Oncologia SUS: o fee-for-service na saúde pública
Para que hospitais possam tratar câncer pelo SUS, gestores locais, com seus padrinhos no governo federal, deliberam em comissões regionais e estaduais
Colunista - Instituto Millenium
Publicado em 30 de agosto de 2023 às 13h59.
A assistência oncológica pelo SUS reflete de maneira profunda a realidade da saúde pública no Brasil. É o resultado de uma política pautada por ideias a priori, diversificados interesses políticos e por grupos que usam e abusam do ente público. Um projeto cuja consequência é reflexo da nossa incapacidade de redefinir os rumos a partir de resultados desfavoráveis. Escancara também a hipocrisia de uma parte da elite que não depende dos serviços de oncologia que atendem o SUS e que, por motivações ideológicas, defende o sistema de maneira acrítica, sem considerar melhorias vitais para milhares que falecem de câncer no país, muitos antes mesmo do diagnóstico.
Para que hospitais (clínicas são vetadas) possam tratar câncer pelo SUS, gestores locais, com seus respectivos padrinhos no governo federal, deliberam em comissões regionais e estaduais. Esse sistema é regido pela Portaria SAES/MS Nº 1399, de 17 de dezembro de 2019. Ali está toda a burocracia pela qual a micropolítica de interesses se sobressai às necessidades dos pacientes com câncer. Hospitais ou clínicas que já atuam no SUS em outras especialidades não podem oferecer tratamentos oncológicos sem serem especificamente habilitados conforme as diretrizes da Portaria 1399.
Em princípio, centralizar a organização da rede de tratamento oncológico pode parecer sensato. Contudo, os critérios para habilitação de um hospital são inatingíveis sem financiamentos provenientes de emendas parlamentares. Talvez por influência dos serviços já existentes ou pela falta de competência na gestão pública em saúde, é praticamente impossível atingir os números necessários para habilitação, como 650 cirurgias/ano, 5.300 procedimentos de Quimioterapia/ano, 600 procedimentos/ano de radioterapia de modo a um hospital vir a ser elegível para atendimento pelo SUS. A portaria, em última análise, milita contra a criação de novos serviços.
Os hospitais que estão funcionando também dependem de emendas parlamentares, já que os repasses da tabela SUS são insuficientes. A necessidade de emendas como forma de subsistência dos hospitais oncológicos fomenta nossa realidade iliberal de subserviência à politicagem em geral. Grandes hospitais de referência estabelecem redes de interesses, onde vereadores e prefeituras buscam capital político e vagas de atendimento em troca de emendas municipais. Para terem seus nomes associados a campanhas e mutirões de exames feitos por ônibus de instituições famosas, os políticos municipais aniquilam projetos que poderiam realmente atender as necessidades das comunidades locais. Muito mais proveitoso a essa perniciosa política ser o dono da chave da ambulância e portador da vaga que traz alívio a apenas uma parcela da população, do que deixar a sociedade civil local resolver o problema sem intermediários.
Para ilustrar, o Hospital de Amor de Barretos em 2021 recebeu R$ 195 milhões do SUS e mais de R$ 283 milhões provenientes de subvenções governamentais. As emendas parlamentares, que somaram R$ 223.676.159,00 no mesmo ano, vieram de inúmeros políticos. De Joice Hasselmann a Eduardo Bolsonaro passando por Tiririca, além de uma legião de vereadores pelo país. E mesmo nos poucos oásis de bons hospitais oncológicos, o acesso aos tratamentos é inferior ao oferecido na medicina privada, especialmente na oncologia de precisão. Isso porque os custos das novas medicações para o tratamento do câncer aumentam geometricamente. O tíquete médio de infusão oncológica na Rede D’or, por exemplo, era R$ 5.017 em 2019 versus R$ 11.264 em 2023, conforme sua última apresentação de resultados trimestrais.
A prevenção sempre foi a estratégia mais eficaz para promover a saúde. Com o cenário cada vez menos sustentável financeiramente, a prevenção se torna ainda mais crucial. Através da oncogenética é possível selecionar famílias com alta predisposição ao câncer e implementar programas extremamente custo-efetivos para prevenção e detecção precoce. Infelizmente, não existe uma política nacional bem estruturada nessa área. O sistema de saúde privado também tende a negligenciar a prevenção, provavelmente devido ao modelo de remuneração que prioriza o gasto em detrimento dos resultados. E os hospitais oncológicos do SUS, contrariando as próprias determinações da Portaria 1399, raramente promovem ações de prevenção ou realizam diagnósticos nas pessoas que se acumulam nas unidades básicas de saúde as quais o ciclo vicioso mencionado acima ajudou a sucatear.
Pagamos um preço elevado por ignorar os dados que saltam aos nossos olhos. Seja por permitir a continuação dessas redes de interesses políticos e lobbies que mencionei superficialmente, seja por negligenciar o conhecimento científico em oncogenética e prevenção. Nesse processo, estamos fortalecendo cada vez mais o modelo assistencial oligofrênico baseado em fee-for-service em várias esferas econômicas e políticas. Isso transforma o câncer em uma força poderosa promotora de desigualdade social no Brasil.
A assistência oncológica pelo SUS reflete de maneira profunda a realidade da saúde pública no Brasil. É o resultado de uma política pautada por ideias a priori, diversificados interesses políticos e por grupos que usam e abusam do ente público. Um projeto cuja consequência é reflexo da nossa incapacidade de redefinir os rumos a partir de resultados desfavoráveis. Escancara também a hipocrisia de uma parte da elite que não depende dos serviços de oncologia que atendem o SUS e que, por motivações ideológicas, defende o sistema de maneira acrítica, sem considerar melhorias vitais para milhares que falecem de câncer no país, muitos antes mesmo do diagnóstico.
Para que hospitais (clínicas são vetadas) possam tratar câncer pelo SUS, gestores locais, com seus respectivos padrinhos no governo federal, deliberam em comissões regionais e estaduais. Esse sistema é regido pela Portaria SAES/MS Nº 1399, de 17 de dezembro de 2019. Ali está toda a burocracia pela qual a micropolítica de interesses se sobressai às necessidades dos pacientes com câncer. Hospitais ou clínicas que já atuam no SUS em outras especialidades não podem oferecer tratamentos oncológicos sem serem especificamente habilitados conforme as diretrizes da Portaria 1399.
Em princípio, centralizar a organização da rede de tratamento oncológico pode parecer sensato. Contudo, os critérios para habilitação de um hospital são inatingíveis sem financiamentos provenientes de emendas parlamentares. Talvez por influência dos serviços já existentes ou pela falta de competência na gestão pública em saúde, é praticamente impossível atingir os números necessários para habilitação, como 650 cirurgias/ano, 5.300 procedimentos de Quimioterapia/ano, 600 procedimentos/ano de radioterapia de modo a um hospital vir a ser elegível para atendimento pelo SUS. A portaria, em última análise, milita contra a criação de novos serviços.
Os hospitais que estão funcionando também dependem de emendas parlamentares, já que os repasses da tabela SUS são insuficientes. A necessidade de emendas como forma de subsistência dos hospitais oncológicos fomenta nossa realidade iliberal de subserviência à politicagem em geral. Grandes hospitais de referência estabelecem redes de interesses, onde vereadores e prefeituras buscam capital político e vagas de atendimento em troca de emendas municipais. Para terem seus nomes associados a campanhas e mutirões de exames feitos por ônibus de instituições famosas, os políticos municipais aniquilam projetos que poderiam realmente atender as necessidades das comunidades locais. Muito mais proveitoso a essa perniciosa política ser o dono da chave da ambulância e portador da vaga que traz alívio a apenas uma parcela da população, do que deixar a sociedade civil local resolver o problema sem intermediários.
Para ilustrar, o Hospital de Amor de Barretos em 2021 recebeu R$ 195 milhões do SUS e mais de R$ 283 milhões provenientes de subvenções governamentais. As emendas parlamentares, que somaram R$ 223.676.159,00 no mesmo ano, vieram de inúmeros políticos. De Joice Hasselmann a Eduardo Bolsonaro passando por Tiririca, além de uma legião de vereadores pelo país. E mesmo nos poucos oásis de bons hospitais oncológicos, o acesso aos tratamentos é inferior ao oferecido na medicina privada, especialmente na oncologia de precisão. Isso porque os custos das novas medicações para o tratamento do câncer aumentam geometricamente. O tíquete médio de infusão oncológica na Rede D’or, por exemplo, era R$ 5.017 em 2019 versus R$ 11.264 em 2023, conforme sua última apresentação de resultados trimestrais.
A prevenção sempre foi a estratégia mais eficaz para promover a saúde. Com o cenário cada vez menos sustentável financeiramente, a prevenção se torna ainda mais crucial. Através da oncogenética é possível selecionar famílias com alta predisposição ao câncer e implementar programas extremamente custo-efetivos para prevenção e detecção precoce. Infelizmente, não existe uma política nacional bem estruturada nessa área. O sistema de saúde privado também tende a negligenciar a prevenção, provavelmente devido ao modelo de remuneração que prioriza o gasto em detrimento dos resultados. E os hospitais oncológicos do SUS, contrariando as próprias determinações da Portaria 1399, raramente promovem ações de prevenção ou realizam diagnósticos nas pessoas que se acumulam nas unidades básicas de saúde as quais o ciclo vicioso mencionado acima ajudou a sucatear.
Pagamos um preço elevado por ignorar os dados que saltam aos nossos olhos. Seja por permitir a continuação dessas redes de interesses políticos e lobbies que mencionei superficialmente, seja por negligenciar o conhecimento científico em oncogenética e prevenção. Nesse processo, estamos fortalecendo cada vez mais o modelo assistencial oligofrênico baseado em fee-for-service em várias esferas econômicas e políticas. Isso transforma o câncer em uma força poderosa promotora de desigualdade social no Brasil.