência Social e o Medicare de cortes, propiciar cobertura de saúde para todos os americanos e quitar a dívida nacional, e não pagou preço algum pela inconsistência óbvia dessas promessas.

Vejam só, a matemática tem um conhecido viés liberal. E o comprometimento da mídia tradicional com uma cobertura “equilibrada” virtualmente assegura falsa equivalência o bastante para obscurecer até mesmo a fraude mais óbvia.

Por outro lado, o fracasso aviltante do Trumpcare mostra que a realidade às vezes importa.

É verdade, os republicanos por muito tempo não pagaram preço algum por mentir sobre o Obamacare; aquelas mentiras, efetivamente, ajudaram-nos a assumir o controle do Congresso. Mas quando eles também conseguiram o comando da Casa Branca, para que a perspectiva de revogar a Lei de Saúde Acessível se tornasse realidade, as mentiras os alcançaram.

Uma vez que o público entendeu que dezenas de milhões de americanos perderiam a cobertura com os planos republicanos, houve uma retaliação enorme; pode até dar aos democratas o controle da Casa Branca no ano que vem, apesar de todas as manipulações distritais e outras desvantagens estruturais que eles enfrentam.

A história da reforma tributária – na verdade, dado o provável contexto de qualquer proposta legislativa que possa enfim surgir e que possamos chamar de “reforma” tributária – está começando a parecer bastante semelhante. Durante a campanha, o Sr. Trump conseguia se safar com a pose de populista econômico enquanto propunha um plano fiscal que acrescentaria 6 trilhões de dólares ao déficit, com metade dos benefícios indo para o 1% mais rico da população. Esse tipo de história da carochinha pode não funcionar uma vez que uma proposta de verdade seja apresentada.

De fato, o próprio Trump parece estar experimentando uma dissonância cognitiva. “Os ricos não vão se beneficiar de jeito algum com esse plano”, afirmou ele recentemente. Do mesmo modo que as declarações de que o Trumpcare não faria ninguém ficar sem cobertura de saúde, essa afirmação levanta dúvidas sobre o que está se passando na cabeça do presidente: será ele desatento, mentiroso ou as duas coisas?

De qualquer modo, tais declarações vão tornar ainda mais difícil passar alguma coisa: a diferença entre o que ele garante e qualquer coisa que os republicanos no Congresso estejam dispostos a aprovar é tão grande que vira praticamente um convite ao ridículo e a outra insurreição popular.

Eu acrescentaria ainda que cortes de impostos para empresas e para os ricos têm pouco apoio popular. Mesmo muitos daqueles que se autodefinem como republicanos, em particular entre os eleitores da classe trabalhadora que apoiaram o Sr. Trump, respondem nas pesquisas que as empresas e os ricos pagam muito pouco, e não demais. O Sr. Trump parece imaginar que ele pode angariar apoio maciço do eleitorado para seus planos fiscais, mas é difícil entender de que maneira.

Mas será que a pressão por um sistema de saúde de pagante único está levando os democratas por um caminho parecido?

Ao contrário de praticamente qualquer coisa que Trump e Cia. estejam propondo, o Medicare para todos é uma boa ideia, em princípio. No entanto, fazê-la acontecer de fato provavelmente significaria encarar uma séria retaliação política. Por um lado, é algo que exigiria um aumento substancial dos impostos. Por outro, significaria dizer a muitos milhões de americanos que obtêm sua cobertura de saúde de seus empregadores, e que de modo geral estão satisfeitos com seu plano de saúde, que eles precisam abrir mão dele e aceitar algo diferente. Você pode dizer que o novo sistema é melhor, mas será que eles vão acreditar?

Tais preocupações podem não parecer muito evidentes neste momento: dado o controle republicano da Casa Branca, o pagante único vai ser no máximo um desejo para os próximos três anos ou mais. Mas e se o apoio vigoroso ao pagante único – ao contrário de um apoio relativamente flexível para a cobertura universal, seja lá como ela for colocada em prática – se transformar em uma prova de fogo? Nesse caso, os democratas podem eventualmente se ver encarando um desastre no estilo Trump, incapazes de implementar sua visão surreal ou de deixá-la para lá.

O ponto é que, enquanto promessas surreais podem não te afetar nas eleições, elas podem se tornar um grande problema quando você tenta governar. Ter uma visão do futuro é bom, mas ser realista quanto às dificuldades também é bom. Democratas, levem isso em consideração.

(Este artigo foi publicado originalmente no The New York Times do dia 15 de setembro de 2017.)

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