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Para que serve o Nobel de Literatura?

Joel Pinheiro da Fonseca Perdemos algo com o Nobel do Bob Dylan. E isso não é de forma alguma demérito dele. É que a regra do jogo mudou. Antes, sabíamos muito bem a quem o prêmio se dirigia: escritores – romancistas, poetas, dramaturgos. A partir de agora, o pool de candidatos se expandiu. Depois de […]

BOB DYLAN: ao dar prêmio para o cantor, comitê do Nobel abriu mão de ser o reconhecimento dado a uma obra que leva a palavra escrita ao seu limite / H. Thompson/ Evening Standard/Hulton Archive/ Getty Images
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Da Redação

Publicado em 15 de outubro de 2016 às 08h49.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h09.

Joel Pinheiro da Fonseca

Perdemos algo com o Nobel do Bob Dylan. E isso não é de forma alguma demérito dele. É que a regra do jogo mudou. Antes, sabíamos muito bem a quem o prêmio se dirigia: escritores – romancistas, poetas, dramaturgos. A partir de agora, o pool de candidatos se expandiu. Depois de Dylan, todo músico importante entrou na disputa. Roqueiros e rappers, sua hora chegou.

No Brasil, nosso maior candidato para o prêmio era o Ferreira Gullar. Agora podemos incluir também Chico e Caetano – e não venham dizer que Dylan é um artífice da palavra superior ao Caetano. Até o passado muda de aspecto: então Cole Porter estava na disputa e a nunca soubemos?

Óbvio que não; a disputa é que mudou. O comitê fez uma escolha consciente por ser mais relevante e por premiar alguém que teve um papel de destaque nos desdobramentos culturais populares das últimas décadas. Ao fazê-lo, abriu mão de ser o reconhecimento dado a uma obra que leva a palavra escrita enquanto tal ao limite de sua expressividade. A esse respeito, basta ler as letras de Dylan para perceber: por melhor que sejam, não se sustentam como poemas (já algumas do Caetano…).

Isso não é um demérito. A canção é uma obra de arte completa, que une música e letra. Não é nem melhor nem pior do que outras formas do fazer artístico. Enquanto letra, contudo, não chega aos lugares mais elevados que nossa cultura reservou para a palavra escrita. Ao dar o prêmio a um compositor, e compositor popular, o Nobel rompeu uma regra tácita.

O Nobel sempre foi, é verdade, algo meio midiático. Tampouco é dotado de um juízo infalível ou indiscutível. Pelo contrário, há listas de não-ganhadores muito superiores aos ganhadores. Ibsen, Nabokov, Joyce, Borges, Tolstói, Tchekov, Orwell, Fernando Pessoa, Machado de Assis, Guimarães Rosa: todos têm a glória de, vivos e consagrados já durante a vigência do Nobel, terem ficado de mãos vazias. Há, sem dúvida, um quê de popularesco em se premiar um escritor. Um ímpeto vulgar, da massa que faz questão de ranquear as obras do espírito como se fosse uma competição de levantamento de peso. Quem realmente está imerso na literatura não precisa do Nobel, e às vezes pode até esnobá-lo.

Mesmo assim, ele serve como um símbolo do mundo literário para o comum dos mortais. É uma ponte entre os homens comuns (eu estou nesse time) e a fina flor da literatura, por vezes obscura. Um farol para o mundo de difícil acesso da leitura, que leva o homem médio a almejar algo colocado como superior a ele.

Ou levava. Agora o prêmio desceu ao nosso nível. A própria atividade de leitura, que é sim difícil – hoje mais do que nunca – não é mais pré-requisito. Encarar o romance em suas centenas de páginas, ou ainda aquele objeto quase esquecido, o livro de poesia, e, nesse corpo-a-corpo com o texto puro e com a sonoridade das próprias palavras, abrir portas na própria alma, é um ritual em desuso, que o Nobel preservava como aspiração de todo mundo que desejasse ser bem formado. Contra uma cultura cada vez mais superficial e apegada ao visual e ao sonoro, resistia bravamente na defesa da leitura.

É claro que o valor artístico não se mede pelo esforço necessário para chegar até eles. Contudo, dado que o refinamento do juízo requer cultivo, prática, experiência, e que essas coisas custam esforço, os dois tendem a caminhar juntos. Com as devidas exceções, o fácil dificilmente nos leva ao tipo de cultivo interior que sofistica o olhar para si e para o mundo. Ao premiar a música pop, o comitê propõe o movimento contrário: não são as pessoas comuns que devem se dirigir até a morada da “grande arte”, melhorando sua própria faculdade de juízo. Elas, ao contrário, definem e determinam essa arte, que deve se pautar pelo gosto espontâneo da massa; quando não o faz, é irrelevante, uma acusação gravíssima. Sendo assim, em breve, prevejo que quadrinhos e videogames também entrarão no jogo.

Os critérios nos quais o prêmio se baseava antes eram uma construção histórica e relativa. Não há nenhuma lei do universo que determina que um romance é melhor ou mais nobre do que uma canção pop. E, entre os romances, que alguns sejam mais baixos e outros mais dignos de consideração. Por trás de todo e qualquer juízo de melhor e pior, temos preferências humanas arbitrárias (julgar, por exemplo, que um certo ritmo de verso soa melhor do que outro). Mas esse preconceito permitia e incentivava o cultivo de uma excelência e de uma seriedade que, sem ele, são perdidas. Ao apelar para o gosto espontâneo do grande público, o comitê traz a aspiração para um nível muito próximo daquele que seu público já ocupa.

Mais uma instância da cultura foi democratizada. A igualdade venceu em mais uma esfera. Ao invés da praxe elitista, da escolha que segrega os homens em um pequeno grupo de iniciados e uma massa de ignorantes que gostaria de estar lá, o Nobel de 2016 disse, com todas as letras, que não há diferença: todo mundo que foi culturalmente influente merece o prêmio. Mas se não for para representar, para o grande público, o ideal de elevação literária, para que serve o Nobel de Literatura? Correndo atrás da relevância, ele arrisca perdê-la.

Não tem por que reclamar; barreiras foram demolidas e é impossível reconstruí-las; a água já invadiu a planície. Retroceder para os limites anteriores seria pura afetação reacionária. Nesse sentido, o que vemos hoje talvez fosse inevitável, resultado de um processo cultural que só nos cabe viver. Posso adorar Bob Dylan (muito mais, aliás, do que tantos escritores dos quais nunca ouvi falar e nunca lerei) e, mesmo assim, notar com algum pesar o significado de sua vitória.

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Joel Pinheiro da Fonseca

Perdemos algo com o Nobel do Bob Dylan. E isso não é de forma alguma demérito dele. É que a regra do jogo mudou. Antes, sabíamos muito bem a quem o prêmio se dirigia: escritores – romancistas, poetas, dramaturgos. A partir de agora, o pool de candidatos se expandiu. Depois de Dylan, todo músico importante entrou na disputa. Roqueiros e rappers, sua hora chegou.

No Brasil, nosso maior candidato para o prêmio era o Ferreira Gullar. Agora podemos incluir também Chico e Caetano – e não venham dizer que Dylan é um artífice da palavra superior ao Caetano. Até o passado muda de aspecto: então Cole Porter estava na disputa e a nunca soubemos?

Óbvio que não; a disputa é que mudou. O comitê fez uma escolha consciente por ser mais relevante e por premiar alguém que teve um papel de destaque nos desdobramentos culturais populares das últimas décadas. Ao fazê-lo, abriu mão de ser o reconhecimento dado a uma obra que leva a palavra escrita enquanto tal ao limite de sua expressividade. A esse respeito, basta ler as letras de Dylan para perceber: por melhor que sejam, não se sustentam como poemas (já algumas do Caetano…).

Isso não é um demérito. A canção é uma obra de arte completa, que une música e letra. Não é nem melhor nem pior do que outras formas do fazer artístico. Enquanto letra, contudo, não chega aos lugares mais elevados que nossa cultura reservou para a palavra escrita. Ao dar o prêmio a um compositor, e compositor popular, o Nobel rompeu uma regra tácita.

O Nobel sempre foi, é verdade, algo meio midiático. Tampouco é dotado de um juízo infalível ou indiscutível. Pelo contrário, há listas de não-ganhadores muito superiores aos ganhadores. Ibsen, Nabokov, Joyce, Borges, Tolstói, Tchekov, Orwell, Fernando Pessoa, Machado de Assis, Guimarães Rosa: todos têm a glória de, vivos e consagrados já durante a vigência do Nobel, terem ficado de mãos vazias. Há, sem dúvida, um quê de popularesco em se premiar um escritor. Um ímpeto vulgar, da massa que faz questão de ranquear as obras do espírito como se fosse uma competição de levantamento de peso. Quem realmente está imerso na literatura não precisa do Nobel, e às vezes pode até esnobá-lo.

Mesmo assim, ele serve como um símbolo do mundo literário para o comum dos mortais. É uma ponte entre os homens comuns (eu estou nesse time) e a fina flor da literatura, por vezes obscura. Um farol para o mundo de difícil acesso da leitura, que leva o homem médio a almejar algo colocado como superior a ele.

Ou levava. Agora o prêmio desceu ao nosso nível. A própria atividade de leitura, que é sim difícil – hoje mais do que nunca – não é mais pré-requisito. Encarar o romance em suas centenas de páginas, ou ainda aquele objeto quase esquecido, o livro de poesia, e, nesse corpo-a-corpo com o texto puro e com a sonoridade das próprias palavras, abrir portas na própria alma, é um ritual em desuso, que o Nobel preservava como aspiração de todo mundo que desejasse ser bem formado. Contra uma cultura cada vez mais superficial e apegada ao visual e ao sonoro, resistia bravamente na defesa da leitura.

É claro que o valor artístico não se mede pelo esforço necessário para chegar até eles. Contudo, dado que o refinamento do juízo requer cultivo, prática, experiência, e que essas coisas custam esforço, os dois tendem a caminhar juntos. Com as devidas exceções, o fácil dificilmente nos leva ao tipo de cultivo interior que sofistica o olhar para si e para o mundo. Ao premiar a música pop, o comitê propõe o movimento contrário: não são as pessoas comuns que devem se dirigir até a morada da “grande arte”, melhorando sua própria faculdade de juízo. Elas, ao contrário, definem e determinam essa arte, que deve se pautar pelo gosto espontâneo da massa; quando não o faz, é irrelevante, uma acusação gravíssima. Sendo assim, em breve, prevejo que quadrinhos e videogames também entrarão no jogo.

Os critérios nos quais o prêmio se baseava antes eram uma construção histórica e relativa. Não há nenhuma lei do universo que determina que um romance é melhor ou mais nobre do que uma canção pop. E, entre os romances, que alguns sejam mais baixos e outros mais dignos de consideração. Por trás de todo e qualquer juízo de melhor e pior, temos preferências humanas arbitrárias (julgar, por exemplo, que um certo ritmo de verso soa melhor do que outro). Mas esse preconceito permitia e incentivava o cultivo de uma excelência e de uma seriedade que, sem ele, são perdidas. Ao apelar para o gosto espontâneo do grande público, o comitê traz a aspiração para um nível muito próximo daquele que seu público já ocupa.

Mais uma instância da cultura foi democratizada. A igualdade venceu em mais uma esfera. Ao invés da praxe elitista, da escolha que segrega os homens em um pequeno grupo de iniciados e uma massa de ignorantes que gostaria de estar lá, o Nobel de 2016 disse, com todas as letras, que não há diferença: todo mundo que foi culturalmente influente merece o prêmio. Mas se não for para representar, para o grande público, o ideal de elevação literária, para que serve o Nobel de Literatura? Correndo atrás da relevância, ele arrisca perdê-la.

Não tem por que reclamar; barreiras foram demolidas e é impossível reconstruí-las; a água já invadiu a planície. Retroceder para os limites anteriores seria pura afetação reacionária. Nesse sentido, o que vemos hoje talvez fosse inevitável, resultado de um processo cultural que só nos cabe viver. Posso adorar Bob Dylan (muito mais, aliás, do que tantos escritores dos quais nunca ouvi falar e nunca lerei) e, mesmo assim, notar com algum pesar o significado de sua vitória.

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