“Precisamos de políticas públicas de planejamento urbano menos burocráticas”
O arquiteto e urbanista Anthony Ling acredita que a maior parte das cidades brasileiras está abaixo da média mundial no quesito mobilidade urbana. Uma das causas do problema se deve às próprias políticas públicas que criam medidas paliativas em vez de atacar a raiz da questão. Ao contrário do que se pensa, Ling afirma não faltar regras relacionadas ao planejamento urbano e sim medidas para torná-las um caminho viável. “Precisamos […] Leia mais
Da Redação
Publicado em 14 de março de 2014 às 12h58.
Última atualização em 24 de fevereiro de 2017 às 08h34.
O arquiteto e urbanista Anthony Ling acredita que a maior parte das cidades brasileiras está abaixo da média mundial no quesito mobilidade urbana. Uma das causas do problema se deve às próprias políticas públicas que criam medidas paliativas em vez de atacar a raiz da questão. Ao contrário do que se pensa, Ling afirma não faltar regras relacionadas ao planejamento urbano e sim medidas para torná-las um caminho viável. “Precisamos de políticas públicas de simplificação e desburocratização do planejamento existente”, explica. Leia a entrevista:
Imil: Que nota o senhor daria à mobilidade urbana nas grandes capitais do Brasil? Por quê?
Anthony Ling: Um estudo de mobilidade da Arthur D. Little [empresa de consultoria de gestão global especializada em estratégia e gestão de operações, com tecnologia e inovação] classifica como média a mobilidade em cidades brasileiras. No entanto, o que acontece em muitas metrópoles do Brasil hoje é a conurbação de centros urbanos, quando não se percebe mais os limites entre um município e outro. Mas se existem centenas de milhares de cidadãos que levam cerca de três horas para chegar das periferias aos seus empregos, como é o caso de São Paulo, certamente deveríamos classificar a cidade como abaixo da média mundial.
Imil: A sociedade privilegia o carro e as cidades continuam a ser construídas para automóveis. O senhor acha que as cidades e também as pessoas precisam mudar? Que tipo de políticas públicas pode estimular as cidades e as pessoas a se adaptarem à nova realidade?
Ling: Não acredito que nenhuma política pública deva partir do princípio de que as pessoas precisam mudar. Um sistema que parte desse pressuposto não funciona. A ideia é desenhar um sistema para as pessoas e não fazer com que elas se adaptem ao que foi desenhado.
As políticas públicas e os grupos de interesse que interferiram na cidade até hoje impediram que ela se tornasse o que as pessoas gostariam que ela fosse. Existe um grande medo do resultado de uma ação mais livre dos cidadãos no território, mas quase sempre este medo está aliado ao desconhecimento do arcabouço regulatório das cidades: existem milhares de páginas de regras ditando o que deve e o que não deve ser construído. Criar um novo planejamento rígido foge do problema central da imprevisibilidade do desenvolvimento e da natureza orgânica que as cidades possuem, impedindo que ela reflita a vontade dos seus cidadãos. Precisamos, assim, de políticas públicas de simplificação e desburocratização do planejamento existente, colocando mais poder decisório nas mãos dos próprios cidadãos e permitindo uma cidade mais dinâmica.
Imil: Existem muitas opções de transporte de massa. Qual a melhor opção para as grandes cidades? Como seria uma cidade bem resolvida em relação à mobilidade urbana?
Ling: Grandes cidades precisam de diversas soluções de mobilidade. Existe hoje uma tentativa de “organizar” o trânsito a partir de grandes soluções de um planejador central. Isso ocorre na forma de faixas dedicadas para ônibus, carros, motos, bicicletas e, por fim, pedestres. Infelizmente, quando planejadas desta forma, elas nunca estarão dimensionadas corretamente.
O transporte precisa de alternativas para diferentes preferências dos cidadãos, redundâncias para evitar colapsos pontuais do sistema e uma constante atualização das rotas. Quando isso está centralizado nas agências municipais, qualquer nova solução de transporte que não parta do sistema vigente normalmente é restringida, mesmo que seja benéfica para a mobilidade como um todo.
Imil: Como assim? Dê exemplos, por favor.
Ling: No Rio de Janeiro, na intenção de centralizar o poder do sistema de transportes através do Bilhete Único, estão eliminando as vans, que são uma categoria essencial no transporte coletivo em regiões não atendidas por ônibus e metrô. Em Curitiba, taxistas que atendem chamadas feitas por meio de aplicativos tiveram os selos de circulação arrancados pelos reguladores municipais. Os aplicativos são um benefício claro para o usuário, para o taxista e para a cidade, que tem menos táxis ociosos circulando e mais usuários incentivados a deixarem seus carros e viajarem de táxi, compartilhando o uso de um carro. Os próximos 20 anos do transporte no mundo serão marcados fortemente por aplicativos de chamada — o Demand Responsive Transport ou Mobility On Demand e do redesenho de veículos para dirigirem de forma autônoma, eliminando a necessidade de um motorista. Teremos uma mudança radical de paradigma que certamente será um desafio regulatório no país inteiro.
Imil: As grandes cidades brasileiras caminham para alcançar um bom desempenho em relação à mobilidade urbana? Os governos investem o suficiente em soluções para o problema?
Ling: Com raras exceções, não acredito que as grandes cidades brasileiras estão caminhando nesta direção. A sua pergunta, na verdade, é a mesma que direciona a mentalidade de muitos gestores públicos: “o problema poderá ser resolvido se houver investimento suficiente”. Grande parte dos problemas urbanos de hoje não vem de falta de investimento, mas dos problemas institucionais e da prepotência do planejamento total que comentei anteriormente. Além disso, as obras realizadas pelos governos em muitos casos podem piorar o trânsito. O caso mais emblemático é o de Porto Alegre, que recebeu milhões de reais como um incentivo à mobilidade para construir vários viadutos dentro da cidade, insistindo nos erros que cometeu no passado. As demais obras e medidas tomadas pelos governos atacam as consequências dos problemas urbanos criando medidas paliativas, sem avançar sobre a raiz do problema, reconhecendo a cidade como um organismo vivo, dinâmico e descentralizado.
Imil: Alguns estudiosos dizem que o modelo de cidade que concentra trabalho no centro e moradias nas periferias está em colapso e defendem a criação de cidades compactas. O senhor concorda?
Ling: Acredito que devemos permitir que a cidade se torne compacta onde há demanda para isso. É difícil afirmar que, ao diminuir a regulação sobre o solo urbano, todos os bairros se tornarão densos e compactos, já que há muitos habitantes que têm preferências por bairros de menor densidade e optarão pagar pelo preço de mercado por tal benefício. Também é difícil afirmar que tornar a cidade compacta é apenas uma vontade do planejador. A densidade ocorre onde há grande demanda para a utilização do mesmo espaço. O planejador não tem o poder de criar essa demanda artificialmente.
Imil: Muitos defendem a verticalização das cidades. Como o senhor analisa essa proposta?
Ling: Verticalização é um termo relativo, já que cidades consideradas verticais podem ter resultados extremamente diferentes. Porto Alegre é considerada a segunda cidade mais verticalizada do Brasil, já que possui grande parte da população morando em apartamentos. No entanto, essa verticalização não produz densidade demográfica, já que a maioria desses edifícios tem grandes recuos de ajardinamento e poucos andares na sua verticalização. São Paulo, por exemplo, tem edifícios ainda mais altos que Porto Alegre, mas muitos bairros verticalizados também não produzem densidade suficiente por causa dos recuos ainda maiores, isolando os edifícios nos terrenos.
Imil: Verticalizar não significa elevar a concentração de pessoas, compactar. A cidade compacta precisa ser vertical?
Ling: Correto, uma cidade compacta não precisa, necessariamente, ser vertical. Paris, por exemplo, tem uma alta densidade demográfica com edifícios baixos. Favelas e grande parte das metrópoles na Índia, por exemplo, também têm densidades altíssimas sem verticalização, já que é comum encontrar sete ou oito pessoas morando em unidades muito pequenas. O que a verticalização permite, em casos como Manhattan e Hong Kong, é densidade demográfica com unidades mais espaçosas, caso não verticalizasse, pois se expande os limites de área construída. Manhattan sempre teve esse formato, e Hong Kong foi obrigada a se verticalizar para aumentar o estoque de imóveis e diminuir os índices de coabitação insalubre que existia até os anos 1970. Isso faz com que essas cidades tenham ambientes urbanos extremamente atraentes a novos moradores e, paradoxalmente, acabam tendo preços de imóveis elevados tamanha é a demanda que ela gera, apesar do aumento na oferta de área construída.
O arquiteto e urbanista Anthony Ling acredita que a maior parte das cidades brasileiras está abaixo da média mundial no quesito mobilidade urbana. Uma das causas do problema se deve às próprias políticas públicas que criam medidas paliativas em vez de atacar a raiz da questão. Ao contrário do que se pensa, Ling afirma não faltar regras relacionadas ao planejamento urbano e sim medidas para torná-las um caminho viável. “Precisamos de políticas públicas de simplificação e desburocratização do planejamento existente”, explica. Leia a entrevista:
Imil: Que nota o senhor daria à mobilidade urbana nas grandes capitais do Brasil? Por quê?
Anthony Ling: Um estudo de mobilidade da Arthur D. Little [empresa de consultoria de gestão global especializada em estratégia e gestão de operações, com tecnologia e inovação] classifica como média a mobilidade em cidades brasileiras. No entanto, o que acontece em muitas metrópoles do Brasil hoje é a conurbação de centros urbanos, quando não se percebe mais os limites entre um município e outro. Mas se existem centenas de milhares de cidadãos que levam cerca de três horas para chegar das periferias aos seus empregos, como é o caso de São Paulo, certamente deveríamos classificar a cidade como abaixo da média mundial.
Imil: A sociedade privilegia o carro e as cidades continuam a ser construídas para automóveis. O senhor acha que as cidades e também as pessoas precisam mudar? Que tipo de políticas públicas pode estimular as cidades e as pessoas a se adaptarem à nova realidade?
Ling: Não acredito que nenhuma política pública deva partir do princípio de que as pessoas precisam mudar. Um sistema que parte desse pressuposto não funciona. A ideia é desenhar um sistema para as pessoas e não fazer com que elas se adaptem ao que foi desenhado.
As políticas públicas e os grupos de interesse que interferiram na cidade até hoje impediram que ela se tornasse o que as pessoas gostariam que ela fosse. Existe um grande medo do resultado de uma ação mais livre dos cidadãos no território, mas quase sempre este medo está aliado ao desconhecimento do arcabouço regulatório das cidades: existem milhares de páginas de regras ditando o que deve e o que não deve ser construído. Criar um novo planejamento rígido foge do problema central da imprevisibilidade do desenvolvimento e da natureza orgânica que as cidades possuem, impedindo que ela reflita a vontade dos seus cidadãos. Precisamos, assim, de políticas públicas de simplificação e desburocratização do planejamento existente, colocando mais poder decisório nas mãos dos próprios cidadãos e permitindo uma cidade mais dinâmica.
Imil: Existem muitas opções de transporte de massa. Qual a melhor opção para as grandes cidades? Como seria uma cidade bem resolvida em relação à mobilidade urbana?
Ling: Grandes cidades precisam de diversas soluções de mobilidade. Existe hoje uma tentativa de “organizar” o trânsito a partir de grandes soluções de um planejador central. Isso ocorre na forma de faixas dedicadas para ônibus, carros, motos, bicicletas e, por fim, pedestres. Infelizmente, quando planejadas desta forma, elas nunca estarão dimensionadas corretamente.
O transporte precisa de alternativas para diferentes preferências dos cidadãos, redundâncias para evitar colapsos pontuais do sistema e uma constante atualização das rotas. Quando isso está centralizado nas agências municipais, qualquer nova solução de transporte que não parta do sistema vigente normalmente é restringida, mesmo que seja benéfica para a mobilidade como um todo.
Imil: Como assim? Dê exemplos, por favor.
Ling: No Rio de Janeiro, na intenção de centralizar o poder do sistema de transportes através do Bilhete Único, estão eliminando as vans, que são uma categoria essencial no transporte coletivo em regiões não atendidas por ônibus e metrô. Em Curitiba, taxistas que atendem chamadas feitas por meio de aplicativos tiveram os selos de circulação arrancados pelos reguladores municipais. Os aplicativos são um benefício claro para o usuário, para o taxista e para a cidade, que tem menos táxis ociosos circulando e mais usuários incentivados a deixarem seus carros e viajarem de táxi, compartilhando o uso de um carro. Os próximos 20 anos do transporte no mundo serão marcados fortemente por aplicativos de chamada — o Demand Responsive Transport ou Mobility On Demand e do redesenho de veículos para dirigirem de forma autônoma, eliminando a necessidade de um motorista. Teremos uma mudança radical de paradigma que certamente será um desafio regulatório no país inteiro.
Imil: As grandes cidades brasileiras caminham para alcançar um bom desempenho em relação à mobilidade urbana? Os governos investem o suficiente em soluções para o problema?
Ling: Com raras exceções, não acredito que as grandes cidades brasileiras estão caminhando nesta direção. A sua pergunta, na verdade, é a mesma que direciona a mentalidade de muitos gestores públicos: “o problema poderá ser resolvido se houver investimento suficiente”. Grande parte dos problemas urbanos de hoje não vem de falta de investimento, mas dos problemas institucionais e da prepotência do planejamento total que comentei anteriormente. Além disso, as obras realizadas pelos governos em muitos casos podem piorar o trânsito. O caso mais emblemático é o de Porto Alegre, que recebeu milhões de reais como um incentivo à mobilidade para construir vários viadutos dentro da cidade, insistindo nos erros que cometeu no passado. As demais obras e medidas tomadas pelos governos atacam as consequências dos problemas urbanos criando medidas paliativas, sem avançar sobre a raiz do problema, reconhecendo a cidade como um organismo vivo, dinâmico e descentralizado.
Imil: Alguns estudiosos dizem que o modelo de cidade que concentra trabalho no centro e moradias nas periferias está em colapso e defendem a criação de cidades compactas. O senhor concorda?
Ling: Acredito que devemos permitir que a cidade se torne compacta onde há demanda para isso. É difícil afirmar que, ao diminuir a regulação sobre o solo urbano, todos os bairros se tornarão densos e compactos, já que há muitos habitantes que têm preferências por bairros de menor densidade e optarão pagar pelo preço de mercado por tal benefício. Também é difícil afirmar que tornar a cidade compacta é apenas uma vontade do planejador. A densidade ocorre onde há grande demanda para a utilização do mesmo espaço. O planejador não tem o poder de criar essa demanda artificialmente.
Imil: Muitos defendem a verticalização das cidades. Como o senhor analisa essa proposta?
Ling: Verticalização é um termo relativo, já que cidades consideradas verticais podem ter resultados extremamente diferentes. Porto Alegre é considerada a segunda cidade mais verticalizada do Brasil, já que possui grande parte da população morando em apartamentos. No entanto, essa verticalização não produz densidade demográfica, já que a maioria desses edifícios tem grandes recuos de ajardinamento e poucos andares na sua verticalização. São Paulo, por exemplo, tem edifícios ainda mais altos que Porto Alegre, mas muitos bairros verticalizados também não produzem densidade suficiente por causa dos recuos ainda maiores, isolando os edifícios nos terrenos.
Imil: Verticalizar não significa elevar a concentração de pessoas, compactar. A cidade compacta precisa ser vertical?
Ling: Correto, uma cidade compacta não precisa, necessariamente, ser vertical. Paris, por exemplo, tem uma alta densidade demográfica com edifícios baixos. Favelas e grande parte das metrópoles na Índia, por exemplo, também têm densidades altíssimas sem verticalização, já que é comum encontrar sete ou oito pessoas morando em unidades muito pequenas. O que a verticalização permite, em casos como Manhattan e Hong Kong, é densidade demográfica com unidades mais espaçosas, caso não verticalizasse, pois se expande os limites de área construída. Manhattan sempre teve esse formato, e Hong Kong foi obrigada a se verticalizar para aumentar o estoque de imóveis e diminuir os índices de coabitação insalubre que existia até os anos 1970. Isso faz com que essas cidades tenham ambientes urbanos extremamente atraentes a novos moradores e, paradoxalmente, acabam tendo preços de imóveis elevados tamanha é a demanda que ela gera, apesar do aumento na oferta de área construída.