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O problema filosófico da política brasileira

Joel Pinheiro da Fonseca Tento me manter no tema, na urgência conjuntural de cada dia, acompanhando os desdobramentos de mais um escândalo, mais uma crise política. No entanto, algo no meu lado filósofo me incomoda. Tenho a forte impressão de que, no leito de morte, não vou desejar ter investido mais tempo me atualizando sobre […]

O TIME TEMER: fazer o “Brasil trabalhar” é o mote do presidente / Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil
DR

Da Redação

Publicado em 26 de novembro de 2016 às 06h56.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h15.

Joel Pinheiro da Fonseca

Tento me manter no tema, na urgência conjuntural de cada dia, acompanhando os desdobramentos de mais um escândalo, mais uma crise política. No entanto, algo no meu lado filósofo me incomoda. Tenho a forte impressão de que, no leito de morte, não vou desejar ter investido mais tempo me atualizando sobre o apartamento do ex-ministro Geddel Vieira Lima e a suposta gravação do ex-ministro Marcelo Calero.

Os escândalos se sucedem e se substituem em nossa memória. Por trás da mutabilidade das circunstâncias, um olhar mais filosófico tenta captar formas gerais, processos causais que expliquem o observável e nos impeçam de ceder ao inevitável desespero de saber-se cidadão de um país em que o absurdo é inevitável.

É preciso dizer que a política brasileira não se encaixa muito bem nas principais teorias do Estado que a filosofia ocidental foi capaz de formular a partir do Iluminismo. Não tem nada a ver, por exemplo, com a vontade geral de Jean-Jacques Rousseau, para quem o Estado democrático refletia o desejo da sociedade. No Brasil, não há o menor risco de confundirmos Estado e sociedade. Antes, o Estado parece estar oposto à sociedade. Pelo lado bom, as formas políticas que vivem dessa confusão – fascismo e outros totalitarismos – são improváveis por aqui; nenhum brasileiro suportaria acreditar que o Estado é seu país.

Tampouco temos o Estado de um John Stuart Mill, que busca aumentar o espaço de liberdade individual. Nossos governantes infringem toda e qualquer liberdade dos cidadãos se isso for politicamente expediente. Não defendem, como queria John Locke, os direitos individuais para promover uma máxima liberdade civil. As liberdades do cidadão – que não pode consumir o que quer, que perde os frutos do seu trabalho para os impostos e para a criminalidade, que não pode criticar políticos e magistrados porque isso é “desacato”, que não pode empreender porque a regulamentação parece considerá-lo antes um suspeito do que um gerador de valor – são cotidianamente violadas por um sistema que quer – e a anistia ao caixa 2 prestes a ser votada não nos deixa esquecer – maximizar a liberdade, aí sim, de quem já está dentro dele.

De maneira geral, colocamos em xeque uma ideia básica vigente desde Platão e Aristóteles: a de que o Estado existe para desempenhar alguma função. Que ele tem certos objetivos – digamos, o bem-estar da população – que busca atingir, exceto se alguma degeneração (os dois gregos também as conheciam) se apodera dele. Nessa visão, o Estado é uma instituição que existe para servir a sociedade, e sua grande questão é como fazê-lo da melhor forma. A discussão legislativa e executiva, visando o bem comum ou uma sociedade mais feliz, é sua razão de ser.

Talvez algumas nações com séculos de repressão moral e cultural da natureza humana tenham sido bem-sucedidas em construir Estados que se comportam mais ou menos dessa maneira. No Brasil, vigora uma natureza mais primal e mais avessa aos idealismos da filosofia. Uma realidade na qual o “dever-ser” não existe; existe apenas o “é”.

O Brasil se adequa melhor ao lado B da filosofia política ocidental, às vezes chamado de realismo político. O lado que passa pelos inimigos de Sócrates e Platão, o lado que se observa no pessimismo de um Santo Agostinho sobre a sociedade humana, o lado que se vê em Maquiavel e Hobbes e também em nomes como Carl Schmitt e Leo Strauss.

Nessa visão, o Estado não existe por causa de algum imperativo moral ou finalidade desejável. Existe como uma consequência de um traço definidor da natureza humana: a busca do poder. Os homens querem poder – isto é, a capacidade de influenciar a ação de outros homens. E se saímos de uma situação de guerra civil, é porque aqueles mais bem-sucedidos na luta pelo poder conseguiram consolidar suas aspirações em uma organização única: o Estado.

O que explica as movimentações da política não são diferentes concepções do bem ou diferentes propostas para bem gerir o país. Isso é apenas fachada para o que realmente está acontecendo: a mobilização de diferentes grupos que lutam pela supremacia dentro daquela estrutura.

Como a maioria dos homens que estão fora do jogo real do poder (perdidos em algum jogo menor e imaginário, dentro da empresa, no grupo de discussão da internet, etc.) não aguentaria viver sabendo da dura verdade – se revoltariam e destruiriam o próprio sistema -, é necessário manter as aparências, pautar o próprio discurso pela cultura vigente e dar às próprias ações uma leitura abonadora. Se o discurso oficial é o cristianismo, somos apóstolos da ortodoxia e da caritas cristã; se é o socialismo marxista, lutamos pelo proletariado. Hoje em dia, os termos da vez são a luta contra a desigualdade, a sustentabilidade, os direitos iguais. Termos úteis para quem quer arregimentar o apoio ativo das massas de iludidos que acreditam que seus valores serão servidos pela organização que tem a supremacia bélica em um dado território.

O grande problema da política, especialmente grave no Brasil, é que as habilidades necessárias para ser bem-sucedido na luta pelo poder não têm rigorosamente nada a ver com as habilidades que seriam necessárias a uma pessoa que quisesse desempenhar as supostas funções do Estado: capacidade de gestão, conhecimento técnico, razoabilidade legislativa, etc. E não parece haver meio de cobrir essa lacuna. Não há esfera de imparcialidade (nem o Judiciário…) que escape à pressão da política.

Não estou fazendo uma defesa do anarquismo. Talvez Hobbes estivesse certo: sem o Leviatã, a vida de todos seria ainda pior. O apelo é mais singelo: se o dia a dia do noticiário ainda não foi o bastante pare te convencer, deixe que a filosofia faça o resto do trabalho: seja qual for sua visão de mundo, não cometa o erro de depositar suas esperanças na política.

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Joel Pinheiro da Fonseca

Tento me manter no tema, na urgência conjuntural de cada dia, acompanhando os desdobramentos de mais um escândalo, mais uma crise política. No entanto, algo no meu lado filósofo me incomoda. Tenho a forte impressão de que, no leito de morte, não vou desejar ter investido mais tempo me atualizando sobre o apartamento do ex-ministro Geddel Vieira Lima e a suposta gravação do ex-ministro Marcelo Calero.

Os escândalos se sucedem e se substituem em nossa memória. Por trás da mutabilidade das circunstâncias, um olhar mais filosófico tenta captar formas gerais, processos causais que expliquem o observável e nos impeçam de ceder ao inevitável desespero de saber-se cidadão de um país em que o absurdo é inevitável.

É preciso dizer que a política brasileira não se encaixa muito bem nas principais teorias do Estado que a filosofia ocidental foi capaz de formular a partir do Iluminismo. Não tem nada a ver, por exemplo, com a vontade geral de Jean-Jacques Rousseau, para quem o Estado democrático refletia o desejo da sociedade. No Brasil, não há o menor risco de confundirmos Estado e sociedade. Antes, o Estado parece estar oposto à sociedade. Pelo lado bom, as formas políticas que vivem dessa confusão – fascismo e outros totalitarismos – são improváveis por aqui; nenhum brasileiro suportaria acreditar que o Estado é seu país.

Tampouco temos o Estado de um John Stuart Mill, que busca aumentar o espaço de liberdade individual. Nossos governantes infringem toda e qualquer liberdade dos cidadãos se isso for politicamente expediente. Não defendem, como queria John Locke, os direitos individuais para promover uma máxima liberdade civil. As liberdades do cidadão – que não pode consumir o que quer, que perde os frutos do seu trabalho para os impostos e para a criminalidade, que não pode criticar políticos e magistrados porque isso é “desacato”, que não pode empreender porque a regulamentação parece considerá-lo antes um suspeito do que um gerador de valor – são cotidianamente violadas por um sistema que quer – e a anistia ao caixa 2 prestes a ser votada não nos deixa esquecer – maximizar a liberdade, aí sim, de quem já está dentro dele.

De maneira geral, colocamos em xeque uma ideia básica vigente desde Platão e Aristóteles: a de que o Estado existe para desempenhar alguma função. Que ele tem certos objetivos – digamos, o bem-estar da população – que busca atingir, exceto se alguma degeneração (os dois gregos também as conheciam) se apodera dele. Nessa visão, o Estado é uma instituição que existe para servir a sociedade, e sua grande questão é como fazê-lo da melhor forma. A discussão legislativa e executiva, visando o bem comum ou uma sociedade mais feliz, é sua razão de ser.

Talvez algumas nações com séculos de repressão moral e cultural da natureza humana tenham sido bem-sucedidas em construir Estados que se comportam mais ou menos dessa maneira. No Brasil, vigora uma natureza mais primal e mais avessa aos idealismos da filosofia. Uma realidade na qual o “dever-ser” não existe; existe apenas o “é”.

O Brasil se adequa melhor ao lado B da filosofia política ocidental, às vezes chamado de realismo político. O lado que passa pelos inimigos de Sócrates e Platão, o lado que se observa no pessimismo de um Santo Agostinho sobre a sociedade humana, o lado que se vê em Maquiavel e Hobbes e também em nomes como Carl Schmitt e Leo Strauss.

Nessa visão, o Estado não existe por causa de algum imperativo moral ou finalidade desejável. Existe como uma consequência de um traço definidor da natureza humana: a busca do poder. Os homens querem poder – isto é, a capacidade de influenciar a ação de outros homens. E se saímos de uma situação de guerra civil, é porque aqueles mais bem-sucedidos na luta pelo poder conseguiram consolidar suas aspirações em uma organização única: o Estado.

O que explica as movimentações da política não são diferentes concepções do bem ou diferentes propostas para bem gerir o país. Isso é apenas fachada para o que realmente está acontecendo: a mobilização de diferentes grupos que lutam pela supremacia dentro daquela estrutura.

Como a maioria dos homens que estão fora do jogo real do poder (perdidos em algum jogo menor e imaginário, dentro da empresa, no grupo de discussão da internet, etc.) não aguentaria viver sabendo da dura verdade – se revoltariam e destruiriam o próprio sistema -, é necessário manter as aparências, pautar o próprio discurso pela cultura vigente e dar às próprias ações uma leitura abonadora. Se o discurso oficial é o cristianismo, somos apóstolos da ortodoxia e da caritas cristã; se é o socialismo marxista, lutamos pelo proletariado. Hoje em dia, os termos da vez são a luta contra a desigualdade, a sustentabilidade, os direitos iguais. Termos úteis para quem quer arregimentar o apoio ativo das massas de iludidos que acreditam que seus valores serão servidos pela organização que tem a supremacia bélica em um dado território.

O grande problema da política, especialmente grave no Brasil, é que as habilidades necessárias para ser bem-sucedido na luta pelo poder não têm rigorosamente nada a ver com as habilidades que seriam necessárias a uma pessoa que quisesse desempenhar as supostas funções do Estado: capacidade de gestão, conhecimento técnico, razoabilidade legislativa, etc. E não parece haver meio de cobrir essa lacuna. Não há esfera de imparcialidade (nem o Judiciário…) que escape à pressão da política.

Não estou fazendo uma defesa do anarquismo. Talvez Hobbes estivesse certo: sem o Leviatã, a vida de todos seria ainda pior. O apelo é mais singelo: se o dia a dia do noticiário ainda não foi o bastante pare te convencer, deixe que a filosofia faça o resto do trabalho: seja qual for sua visão de mundo, não cometa o erro de depositar suas esperanças na política.

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