Donald Trump é o rei Luís XIV da América
Trump tem um desprezo evidente pelo estado de direito e, do mesmo modo que Luís, não vê diferença entre lealdade à nação e lealdade a si mesmo
Da Redação
Publicado em 30 de janeiro de 2018 às 12h41.
“L’état, c’est moi,” declarou Luís XIV: O Estado sou eu. Luís era um monarca absoluto, cuja palavra era a lei, e servir à França significava ser pessoalmente leal ao próprio Luís.
Havia vantagens óbvias em tal sistema: não existia ambiguidade sobre onde repousava a autoridade, nenhum tempo era perdido em debates legislativos, necessidade alguma havia de costurar coalizões para fazer as coisas. E no entanto, a França de Luís, então o estado mais poderoso da Europa, foi combatida até o fim pela Inglaterra e pela Holanda – um dos países uma monarquia constitucional (depois da Revolução Gloriosa de 1688), o outro uma república, com uma população combinada só um pouco parecida em tamanho.
Além disso, nas guerras anglo-francesas que se seguiram, a França em linhas gerais levou a pior, ao mesmo tempo em que mergulhava cada vez mais fundo em uma crise fiscal, uma crise que eventualmente ajudou a precipitar a Revolução Francesa.
Por que uma monarquia absolutista era mais fraca, na prática, que as repúblicas conflituosas? Um motivo foi que a própria ausência de limites sobre o soberano minou a credibilidade francesa; não importava o que o rei pudesse prometer, ele sempre podia mudar de ideia. Não por acaso, a França repetidas vezes deu calote na dívida dela, enquanto na Inglaterra pós-1688, o rei inglês, efetivamente refreado pelo Parlamento, nunca o fez. Como resultado, a Inglaterra foi muito mais bem-sucedida em seus empréstimos em tempos de guerra, além de pagar taxas de juros muito menores.
O que nos traz, como tudo o mais hoje em dia, a Donald Trump – um homem que tem um desprezo evidente pelo estado de direito e que, do mesmo modo que Luís, não vê diferença entre lealdade à nação e lealdade a si mesmo. A grande diferença é que Luís ao menos parecia tentar entender os problemas.
Na noite da sexta-feira 20, algo inédito aconteceu: O governo dos Estados Unidos fechou temporariamente, embora o mesmo partido controle tanto o Congresso quanto a Casa Branca. Por quê? Porque, quando se trata do Sr. Trump, um acordo não é um acordo; são só algumas palavras que ele se sente à vontade para ignorar alguns dias depois.
Há três semanas, o Sr. Trump declarou que, se o Congresso aparecesse com um plano para proteger os “Dreamers” – imigrantes sem documentação regular que foram trazidos para cá quando eram crianças – ao mesmo tempo em que aprimorasse a segurança nas fronteiras, ele o assinaria. Dois dias depois, um grupo bipartidário de senadores trouxe a ele um plano que fazia exatamente isso, e ele o rejeitou, reclamando do número de imigrantes de “países de merda”.
Na sexta-feira, Chuck Schumer, o líder democrata no Senado, parecia ter fechado no mínimo um acordo de curto prazo com o Sr. Trump, apenas para vê-lo recuar algumas poucas horas depois. Trabalhar com o Sr. Trump é “como negociar com gelatina”, disse um espumante Sr. Schumer.
Finalmente, na segunda-feira, os democratas concordaram com uma extensão de três semanas do financiamento em troca de uma promessa de Mitch McConnell, líder da maioria no Senado, sobre uma votação de uma legislação imigratória (nós não ouvimos nada do Sr. Trump). Se essa votação não acontecer, nós estaremos de volta à estaca zero no dia 8 de fevereiro. Alguém quer fazer uma aposta?
Basicamente, então, o governo do maior país do mundo está se arrastando de crise em crise porque não dá para confiar que seu líder vá honrar um acordo. Mas o que nós esperávamos? A carreira empresarial inteira do Sr. Trump tem sido uma série de traições, planos de negócios fracassados nos quais ele pessoalmente obteve lucro enquanto outros, fossem eles alunos da Universidade Trump, fornecedores ou credores, acabaram com cara de bobos. E ele não cresceu um milímetro no gabinete, a menos que você esteja contando aquele misterioso centímetro a mais de altura.
Há duas coisas que nós precisamos entender sobre a completa falta de confiabilidade do Sr. Trump. Em primeiro lugar, ela tem ramificações que vão muito além do fechamento recente do governo. Segundo, ela é possibilitada, ou no mínimo piorada, por seus estimuladores no Congresso.
Pense, por exemplo, sobre as consequências internacionais de um presidente americano em cuja palavra não se pode acreditar. Com quem nós podemos contar para ser um aliado confiável, quando nenhum país sabe se a América irá cumprir o que diz caso ele precise de ajuda?
Até aqui, pelo menos, os mercados financeiros continuam a considerar o governo dos EUA como digno de confiança, ainda que durante a campanha de 2016 o Sr. Trump tenha falado abertamente sobre forçar os credores do país, como se fossem cobradores de algumas de suas empresas, a aceitar menos do que lhes era devido. Mas será que este governo tem algum estoque de credibilidade financeira caso algo dê errado? Provavelmente não.
Em outras palavras, a falta de confiança no Sr. Trump é um grande problema, muito além da substância de suas políticas. Mas aqui está a coisa engraçada: Embora os instintos dele sejam claramente autoritários, a Constituição não o coloca acima da lei. O Congresso tem o poder de limitar suas ações, de forçá-lo a honrar suas promessas. Sua habilidade de continuar a trair aqueles que confiam nele depende inteiramente da disposição dos republicanos no Congresso em concordar com isso.
Por exemplo, qualquer par de senadores republicanos que hoje esteja se coçando de preocupação com a traição dos Sonhadores poderia ter forçado uma ação se recusando a votar no corte de impostos de Trump. Eles não o fizeram. Inércia semelhante explica por que o Sr. Trump foi capaz de violar todas as normas anteriores que proíbem tirar vantagem de seu cargo para ganho pessoal, e muito mais.
O resultado é que promessas feitas pelo governo dos EUA são hoje tão inúteis quanto aquelas de qualquer ditador de republiqueta. Nós ainda não sabemos quão caro é o preço que vamos pagar por esta perda de credibilidade, mas provavelmente não será pouco.
(Este artigo foi publicado originalmente no The New York Times no dia 23 de janeiro de 2018.)
“L’état, c’est moi,” declarou Luís XIV: O Estado sou eu. Luís era um monarca absoluto, cuja palavra era a lei, e servir à França significava ser pessoalmente leal ao próprio Luís.
Havia vantagens óbvias em tal sistema: não existia ambiguidade sobre onde repousava a autoridade, nenhum tempo era perdido em debates legislativos, necessidade alguma havia de costurar coalizões para fazer as coisas. E no entanto, a França de Luís, então o estado mais poderoso da Europa, foi combatida até o fim pela Inglaterra e pela Holanda – um dos países uma monarquia constitucional (depois da Revolução Gloriosa de 1688), o outro uma república, com uma população combinada só um pouco parecida em tamanho.
Além disso, nas guerras anglo-francesas que se seguiram, a França em linhas gerais levou a pior, ao mesmo tempo em que mergulhava cada vez mais fundo em uma crise fiscal, uma crise que eventualmente ajudou a precipitar a Revolução Francesa.
Por que uma monarquia absolutista era mais fraca, na prática, que as repúblicas conflituosas? Um motivo foi que a própria ausência de limites sobre o soberano minou a credibilidade francesa; não importava o que o rei pudesse prometer, ele sempre podia mudar de ideia. Não por acaso, a França repetidas vezes deu calote na dívida dela, enquanto na Inglaterra pós-1688, o rei inglês, efetivamente refreado pelo Parlamento, nunca o fez. Como resultado, a Inglaterra foi muito mais bem-sucedida em seus empréstimos em tempos de guerra, além de pagar taxas de juros muito menores.
O que nos traz, como tudo o mais hoje em dia, a Donald Trump – um homem que tem um desprezo evidente pelo estado de direito e que, do mesmo modo que Luís, não vê diferença entre lealdade à nação e lealdade a si mesmo. A grande diferença é que Luís ao menos parecia tentar entender os problemas.
Na noite da sexta-feira 20, algo inédito aconteceu: O governo dos Estados Unidos fechou temporariamente, embora o mesmo partido controle tanto o Congresso quanto a Casa Branca. Por quê? Porque, quando se trata do Sr. Trump, um acordo não é um acordo; são só algumas palavras que ele se sente à vontade para ignorar alguns dias depois.
Há três semanas, o Sr. Trump declarou que, se o Congresso aparecesse com um plano para proteger os “Dreamers” – imigrantes sem documentação regular que foram trazidos para cá quando eram crianças – ao mesmo tempo em que aprimorasse a segurança nas fronteiras, ele o assinaria. Dois dias depois, um grupo bipartidário de senadores trouxe a ele um plano que fazia exatamente isso, e ele o rejeitou, reclamando do número de imigrantes de “países de merda”.
Na sexta-feira, Chuck Schumer, o líder democrata no Senado, parecia ter fechado no mínimo um acordo de curto prazo com o Sr. Trump, apenas para vê-lo recuar algumas poucas horas depois. Trabalhar com o Sr. Trump é “como negociar com gelatina”, disse um espumante Sr. Schumer.
Finalmente, na segunda-feira, os democratas concordaram com uma extensão de três semanas do financiamento em troca de uma promessa de Mitch McConnell, líder da maioria no Senado, sobre uma votação de uma legislação imigratória (nós não ouvimos nada do Sr. Trump). Se essa votação não acontecer, nós estaremos de volta à estaca zero no dia 8 de fevereiro. Alguém quer fazer uma aposta?
Basicamente, então, o governo do maior país do mundo está se arrastando de crise em crise porque não dá para confiar que seu líder vá honrar um acordo. Mas o que nós esperávamos? A carreira empresarial inteira do Sr. Trump tem sido uma série de traições, planos de negócios fracassados nos quais ele pessoalmente obteve lucro enquanto outros, fossem eles alunos da Universidade Trump, fornecedores ou credores, acabaram com cara de bobos. E ele não cresceu um milímetro no gabinete, a menos que você esteja contando aquele misterioso centímetro a mais de altura.
Há duas coisas que nós precisamos entender sobre a completa falta de confiabilidade do Sr. Trump. Em primeiro lugar, ela tem ramificações que vão muito além do fechamento recente do governo. Segundo, ela é possibilitada, ou no mínimo piorada, por seus estimuladores no Congresso.
Pense, por exemplo, sobre as consequências internacionais de um presidente americano em cuja palavra não se pode acreditar. Com quem nós podemos contar para ser um aliado confiável, quando nenhum país sabe se a América irá cumprir o que diz caso ele precise de ajuda?
Até aqui, pelo menos, os mercados financeiros continuam a considerar o governo dos EUA como digno de confiança, ainda que durante a campanha de 2016 o Sr. Trump tenha falado abertamente sobre forçar os credores do país, como se fossem cobradores de algumas de suas empresas, a aceitar menos do que lhes era devido. Mas será que este governo tem algum estoque de credibilidade financeira caso algo dê errado? Provavelmente não.
Em outras palavras, a falta de confiança no Sr. Trump é um grande problema, muito além da substância de suas políticas. Mas aqui está a coisa engraçada: Embora os instintos dele sejam claramente autoritários, a Constituição não o coloca acima da lei. O Congresso tem o poder de limitar suas ações, de forçá-lo a honrar suas promessas. Sua habilidade de continuar a trair aqueles que confiam nele depende inteiramente da disposição dos republicanos no Congresso em concordar com isso.
Por exemplo, qualquer par de senadores republicanos que hoje esteja se coçando de preocupação com a traição dos Sonhadores poderia ter forçado uma ação se recusando a votar no corte de impostos de Trump. Eles não o fizeram. Inércia semelhante explica por que o Sr. Trump foi capaz de violar todas as normas anteriores que proíbem tirar vantagem de seu cargo para ganho pessoal, e muito mais.
O resultado é que promessas feitas pelo governo dos EUA são hoje tão inúteis quanto aquelas de qualquer ditador de republiqueta. Nós ainda não sabemos quão caro é o preço que vamos pagar por esta perda de credibilidade, mas provavelmente não será pouco.
(Este artigo foi publicado originalmente no The New York Times no dia 23 de janeiro de 2018.)