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Uma chance para o Rio

"Cariocas precisam dar uma chance para o Rio superar a estagnação que o persegue há mais de um século"

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institutomillenium

Publicado em 27 de fevereiro de 2018 às 08h59.

* Por Vítor Wilher

Como carioca apaixonado pela cidade onde vive, é muito difícil ver a situação atual do Rio de Janeiro. A degeneração fiscal do estado tem como consequência mais grave a sensação de insegurança nas ruas. Mas também se mostra no despreparo para enfrentar enchentes, atender enfermos nos hospitais e ensinar nossas crianças nas escolas. Serviços públicos essenciais para os quais todos nós pagamos elevados impostos. Diante da situação onde estamos, qual será a saída?

O Rio de Janeiro assume primazia no cenário nacional muito antes de se tornar capital da República. A importância geopolítica do Porto do Rio se torna central ainda no período do açúcar, servindo de entreposto comercial para a exportação desse produto. Amplia-se essa centralidade com a expansão promovida pelo ouro e posteriormente pelo café. Como se vê, mudar a capital de Salvador para o Rio é mera consequência do dinamismo econômico dessa última.

A chegada da Corte Portuguesa, nesse contexto, ao trazer uma burocracia estatal, consolida a posição estratégica do Rio de Janeiro. Ele assume não apenas a centralidade econômica da Colônia, mas a própria vida política e cultural de um país em construção. É no período de 1820 a 1870 que o Rio se vê como o centro da reinserção da economia brasileira no comércio mundial. O país se torna o maior produtor e exportador de café, sendo monopolista na oferta do produto – algo com poucos precedentes no mercado de commodities, dada a estrutura basicamente competitiva desse locus comercial.

Essa centralidade começa a ruir, contudo, muito antes de Brasília ser construída. A partir de 1870 há uma progressiva perda de importância relativa. E isso está em consonância com a mudança do café para melhores terras no Vale do Paraíba. Se o Rio era o coração financeiro do Brasil, o café era o sangue que corria nas veias da capital federal. Um não conseguiria sobreviver, portanto, sem o outro.

Carlos Lessa, grande especialista no tema, qualifica a relação entre um e outro: “Sem qualquer exagero, o café como atividade econômica central, nasceu literalmente no interior da cidade do Rio da Janeiro”. Não é de se espantar, portanto, que a crise de um inicia a crise do outro. Seria possível imaginar, entretanto, que o declínio do café no Estado fosse compensando por alguma ação empreendedora no setor industrial. Há, de fato, um crescimento industrial – sobretudo da indústria têxtil – no final do século XIX, mas isso é apenas marginal. O que de fato ocorre é que a redução da renda derivada do café acaba por também reduzir a produção industrial.

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A indústria brasileira, por suposto, é um subproduto da economia agroexportadora. Existe uma ligação quase umbilical entre um e outro setor, intermediado pelo capital agrário. Explica-se o fato de a produção industrial não ter se alavancado com a crise do café pela inexistência de escala suficiente. Nota-se o leitor que o Brasil ainda é nessa época uma economia escravista, com um consumo apenas marginal de produtos majoritariamente importados. Não é de se espantar que a implantação de trabalho assalariado na produção paulista do produto será ponto crucial para se construir, décadas depois, uma indústria nacional naquele local. Ao Rio resta observar, meio que abobadamente, o declínio de sua principal renda e a perda de importância em relação ao seu vizinho.

A crise do café no Estado deriva-se dos limites de expansão dessa cultura. Não havia à época técnicas de recuperação do solo compatíveis com a deterioração que esse produto o causa. Aliado à baixa produtividade do trabalho escravo é de se esperar que a economia do café estivesse por um passo. Não é o que acontece de imediato, dadas as atividades secundárias de intermediação financeira e comercial que o Rio continua mantendo, mesmo com a migração do café para territórios paulistas.

A industrialização brasileira pós-crise de 29 coincide-se com o esvaziamento econômico do Rio de Janeiro. Enquanto no período 1939-1980 a produção industrial nacional cresce 9,1% ao ano, o Rio cresce 6,9% e São Paulo assume a ponta com 9,8%. A olho nu pode-se dizer que são taxas elevadas para um Estado que perdeu sua principal fonte de renda. Mas o que se percebe é a perda de importância relativa para o Estado vizinho, algo que ficará bastante claro ao cabo do processo de substituição de importações.

São Paulo passa a ser o locus privilegiado da industrialização por possuir um estoque de capital acumulado no período imediatamente anterior. Possui dinamismo econômico, dada a diversificação de setores e atividades, possui economias de escala e ligações interindustriais. A ocupação do interior e a ampla rede ferroviária favorece a ampliação do mercado regional. A indústria paulista redefine as industriais regionais: São Paulo é o único estado capaz de expandir nacionalmente, dados os custos menores e os novos padrões de consumo e produção.

Enquanto São Paulo cria condições cumulativas para tornar-se líder do processo de industrialização brasileiro, o Rio parece se acomodar à condição de capital política e cultural do país. A indústria está em terras paulistas, mas o centro de decisão dos interesses da jovem República (ainda) permanece em solo fluminense. Isso parece ser aceitável para as lideranças do Estado. Não é de se espantar, portanto, que a transferência da capital para Brasília seja apenas a cereja do bolo da estagnação fluminense. Claro que não instantaneamente.

A crise do Rio é, portanto, secular. Não é a transferência da capital o fator principal desse esvaziamento. É todo um processo econômico, político e social que fez com que o estado chegasse aos dias atuais visivelmente arrasado do ponto de vista fiscal, com parcos serviços públicos sendo prestados e a prevalência de governos assistencialistas e corruptos. Se for verdade que do Rio se vê o Brasil, é igualmente fato que do Rio não se nota o próprio estado. A dificuldade com que o carioca tem de resolver seus próprios problemas, cobrando das autoridades uma mudança de paradigma é talvez um dos grandes exemplos de esquizofrenia coletiva.

Tudo isso dito, a superação do atual estado de coisas é complexa, mas possível. Primeiro, será necessário restaurar o Estado de Direito, com a recuperação de áreas dominadas pelo narcotráfico ou por milícias. E isso incluirá, sim, a participação das forças armadas, a mudança de legislação e o efetivo controle das fronteiras. A violência do Rio extrapola os limites que podem ser contidos pelas forças policiais locais. É um problema verdadeiramente nacional que deve envolver as mais altas patentes militares da República, em um esforço de guerra pela recuperação de territórios e o estabelecimento definitivo do império da lei.

O segundo ponto é a crise fiscal. Não deixa de ser incrível como alguns jornalistas econômicos e mesmo economistas ainda insistam que o problema fiscal do Rio é derivado da queda da receita do petróleo. Um dinheiro que qualquer gestor minimamente competente não usaria para pagar gasto corrente. O problema foi e continua sendo a expansão desenfreada das despesas. Entre 2009 e 2015, por exemplo, o gasto real com pessoal cresceu mais de 70%. O aumento da rigidez da despesa deverá ser enfrentado com um duro ajuste nos próximos anos, sem o qual a insolvência atual não será dissipada do cenário.

O terceiro ponto é enfrentar, de uma vez por todas, aquela estagnação secular. E isso passa necessariamente por reconhecer o Rio como um polo da economia criativa. Não apenas grandes eventos como o Rock in Rio, o Réveillon de Copacabana e o Carnaval, mas o estabelecimento de um calendário organizado para todo o ano. Não por iniciativa do estado, que deve cuidar daqueles pontos listados acima, mas de empreendedores. Ao estado, nesse ponto, cabe estabelecer uma força-tarefa com o objetivo de reduzir a burocracia para abrir empresas e melhorar o ambiente de negócios. Cabe também dar cabo de uma ampla agenda de renovação da infraestrutura, baseada, sobretudo no capital privado.

Nada disso, porém, será alcançado sem o devido engajamento da população carioca. É preciso que tenha servido de lição ter tido um governador e um presidente da Alerj presos. Os políticos que serão eleitos no final do ano precisarão ter clareza sobre os pontos levantados acima. Afinal, o que há em comum entre eles é o pragmatismo sobre como construir uma sociedade mais livre, justa e desenvolvida. Sem apelo a salvadores da pátria e suas corriqueiras soluções fáceis para problemas complexos. Algo distante do que temos visto ao longo das últimas décadas no estado. Oxalá, portanto, que os cariocas consigam dar uma chance para o Rio superar a estagnação que o persegue há mais de um século.

* Vítor Wilher é bacharel e mestre em economia pela Universidade Federal Fluminense, tendo se especializado na construção de modelos macroeconométricos e análise da conjuntura macroeconômica doméstica e internacional. Sua dissertação de mestrado foi na área de política monetária, titulada "Clareza da comunicação do Banco Central e expectativas de inflação: evidências para o Brasil", defendida perante banca composta pelos professores Gustavo H. B. Franco (PUC-RJ), Gabriel Montes Caldas (UFF), Carlos Enrique Guanziroli (UFF) e Luciano Vereda Oliveira (UFF). É o criador do blog Análise Macro, um dos melhores e mais ativos blogs econômicos brasileiros e sócio da MacroLab Consultoria, empresa especializada em data analysis, construção de cenários e previsões e fundador do extinto Grupo de Estudos sobre Conjuntura Econômica (GECE-UFF).

* Por Vítor Wilher

Como carioca apaixonado pela cidade onde vive, é muito difícil ver a situação atual do Rio de Janeiro. A degeneração fiscal do estado tem como consequência mais grave a sensação de insegurança nas ruas. Mas também se mostra no despreparo para enfrentar enchentes, atender enfermos nos hospitais e ensinar nossas crianças nas escolas. Serviços públicos essenciais para os quais todos nós pagamos elevados impostos. Diante da situação onde estamos, qual será a saída?

O Rio de Janeiro assume primazia no cenário nacional muito antes de se tornar capital da República. A importância geopolítica do Porto do Rio se torna central ainda no período do açúcar, servindo de entreposto comercial para a exportação desse produto. Amplia-se essa centralidade com a expansão promovida pelo ouro e posteriormente pelo café. Como se vê, mudar a capital de Salvador para o Rio é mera consequência do dinamismo econômico dessa última.

A chegada da Corte Portuguesa, nesse contexto, ao trazer uma burocracia estatal, consolida a posição estratégica do Rio de Janeiro. Ele assume não apenas a centralidade econômica da Colônia, mas a própria vida política e cultural de um país em construção. É no período de 1820 a 1870 que o Rio se vê como o centro da reinserção da economia brasileira no comércio mundial. O país se torna o maior produtor e exportador de café, sendo monopolista na oferta do produto – algo com poucos precedentes no mercado de commodities, dada a estrutura basicamente competitiva desse locus comercial.

Essa centralidade começa a ruir, contudo, muito antes de Brasília ser construída. A partir de 1870 há uma progressiva perda de importância relativa. E isso está em consonância com a mudança do café para melhores terras no Vale do Paraíba. Se o Rio era o coração financeiro do Brasil, o café era o sangue que corria nas veias da capital federal. Um não conseguiria sobreviver, portanto, sem o outro.

Carlos Lessa, grande especialista no tema, qualifica a relação entre um e outro: “Sem qualquer exagero, o café como atividade econômica central, nasceu literalmente no interior da cidade do Rio da Janeiro”. Não é de se espantar, portanto, que a crise de um inicia a crise do outro. Seria possível imaginar, entretanto, que o declínio do café no Estado fosse compensando por alguma ação empreendedora no setor industrial. Há, de fato, um crescimento industrial – sobretudo da indústria têxtil – no final do século XIX, mas isso é apenas marginal. O que de fato ocorre é que a redução da renda derivada do café acaba por também reduzir a produção industrial.

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A indústria brasileira, por suposto, é um subproduto da economia agroexportadora. Existe uma ligação quase umbilical entre um e outro setor, intermediado pelo capital agrário. Explica-se o fato de a produção industrial não ter se alavancado com a crise do café pela inexistência de escala suficiente. Nota-se o leitor que o Brasil ainda é nessa época uma economia escravista, com um consumo apenas marginal de produtos majoritariamente importados. Não é de se espantar que a implantação de trabalho assalariado na produção paulista do produto será ponto crucial para se construir, décadas depois, uma indústria nacional naquele local. Ao Rio resta observar, meio que abobadamente, o declínio de sua principal renda e a perda de importância em relação ao seu vizinho.

A crise do café no Estado deriva-se dos limites de expansão dessa cultura. Não havia à época técnicas de recuperação do solo compatíveis com a deterioração que esse produto o causa. Aliado à baixa produtividade do trabalho escravo é de se esperar que a economia do café estivesse por um passo. Não é o que acontece de imediato, dadas as atividades secundárias de intermediação financeira e comercial que o Rio continua mantendo, mesmo com a migração do café para territórios paulistas.

A industrialização brasileira pós-crise de 29 coincide-se com o esvaziamento econômico do Rio de Janeiro. Enquanto no período 1939-1980 a produção industrial nacional cresce 9,1% ao ano, o Rio cresce 6,9% e São Paulo assume a ponta com 9,8%. A olho nu pode-se dizer que são taxas elevadas para um Estado que perdeu sua principal fonte de renda. Mas o que se percebe é a perda de importância relativa para o Estado vizinho, algo que ficará bastante claro ao cabo do processo de substituição de importações.

São Paulo passa a ser o locus privilegiado da industrialização por possuir um estoque de capital acumulado no período imediatamente anterior. Possui dinamismo econômico, dada a diversificação de setores e atividades, possui economias de escala e ligações interindustriais. A ocupação do interior e a ampla rede ferroviária favorece a ampliação do mercado regional. A indústria paulista redefine as industriais regionais: São Paulo é o único estado capaz de expandir nacionalmente, dados os custos menores e os novos padrões de consumo e produção.

Enquanto São Paulo cria condições cumulativas para tornar-se líder do processo de industrialização brasileiro, o Rio parece se acomodar à condição de capital política e cultural do país. A indústria está em terras paulistas, mas o centro de decisão dos interesses da jovem República (ainda) permanece em solo fluminense. Isso parece ser aceitável para as lideranças do Estado. Não é de se espantar, portanto, que a transferência da capital para Brasília seja apenas a cereja do bolo da estagnação fluminense. Claro que não instantaneamente.

A crise do Rio é, portanto, secular. Não é a transferência da capital o fator principal desse esvaziamento. É todo um processo econômico, político e social que fez com que o estado chegasse aos dias atuais visivelmente arrasado do ponto de vista fiscal, com parcos serviços públicos sendo prestados e a prevalência de governos assistencialistas e corruptos. Se for verdade que do Rio se vê o Brasil, é igualmente fato que do Rio não se nota o próprio estado. A dificuldade com que o carioca tem de resolver seus próprios problemas, cobrando das autoridades uma mudança de paradigma é talvez um dos grandes exemplos de esquizofrenia coletiva.

Tudo isso dito, a superação do atual estado de coisas é complexa, mas possível. Primeiro, será necessário restaurar o Estado de Direito, com a recuperação de áreas dominadas pelo narcotráfico ou por milícias. E isso incluirá, sim, a participação das forças armadas, a mudança de legislação e o efetivo controle das fronteiras. A violência do Rio extrapola os limites que podem ser contidos pelas forças policiais locais. É um problema verdadeiramente nacional que deve envolver as mais altas patentes militares da República, em um esforço de guerra pela recuperação de territórios e o estabelecimento definitivo do império da lei.

O segundo ponto é a crise fiscal. Não deixa de ser incrível como alguns jornalistas econômicos e mesmo economistas ainda insistam que o problema fiscal do Rio é derivado da queda da receita do petróleo. Um dinheiro que qualquer gestor minimamente competente não usaria para pagar gasto corrente. O problema foi e continua sendo a expansão desenfreada das despesas. Entre 2009 e 2015, por exemplo, o gasto real com pessoal cresceu mais de 70%. O aumento da rigidez da despesa deverá ser enfrentado com um duro ajuste nos próximos anos, sem o qual a insolvência atual não será dissipada do cenário.

O terceiro ponto é enfrentar, de uma vez por todas, aquela estagnação secular. E isso passa necessariamente por reconhecer o Rio como um polo da economia criativa. Não apenas grandes eventos como o Rock in Rio, o Réveillon de Copacabana e o Carnaval, mas o estabelecimento de um calendário organizado para todo o ano. Não por iniciativa do estado, que deve cuidar daqueles pontos listados acima, mas de empreendedores. Ao estado, nesse ponto, cabe estabelecer uma força-tarefa com o objetivo de reduzir a burocracia para abrir empresas e melhorar o ambiente de negócios. Cabe também dar cabo de uma ampla agenda de renovação da infraestrutura, baseada, sobretudo no capital privado.

Nada disso, porém, será alcançado sem o devido engajamento da população carioca. É preciso que tenha servido de lição ter tido um governador e um presidente da Alerj presos. Os políticos que serão eleitos no final do ano precisarão ter clareza sobre os pontos levantados acima. Afinal, o que há em comum entre eles é o pragmatismo sobre como construir uma sociedade mais livre, justa e desenvolvida. Sem apelo a salvadores da pátria e suas corriqueiras soluções fáceis para problemas complexos. Algo distante do que temos visto ao longo das últimas décadas no estado. Oxalá, portanto, que os cariocas consigam dar uma chance para o Rio superar a estagnação que o persegue há mais de um século.

* Vítor Wilher é bacharel e mestre em economia pela Universidade Federal Fluminense, tendo se especializado na construção de modelos macroeconométricos e análise da conjuntura macroeconômica doméstica e internacional. Sua dissertação de mestrado foi na área de política monetária, titulada "Clareza da comunicação do Banco Central e expectativas de inflação: evidências para o Brasil", defendida perante banca composta pelos professores Gustavo H. B. Franco (PUC-RJ), Gabriel Montes Caldas (UFF), Carlos Enrique Guanziroli (UFF) e Luciano Vereda Oliveira (UFF). É o criador do blog Análise Macro, um dos melhores e mais ativos blogs econômicos brasileiros e sócio da MacroLab Consultoria, empresa especializada em data analysis, construção de cenários e previsões e fundador do extinto Grupo de Estudos sobre Conjuntura Econômica (GECE-UFF).

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