A internet é um grande cemitério de conteúdo
Precisamos de arqueólogos digitais. Pessoas que chafurdem os servidores dos grandes portais e recuperem textos importantes, em uma espécie de curadoria de conteúdos do passado
Bibiana Guaraldi
Publicado em 19 de fevereiro de 2021 às 12h18.
Quando os meios de comunicação estavam restritos ao papel e às ondas de difusão, o passado ficava no passado. Havia pouquíssimas opções de se revisitar algum conteúdo antigo. As únicas opções estavam em bibliotecas ou arquivos particulares. Com a internet, isso mudou. Os arquivos digitais tornaram imortal qualquer artigo despretensioso escrito da metade dos anos 1990 para cá.
Em compensação, entramos na era do cemitério de conteúdo digital. Hoje, os grandes portais estão armazenando toneladas de escritos que dificilmente serão lidos novamente. Um exemplo? A carta ao leitor que escrevi quando era diretor de redação da revista Época em 14 de novembro de 2005. Vivíamos os tempos do Mensalão e redigi o seguinte trecho sobre uma das sessões da Comissão Parlamentar de Inquérito que investigava o caso:
“Calados, pacientes e discretos, os nascidos em Minas Gerais gostam de gestos comedidos, voz baixa e assuntos amenos. Chamar a atenção, jamais. Fazem política aos cochichos, amarram acordos com habilidade impressionante e adoram o anonimato. Um exemplo máximo dessa estirpe é o falecido presidente Tancredo Neves. Infelizmente, já não se fazem mais mineiros como antigamente. Um exemplo disso é o ex-ministro e atual prefeito de Uberaba, Anderson Adauto. Desde o início da crise política, ele já tinha mais problemas que um delegado de paz no Iraque. Não bastasse estar envolvido num sem-número de confusões, o ex-ministro entrou numa fria maior ainda: na semana passada, ao depor na CPI do Mensalão, disse ter utilizado o expediente do caixa dois nas 11 campanhas políticas de que participou. ‘Nunca vi uma campanha se fechar da forma que é declarada no Tribunal Superior Eleitoral’, afirmou a uma plateia de parlamentares estupefatos”.
Adauto, hoje com 63 anos e filiado ao Republicanos, está aparentemente afastado da política. Mas sua carreira está registrada permanentemente nos servidores dos veículos de comunicação. Mas, alguém consulta esses arquivos? Talvez ninguém – nem o próprio Anderson Adauto.
“Quem lê tanta notícia?”, questionou Caetano Veloso em sua canção “Alegria, Alegria”. Essa música, escrita sob o ponto de vista de quem observa uma banca de revistas e capas com cardinales bonitas (referência à atriz Claudia Cardinale), foi gravada em uma época analógica, na qual conteúdos eram compartilhados através de um meio físico. Isso impedia a proliferação de arquivos.
Hoje, um reles celular dá acesso a de bilhões de páginas. Essa quantidade industrial, de um lado, nos encanta – pois é a democratização do conhecimento que se manifesta nas redes. De outro, a maioria esmagadora destas informações fica enterrada virtualmente nos servidores. Ninguém as lê e provavelmente nunca as lerá.
É o caso de apagá-las, como se fosse uma fogueira virtual de livros, igual à descrita no livro Fahrenheit 451, de Ray Bradbury? Isso pouparia algum dinheiro aos portais de informação, mas poderia inviabilizar pesquisas futuras. Isso não quer dizer, no entanto, que os administradores de sistema estão inertes em relação ao espaço que este conteúdo toma de seus equipamentos. Voltando à carta ao leitor que escrevi 16 anos atrás: o arquivo já não contém nenhuma imagem, apenas texto, o que economiza memória e reduz os custos de arquivamento.
Até quando poderemos nos dar ao luxo de manter toneladas de equipamentos disponíveis para conteúdo que quase todos consideram inútil? Aparentemente, isso pode durar para sempre. Diariamente, novas técnicas de compressão de arquivos e de armazenamento de dados surgem no mercado. Se hoje essas informações quase que pré-históricas ocupam muito da memória das máquinas, daqui a pouco vai ser comprimida a ponto de caber em um simples notebook – ou em um pendrive. Hoje, por exemplo, nossos computadores têm SSDs com memória elevada em um espaço de 3 centímetros quadrados. E estamos ainda no início desse processo de compressão.
Muito deste conteúdo hoje ignorado, porém, pode ser de grande utilidade para estudantes ou mesmo profissionais que hoje precisam se reciclar. O problema é que ninguém tem tempo de garimpar informações ao léu. No máximo, usamos o Google e perdemos a paciência quando, na terceira tentativa, não encontramos o que desejávamos.
Como resolver esse problema?
Precisamos de arqueólogos digitais. Pessoas que chafurdem os servidores dos grandes portais e recuperem textos importantes, em uma espécie de curadoria de conteúdos do passado. Com isso, teríamos acesso rápido a textos primorosos e poderíamos traçar paralelos entre as lições de outrora e os problemas atuais. Quando imaginamos que alguns portais têm 25 anos de arquivos nas costas, percebemos que há inúmeras pérolas enterradas nesses servidores que precisam chegar à luz do dia. Portanto, está mais que na hora de criarmos essa nova profissão – a dos Indiana Jones cibernéticos.
Quando os meios de comunicação estavam restritos ao papel e às ondas de difusão, o passado ficava no passado. Havia pouquíssimas opções de se revisitar algum conteúdo antigo. As únicas opções estavam em bibliotecas ou arquivos particulares. Com a internet, isso mudou. Os arquivos digitais tornaram imortal qualquer artigo despretensioso escrito da metade dos anos 1990 para cá.
Em compensação, entramos na era do cemitério de conteúdo digital. Hoje, os grandes portais estão armazenando toneladas de escritos que dificilmente serão lidos novamente. Um exemplo? A carta ao leitor que escrevi quando era diretor de redação da revista Época em 14 de novembro de 2005. Vivíamos os tempos do Mensalão e redigi o seguinte trecho sobre uma das sessões da Comissão Parlamentar de Inquérito que investigava o caso:
“Calados, pacientes e discretos, os nascidos em Minas Gerais gostam de gestos comedidos, voz baixa e assuntos amenos. Chamar a atenção, jamais. Fazem política aos cochichos, amarram acordos com habilidade impressionante e adoram o anonimato. Um exemplo máximo dessa estirpe é o falecido presidente Tancredo Neves. Infelizmente, já não se fazem mais mineiros como antigamente. Um exemplo disso é o ex-ministro e atual prefeito de Uberaba, Anderson Adauto. Desde o início da crise política, ele já tinha mais problemas que um delegado de paz no Iraque. Não bastasse estar envolvido num sem-número de confusões, o ex-ministro entrou numa fria maior ainda: na semana passada, ao depor na CPI do Mensalão, disse ter utilizado o expediente do caixa dois nas 11 campanhas políticas de que participou. ‘Nunca vi uma campanha se fechar da forma que é declarada no Tribunal Superior Eleitoral’, afirmou a uma plateia de parlamentares estupefatos”.
Adauto, hoje com 63 anos e filiado ao Republicanos, está aparentemente afastado da política. Mas sua carreira está registrada permanentemente nos servidores dos veículos de comunicação. Mas, alguém consulta esses arquivos? Talvez ninguém – nem o próprio Anderson Adauto.
“Quem lê tanta notícia?”, questionou Caetano Veloso em sua canção “Alegria, Alegria”. Essa música, escrita sob o ponto de vista de quem observa uma banca de revistas e capas com cardinales bonitas (referência à atriz Claudia Cardinale), foi gravada em uma época analógica, na qual conteúdos eram compartilhados através de um meio físico. Isso impedia a proliferação de arquivos.
Hoje, um reles celular dá acesso a de bilhões de páginas. Essa quantidade industrial, de um lado, nos encanta – pois é a democratização do conhecimento que se manifesta nas redes. De outro, a maioria esmagadora destas informações fica enterrada virtualmente nos servidores. Ninguém as lê e provavelmente nunca as lerá.
É o caso de apagá-las, como se fosse uma fogueira virtual de livros, igual à descrita no livro Fahrenheit 451, de Ray Bradbury? Isso pouparia algum dinheiro aos portais de informação, mas poderia inviabilizar pesquisas futuras. Isso não quer dizer, no entanto, que os administradores de sistema estão inertes em relação ao espaço que este conteúdo toma de seus equipamentos. Voltando à carta ao leitor que escrevi 16 anos atrás: o arquivo já não contém nenhuma imagem, apenas texto, o que economiza memória e reduz os custos de arquivamento.
Até quando poderemos nos dar ao luxo de manter toneladas de equipamentos disponíveis para conteúdo que quase todos consideram inútil? Aparentemente, isso pode durar para sempre. Diariamente, novas técnicas de compressão de arquivos e de armazenamento de dados surgem no mercado. Se hoje essas informações quase que pré-históricas ocupam muito da memória das máquinas, daqui a pouco vai ser comprimida a ponto de caber em um simples notebook – ou em um pendrive. Hoje, por exemplo, nossos computadores têm SSDs com memória elevada em um espaço de 3 centímetros quadrados. E estamos ainda no início desse processo de compressão.
Muito deste conteúdo hoje ignorado, porém, pode ser de grande utilidade para estudantes ou mesmo profissionais que hoje precisam se reciclar. O problema é que ninguém tem tempo de garimpar informações ao léu. No máximo, usamos o Google e perdemos a paciência quando, na terceira tentativa, não encontramos o que desejávamos.
Como resolver esse problema?
Precisamos de arqueólogos digitais. Pessoas que chafurdem os servidores dos grandes portais e recuperem textos importantes, em uma espécie de curadoria de conteúdos do passado. Com isso, teríamos acesso rápido a textos primorosos e poderíamos traçar paralelos entre as lições de outrora e os problemas atuais. Quando imaginamos que alguns portais têm 25 anos de arquivos nas costas, percebemos que há inúmeras pérolas enterradas nesses servidores que precisam chegar à luz do dia. Portanto, está mais que na hora de criarmos essa nova profissão – a dos Indiana Jones cibernéticos.