Superávit só em 2026 desafia credibilidade fiscal, alerta IFI
Instituto Millenium entrevista Alexandre Andrade
Instituto Millenium
Publicado em 25 de abril de 2024 às 13h21.
Última atualização em 25 de abril de 2024 às 17h01.
Alexandre Augusto Seijas de Andrade é economista com graduação e mestrado pela FEA-USP, tendo desempenhado funções como economista-sênior na Tendências Consultoria Integrada, economista na Votorantim Corretora, e economista-chefe na GO Associados. No ambiente legislativo, atuou como assessor no Senado Federal, e desde dezembro de 2018 é membro da Instituição Fiscal Independente (IFI), onde assumiu a direção em janeiro de 2024.
Esta entrevista ocorreu após a IFI reagir às propostas do governo federal de revisar as metas fiscais para os próximos anos. O governo propõe reduzir a meta de superávit primário de 1% para 0,25% do PIB em 2026 e zerar a previsão de superávit para 2025, flexibilizando assim o espaço fiscal para potencial aumento dos gastos públicos. Alexandre discute as implicações dessas alterações nas contas públicas, avaliando os riscos para a estabilidade econômica do país e as expectativas da IFI diante do atual cenário fiscal e econômico brasileiro.
Instituto Millenium: A recente alteração da meta de superávit primário para um déficit zero em 2025 levantou preocupações sobre a credibilidade do arcabouço fiscal brasileiro. Qual é a avaliação da IFI sobre os impactos dessa decisão nos indicadores econômicos chave, como inflação, juros e dívida pública?
Alexandre Andrade: Por enquanto, a alteração da meta de resultado primário de 2025 afetou negativamente as expectativas dos agentes econômicos, que consideravam as metas anteriores (definidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2024 – LDO 2024) difíceis de serem cumpridas. Houve um aumento na aversão a risco nos últimos dias e um fortalecimento do dólar, com a provável postergação da queda dos juros nos EUA. E a alteração nas metas de resultado primário da União de 2025 e 2026 ocorreu em um contexto internacional desfavorável. A elevação na curva de juros futuros pode ter capturado parte desse efeito de mudança nas metas.
Isso colocado, os efeitos sobre variáveis econômicas, como inflação, juros e dívida pública vão depender da capacidade do Executivo em cumprir as novas metas propostas, que continuam sendo consideradas difíceis de serem alcançadas. O Ministério da Fazenda estima, a partir de declarações à imprensa, que serão necessários R$ 50 bilhões em medidas adicionais de arrecadação para o cumprimento da meta de déficit primário zero em 2025. Esses R$ 50 bilhões adicionais se fazem necessários além dos montantes que o Executivo já considera nas medidas de arrecadação para 2024 constantes da Lei Orçamentária Anual de 2024 (LOA 2024) e da Medida Provisória nº 1.202 (a parte da limitação das compensações tributárias dos contribuintes oriundas de decisões judiciais). Assim, eventuais frustrações na arrecadação deste ano exigirão uma arrecadação ainda maior em 2025.
A IFI vem chamando a atenção, em relatórios passados, para a dificuldade da materialização da arrecadação esperada em algumas dessas medidas, como a tributação das operações de subvenções no âmbito do ICMS e a recuperação de créditos no Carf. Tratam-se de medidas com elevada incerteza de materialização em razão dos questionamentos das teses jurídicas pelos contribuintes. Essa judicialização dos temas tende a atrasar os recolhimentos dos tributos esperados pelo Executivo, isso sem contar na possibilidade de as ações serem favoráveis aos contribuintes.
Caso o governo não consiga cumprir as novas metas de resultado primário propostas no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2025 (PLDO 2025), a trajetória da dívida pública será de maior crescimento. O eventual aumento da desconfiança dos agentes em relação a essa trajetória pode afetar as taxas de juros pedidas pelos compradores dos títulos públicos, que passariam a exigir um prêmio maior nas emissões feitas pelo Tesouro, além de provocar uma desvalorização do real. E uma depreciação da taxa de câmbio pode gerar efeitos sobre a inflação doméstica, exigindo aumento da Selic pelo Banco Central. Em suma, os efeitos para a atividade econômica podem ser negativos.
IM: Diante das alterações propostas nas metas fiscais para os próximos anos, que permitam aumentar os gastos públicos, como a IFI vê a trajetória futura da política fiscal no Brasil? Quais são as medidas cruciais recomendadas para manter a estabilidade fiscal diante das atuais incertezas econômicas?
AA: Já de algumas décadas, as contas públicas no Brasil têm sido um fator de desequilíbrio macroeconômico. Isso porque, os gastos do governo pressionam a demanda agregada e, em um contexto de baixa produtividade da economia, tendem a se traduzir em inflação. Em outras palavras, os gastos podem manter a política fiscal mais expansionista e dificultar a coordenação dessa política com a política monetária, afetando os juros básicos de equilíbrio, variável que os economistas chamam de taxa neutra. Trata-se da taxa real de juros que equilibra a oferta e a demanda agregada sem pressionar a inflação, mantendo esta variável na meta definida pelo Conselho Monetário Nacional.
Como os gastos do governo têm configurado um dos principais fatores de desequilíbrio macroeconômico nas últimas décadas, seria importante existir um compromisso com a sustentabilidade das contas públicas no longo prazo, ou seja, com o controle do endividamento público no tempo. Quanto mais a geração atual de brasileiros se endividar, maior o peso deixado para as futuras gerações de brasileiros, que terão de conviver em um ambiente de mais impostos para o financiamento dessa dívida.
O arcabouço fiscal, regra que substituiu o teto de gastos em 2023, coloca todo o peso do ajuste fiscal sobre as receitas, variável que, muitas vezes, o governo não consegue controlar. A despesa, por sua vez, configura uma variável que o governo consegue controlar. Na história recente brasileira, o governo conseguiu realizar sucessivos superávits primários na década de 2000, quando a economia doméstica se beneficiou da conjuntura internacional favorável, o chamado boom de commodities. Naquela época, as receitas cresciam acima das despesas e o governo conseguia realizar superávits primários sem se preocupar muito com a trajetória do gasto. Ocorre que o boom de commodities não perduraria para sempre.
Para um ajuste fiscal mais crível e que transmita aos agentes a percepção de comprometimento com a sustentabilidade das contas públicas, o ideal seria uma combinação de ajuste pelo lado da receita e pelo lado da despesa. Isso facilitaria o alcance das metas fixadas nas diretrizes orçamentárias e aumentaria a capacidade do governo de coordenar as expectativas, facilitando, inclusive, a gestão da dívida pública.
Quando a conjuntura internacional está mais favorável, os desequilíbrios macroeconômicos internos tendem a chamar menos a atenção. Por outro lado, quando ocorre alguma deterioração em expectativas, com aumento da aversão a risco no exterior, eventuais desequilíbrios internos podem ficar exacerbados. Assim, seria importante o país tentar reduzir tais desequilíbrios para sofrer menos com eventuais volatilidades causadas por um ambiente de maior aversão a risco.
IM: De acordo com o relatório de acompanhamento fiscal de março, 2023 trouxe o pior resultado primário do governo central desde 2016, com exceção do ano da pandemia. Além disso, o cenário estrutural que se avizinha para 2024 é considerado preocupante. Quais são os principais riscos, na visão da IFI, associados à continuidade de déficits com componentes não recorrentes e cíclicos? Existe preocupação de que esses padrões se tornem permanentes?
AA: A piora do resultado primário do governo central em 2023 ocorreu por algumas razões. Pelo lado das receitas, houve uma redução nos preços de commodities e a ausência de alguns eventos não recorrentes observados em 2022. Isso fez com que as receitas, em proporção do PIB, recuassem, embora se mantivessem em níveis historicamente elevados.
Pelo lado das despesas, a promulgação da chamada Emenda Constitucional da Transição (Emenda Constitucional nº 126, de 21 de dezembro de 2022) promoveu a recomposição de uma série de despesas que ficaram comprimidas em anos anteriores, além de aumentar e tornar permanentes gastos voltados a transferências de renda a famílias mais vulneráveis (Bolsa Família de R$ 600 e a ampliação do pagamento do benefício).
Em 2023, foi retomada a política de valorização do salário mínimo praticada até 2019, que garantia o aumento do mínimo pela inflação e pelo crescimento da economia passados. A título de ilustração, o salário mínimo afeta várias despesas do governo central, como por exemplo os benefícios previdenciários no âmbito do INSS, o abono salarial e o Benefício da Prestação Continuada. Além disso, o arcabouço fiscal restabeleceu os pisos constitucionais de despesas com saúde e educação, os quais haviam sido modificados pela regra do teto de gastos.
Em outras palavras, a partir de 2023, houve o aumento em várias rubricas da despesa primária da União de caráter continuado, algo na ordem de R$ 200 bilhões (1,8% do PIB). É preciso que se encontrem fontes alternativas de financiamento para esses gastos. Nesse contexto que surgiu o arcabouço fiscal e o peso dado para as receitas no ajuste fiscal.
Não se está aqui questionando o caráter meritório das despesas criadas no ano passado, mas o arcabouço fiscal introduzido em 2023 tornou a execução orçamentária no Brasil mais difícil. Por um lado, ao obrigar o Executivo a aumentar a arrecadação, o arcabouço fez o governo atuar para fechar algumas brechas no sistema tributário e buscar maior isonomia no tratamento dos contribuintes (por exemplo, a mudança na tributação dos fundos exclusivos e das offshores). Por outro lado, ao estabelecer pisos para os investimentos públicos, o arcabouço reduziu o espaço de utilização das despesas discricionárias para o cumprimento das regras fiscais.
A execução orçamentária é muito rígida no Brasil. Pouco mais de 90% da despesa é considerada obrigatória. Durante a vigência da regra do teto de gastos, a regra do limite de despesa foi cumprida por meio da compressão das despesas discricionárias. Claramente esse instrumento não é sustentável, pois diminui a capacidade do governo de realizar investimentos, além da necessidade de se garantir minimamente as despesas para o funcionamento da máquina pública.
Assim, seria importante o governo preparar o terreno para um debate acerca da revisão das despesas obrigatórias no Brasil, além do aprofundamento de medidas que aumentem a eficiência na qualidade dos gastos. Isso passa pela utilização de instrumentos de avaliação de políticas públicas (benefício-custo) e as revisões periódicas de gastos (spending reviews, em inglês), por exemplo.
Dessa forma, poderia se alcançar uma melhor qualidade na execução da política fiscal, reduzindo a dependência das receitas para o cumprimento das metas e das regras fiscais.
IM: Recentes análises apontam para um aumento nos gastos da União para cobrir garantias de estados e municípios, e também para elevações nos limites de endividamento desses entes. Com base nesses dados, a IFI observa melhorias reais na situação fiscal dos governos subnacionais em comparação ao governo federal? Quais fatores têm impulsionado essas mudanças?
AA: Não houve melhora na situação fiscal dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Em linhas gerais, um dos maiores problemas desses entes é a despesa de pessoal, que comprime os orçamentos e dificulta o cumprimento de outras obrigações, como o pagamento do serviço das dívidas com a União.
Em 2020, em troca de apoio financeiro do governo federal, foi aprovada uma lei que proibiu aos estados e aos municípios a contratação de novos servidores, assim como o aumento dos vencimentos desses servidores até dezembro de 2021. Isso produziu um alívio no caixa e melhorou a situação fiscal dos entes. Em 2022, passado o período da proibição de aumento na despesa de pessoal, houve uma retomada na realização de concursos, assim como aumentos ao funcionalismo foram aprovadas nos legislativos estaduais e municipais.
Ainda em 2022, a aprovação das leis complementares 192 e 194 afetou sobremaneira as receitas dos estados e dos municípios, por limitar a cobrança de ICMS sobre itens bastante representativos, como combustíveis e energia elétrica. A discussão acabou indo parar no STF, que atuou como mediador para uma solução, a qual envolveu o pagamento, pela União, de montantes para compensar as perdas incorridas pelos entes com as alterações feitas no ICMS. Esses pagamentos, no total de R$ 27 bilhões, estão disciplinados na Lei Complementar nº 201, de 2023, e irão até 2025.
Outro sinal de que a situação financeira de estados e municípios não está tão confortável é a recente discussão a respeito da renegociação das dívidas com a União. O pleito dos entes envolve, basicamente, mudança na regra do indexador, além do perdão de parte do estoque dessas dívidas. A União, por sua vez, apresentou como contrapartida para essa renegociação a aplicação pelos entes de parte das economias com a mudança no serviço da dívida em matrículas no Ensino Médio Técnico.
IM: Em face do papel crescente da IFI no monitoramento da política fiscal, há planos para reforçar sua autonomia formal, aperfeiçoando o arranjo atual com o Senado? Além do mais, sabe dizer se a existência da IFI tem incentivado a criação de órgãos de fiscalização fiscal semelhantes em estados ou municípios brasileiros?
AA: Via de regra, o surgimento das instituições fiscais independentes é relativamente recente, de uns 15 anos para cá, mais ou menos, em resposta à crise financeira internacional de 2008/2009. Antes disso, existia esse tipo de instituição em países como a Bélgica, os Países Baixos e os EUA. Após 2008, houve uma expansão fiscal muito grande em diversos países e as IFI’s surgiram no contexto de aumento da transparência na condução da política fiscal.
A IFI brasileira foi instalada em novembro de 2016 no âmbito do Senado Federal no contexto da crise fiscal surgida no biênio de 2015/16. Em pouco tempo, a instituição conseguiu destaque e importância ao conferir essa maior transparência para a política fiscal no país.
Existem, sim, planos para reforçar a autonomia formal da IFI e aperfeiçoar o atual arranjo, e isso passa por discussões com os parlamentares. Hoje, o funcionamento da IFI está disciplinado em uma resolução do Senado Federal (Resolução nº 42, de 2016). A ideia inicial de criação da IFI previa que isso seria feita por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição, com a IFI sendo um órgão vinculado ao Congresso Nacional. Naquela altura, não foi possível a criação da IFI por meio de uma PEC e o arranjo político possível foi o de instalação por meio de uma resolução do Senado Federal.
Adicionalmente, a expansão do modelo de IFIs para esferas estaduais e municipais também está sendo considerada no Brasil. O nosso diretor-executivo, Marcus Pestana, mencionou recentemente a intenção de se criar uma IFI na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Similarmente, existe uma iniciativa para estabelecer uma instituição desse tipo na Câmara Legislativa do Distrito Federal. No Rio de Janeiro, a ALERJ já criou uma instituição semelhante anos atrás. Esses desenvolvimentos são testemunho do interesse crescente pela transparência fiscal em diferentes níveis governamentais no país, refletindo a importância reconhecida dessas entidades na melhoria da gestão fiscal e na promoção de debates orçamentários mais fundamentados.
Alexandre Augusto Seijas de Andrade é economista com graduação e mestrado pela FEA-USP, tendo desempenhado funções como economista-sênior na Tendências Consultoria Integrada, economista na Votorantim Corretora, e economista-chefe na GO Associados. No ambiente legislativo, atuou como assessor no Senado Federal, e desde dezembro de 2018 é membro da Instituição Fiscal Independente (IFI), onde assumiu a direção em janeiro de 2024.
Esta entrevista ocorreu após a IFI reagir às propostas do governo federal de revisar as metas fiscais para os próximos anos. O governo propõe reduzir a meta de superávit primário de 1% para 0,25% do PIB em 2026 e zerar a previsão de superávit para 2025, flexibilizando assim o espaço fiscal para potencial aumento dos gastos públicos. Alexandre discute as implicações dessas alterações nas contas públicas, avaliando os riscos para a estabilidade econômica do país e as expectativas da IFI diante do atual cenário fiscal e econômico brasileiro.
Instituto Millenium: A recente alteração da meta de superávit primário para um déficit zero em 2025 levantou preocupações sobre a credibilidade do arcabouço fiscal brasileiro. Qual é a avaliação da IFI sobre os impactos dessa decisão nos indicadores econômicos chave, como inflação, juros e dívida pública?
Alexandre Andrade: Por enquanto, a alteração da meta de resultado primário de 2025 afetou negativamente as expectativas dos agentes econômicos, que consideravam as metas anteriores (definidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2024 – LDO 2024) difíceis de serem cumpridas. Houve um aumento na aversão a risco nos últimos dias e um fortalecimento do dólar, com a provável postergação da queda dos juros nos EUA. E a alteração nas metas de resultado primário da União de 2025 e 2026 ocorreu em um contexto internacional desfavorável. A elevação na curva de juros futuros pode ter capturado parte desse efeito de mudança nas metas.
Isso colocado, os efeitos sobre variáveis econômicas, como inflação, juros e dívida pública vão depender da capacidade do Executivo em cumprir as novas metas propostas, que continuam sendo consideradas difíceis de serem alcançadas. O Ministério da Fazenda estima, a partir de declarações à imprensa, que serão necessários R$ 50 bilhões em medidas adicionais de arrecadação para o cumprimento da meta de déficit primário zero em 2025. Esses R$ 50 bilhões adicionais se fazem necessários além dos montantes que o Executivo já considera nas medidas de arrecadação para 2024 constantes da Lei Orçamentária Anual de 2024 (LOA 2024) e da Medida Provisória nº 1.202 (a parte da limitação das compensações tributárias dos contribuintes oriundas de decisões judiciais). Assim, eventuais frustrações na arrecadação deste ano exigirão uma arrecadação ainda maior em 2025.
A IFI vem chamando a atenção, em relatórios passados, para a dificuldade da materialização da arrecadação esperada em algumas dessas medidas, como a tributação das operações de subvenções no âmbito do ICMS e a recuperação de créditos no Carf. Tratam-se de medidas com elevada incerteza de materialização em razão dos questionamentos das teses jurídicas pelos contribuintes. Essa judicialização dos temas tende a atrasar os recolhimentos dos tributos esperados pelo Executivo, isso sem contar na possibilidade de as ações serem favoráveis aos contribuintes.
Caso o governo não consiga cumprir as novas metas de resultado primário propostas no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2025 (PLDO 2025), a trajetória da dívida pública será de maior crescimento. O eventual aumento da desconfiança dos agentes em relação a essa trajetória pode afetar as taxas de juros pedidas pelos compradores dos títulos públicos, que passariam a exigir um prêmio maior nas emissões feitas pelo Tesouro, além de provocar uma desvalorização do real. E uma depreciação da taxa de câmbio pode gerar efeitos sobre a inflação doméstica, exigindo aumento da Selic pelo Banco Central. Em suma, os efeitos para a atividade econômica podem ser negativos.
IM: Diante das alterações propostas nas metas fiscais para os próximos anos, que permitam aumentar os gastos públicos, como a IFI vê a trajetória futura da política fiscal no Brasil? Quais são as medidas cruciais recomendadas para manter a estabilidade fiscal diante das atuais incertezas econômicas?
AA: Já de algumas décadas, as contas públicas no Brasil têm sido um fator de desequilíbrio macroeconômico. Isso porque, os gastos do governo pressionam a demanda agregada e, em um contexto de baixa produtividade da economia, tendem a se traduzir em inflação. Em outras palavras, os gastos podem manter a política fiscal mais expansionista e dificultar a coordenação dessa política com a política monetária, afetando os juros básicos de equilíbrio, variável que os economistas chamam de taxa neutra. Trata-se da taxa real de juros que equilibra a oferta e a demanda agregada sem pressionar a inflação, mantendo esta variável na meta definida pelo Conselho Monetário Nacional.
Como os gastos do governo têm configurado um dos principais fatores de desequilíbrio macroeconômico nas últimas décadas, seria importante existir um compromisso com a sustentabilidade das contas públicas no longo prazo, ou seja, com o controle do endividamento público no tempo. Quanto mais a geração atual de brasileiros se endividar, maior o peso deixado para as futuras gerações de brasileiros, que terão de conviver em um ambiente de mais impostos para o financiamento dessa dívida.
O arcabouço fiscal, regra que substituiu o teto de gastos em 2023, coloca todo o peso do ajuste fiscal sobre as receitas, variável que, muitas vezes, o governo não consegue controlar. A despesa, por sua vez, configura uma variável que o governo consegue controlar. Na história recente brasileira, o governo conseguiu realizar sucessivos superávits primários na década de 2000, quando a economia doméstica se beneficiou da conjuntura internacional favorável, o chamado boom de commodities. Naquela época, as receitas cresciam acima das despesas e o governo conseguia realizar superávits primários sem se preocupar muito com a trajetória do gasto. Ocorre que o boom de commodities não perduraria para sempre.
Para um ajuste fiscal mais crível e que transmita aos agentes a percepção de comprometimento com a sustentabilidade das contas públicas, o ideal seria uma combinação de ajuste pelo lado da receita e pelo lado da despesa. Isso facilitaria o alcance das metas fixadas nas diretrizes orçamentárias e aumentaria a capacidade do governo de coordenar as expectativas, facilitando, inclusive, a gestão da dívida pública.
Quando a conjuntura internacional está mais favorável, os desequilíbrios macroeconômicos internos tendem a chamar menos a atenção. Por outro lado, quando ocorre alguma deterioração em expectativas, com aumento da aversão a risco no exterior, eventuais desequilíbrios internos podem ficar exacerbados. Assim, seria importante o país tentar reduzir tais desequilíbrios para sofrer menos com eventuais volatilidades causadas por um ambiente de maior aversão a risco.
IM: De acordo com o relatório de acompanhamento fiscal de março, 2023 trouxe o pior resultado primário do governo central desde 2016, com exceção do ano da pandemia. Além disso, o cenário estrutural que se avizinha para 2024 é considerado preocupante. Quais são os principais riscos, na visão da IFI, associados à continuidade de déficits com componentes não recorrentes e cíclicos? Existe preocupação de que esses padrões se tornem permanentes?
AA: A piora do resultado primário do governo central em 2023 ocorreu por algumas razões. Pelo lado das receitas, houve uma redução nos preços de commodities e a ausência de alguns eventos não recorrentes observados em 2022. Isso fez com que as receitas, em proporção do PIB, recuassem, embora se mantivessem em níveis historicamente elevados.
Pelo lado das despesas, a promulgação da chamada Emenda Constitucional da Transição (Emenda Constitucional nº 126, de 21 de dezembro de 2022) promoveu a recomposição de uma série de despesas que ficaram comprimidas em anos anteriores, além de aumentar e tornar permanentes gastos voltados a transferências de renda a famílias mais vulneráveis (Bolsa Família de R$ 600 e a ampliação do pagamento do benefício).
Em 2023, foi retomada a política de valorização do salário mínimo praticada até 2019, que garantia o aumento do mínimo pela inflação e pelo crescimento da economia passados. A título de ilustração, o salário mínimo afeta várias despesas do governo central, como por exemplo os benefícios previdenciários no âmbito do INSS, o abono salarial e o Benefício da Prestação Continuada. Além disso, o arcabouço fiscal restabeleceu os pisos constitucionais de despesas com saúde e educação, os quais haviam sido modificados pela regra do teto de gastos.
Em outras palavras, a partir de 2023, houve o aumento em várias rubricas da despesa primária da União de caráter continuado, algo na ordem de R$ 200 bilhões (1,8% do PIB). É preciso que se encontrem fontes alternativas de financiamento para esses gastos. Nesse contexto que surgiu o arcabouço fiscal e o peso dado para as receitas no ajuste fiscal.
Não se está aqui questionando o caráter meritório das despesas criadas no ano passado, mas o arcabouço fiscal introduzido em 2023 tornou a execução orçamentária no Brasil mais difícil. Por um lado, ao obrigar o Executivo a aumentar a arrecadação, o arcabouço fez o governo atuar para fechar algumas brechas no sistema tributário e buscar maior isonomia no tratamento dos contribuintes (por exemplo, a mudança na tributação dos fundos exclusivos e das offshores). Por outro lado, ao estabelecer pisos para os investimentos públicos, o arcabouço reduziu o espaço de utilização das despesas discricionárias para o cumprimento das regras fiscais.
A execução orçamentária é muito rígida no Brasil. Pouco mais de 90% da despesa é considerada obrigatória. Durante a vigência da regra do teto de gastos, a regra do limite de despesa foi cumprida por meio da compressão das despesas discricionárias. Claramente esse instrumento não é sustentável, pois diminui a capacidade do governo de realizar investimentos, além da necessidade de se garantir minimamente as despesas para o funcionamento da máquina pública.
Assim, seria importante o governo preparar o terreno para um debate acerca da revisão das despesas obrigatórias no Brasil, além do aprofundamento de medidas que aumentem a eficiência na qualidade dos gastos. Isso passa pela utilização de instrumentos de avaliação de políticas públicas (benefício-custo) e as revisões periódicas de gastos (spending reviews, em inglês), por exemplo.
Dessa forma, poderia se alcançar uma melhor qualidade na execução da política fiscal, reduzindo a dependência das receitas para o cumprimento das metas e das regras fiscais.
IM: Recentes análises apontam para um aumento nos gastos da União para cobrir garantias de estados e municípios, e também para elevações nos limites de endividamento desses entes. Com base nesses dados, a IFI observa melhorias reais na situação fiscal dos governos subnacionais em comparação ao governo federal? Quais fatores têm impulsionado essas mudanças?
AA: Não houve melhora na situação fiscal dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Em linhas gerais, um dos maiores problemas desses entes é a despesa de pessoal, que comprime os orçamentos e dificulta o cumprimento de outras obrigações, como o pagamento do serviço das dívidas com a União.
Em 2020, em troca de apoio financeiro do governo federal, foi aprovada uma lei que proibiu aos estados e aos municípios a contratação de novos servidores, assim como o aumento dos vencimentos desses servidores até dezembro de 2021. Isso produziu um alívio no caixa e melhorou a situação fiscal dos entes. Em 2022, passado o período da proibição de aumento na despesa de pessoal, houve uma retomada na realização de concursos, assim como aumentos ao funcionalismo foram aprovadas nos legislativos estaduais e municipais.
Ainda em 2022, a aprovação das leis complementares 192 e 194 afetou sobremaneira as receitas dos estados e dos municípios, por limitar a cobrança de ICMS sobre itens bastante representativos, como combustíveis e energia elétrica. A discussão acabou indo parar no STF, que atuou como mediador para uma solução, a qual envolveu o pagamento, pela União, de montantes para compensar as perdas incorridas pelos entes com as alterações feitas no ICMS. Esses pagamentos, no total de R$ 27 bilhões, estão disciplinados na Lei Complementar nº 201, de 2023, e irão até 2025.
Outro sinal de que a situação financeira de estados e municípios não está tão confortável é a recente discussão a respeito da renegociação das dívidas com a União. O pleito dos entes envolve, basicamente, mudança na regra do indexador, além do perdão de parte do estoque dessas dívidas. A União, por sua vez, apresentou como contrapartida para essa renegociação a aplicação pelos entes de parte das economias com a mudança no serviço da dívida em matrículas no Ensino Médio Técnico.
IM: Em face do papel crescente da IFI no monitoramento da política fiscal, há planos para reforçar sua autonomia formal, aperfeiçoando o arranjo atual com o Senado? Além do mais, sabe dizer se a existência da IFI tem incentivado a criação de órgãos de fiscalização fiscal semelhantes em estados ou municípios brasileiros?
AA: Via de regra, o surgimento das instituições fiscais independentes é relativamente recente, de uns 15 anos para cá, mais ou menos, em resposta à crise financeira internacional de 2008/2009. Antes disso, existia esse tipo de instituição em países como a Bélgica, os Países Baixos e os EUA. Após 2008, houve uma expansão fiscal muito grande em diversos países e as IFI’s surgiram no contexto de aumento da transparência na condução da política fiscal.
A IFI brasileira foi instalada em novembro de 2016 no âmbito do Senado Federal no contexto da crise fiscal surgida no biênio de 2015/16. Em pouco tempo, a instituição conseguiu destaque e importância ao conferir essa maior transparência para a política fiscal no país.
Existem, sim, planos para reforçar a autonomia formal da IFI e aperfeiçoar o atual arranjo, e isso passa por discussões com os parlamentares. Hoje, o funcionamento da IFI está disciplinado em uma resolução do Senado Federal (Resolução nº 42, de 2016). A ideia inicial de criação da IFI previa que isso seria feita por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição, com a IFI sendo um órgão vinculado ao Congresso Nacional. Naquela altura, não foi possível a criação da IFI por meio de uma PEC e o arranjo político possível foi o de instalação por meio de uma resolução do Senado Federal.
Adicionalmente, a expansão do modelo de IFIs para esferas estaduais e municipais também está sendo considerada no Brasil. O nosso diretor-executivo, Marcus Pestana, mencionou recentemente a intenção de se criar uma IFI na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Similarmente, existe uma iniciativa para estabelecer uma instituição desse tipo na Câmara Legislativa do Distrito Federal. No Rio de Janeiro, a ALERJ já criou uma instituição semelhante anos atrás. Esses desenvolvimentos são testemunho do interesse crescente pela transparência fiscal em diferentes níveis governamentais no país, refletindo a importância reconhecida dessas entidades na melhoria da gestão fiscal e na promoção de debates orçamentários mais fundamentados.