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O inferno são sempre os outros. E os ricos também

Políticas públicas devem ser focalizadas e específicas para aqueles que delas necessitam. E, por vezes, a gratuidade não deve ser para todos

Startups: se bolsa vive o boom do IPO, empreendedores experimentam boom do capital de risco (CSA Images/Getty Images)
DR

Da Redação

Publicado em 7 de junho de 2022 às 16h55.

Por André Bolini

O inferno são os outros. Sempre. E, no Brasil, os ricos também. Difícil mesmo é conhecer um conterrâneo que consiga ver em si mesmo suas próprias falhas e admita estar entre os mais abastados desta pobre sociedade tupiniquim. A frase com que começo o texto é de autoria de Jean-Paul Sartre. Em poucas palavras, o filósofo e escritor francês conseguiu satirizar uma característica comum à maioria esmagadora das pessoas: sua incapacidade de reconhecer as próprias falhas e assumir as consequências de seus próprios atos, de modo a, convenientemente, transferir a culpa para um terceiro. São os outros, afinal, que nos lembram como somos responsáveis por tudo o que fazemos. Já o adendo na terceira sentença deste parágrafo - sobre a riqueza alheia - é de minha autoria. Explico a seguir.

Se o meu querido amigo leitor estiver um tanto quanto cético em relação ao que digo, proponho-lhe de pronto um exercício: pergunte aos colegas de trabalho quem são os ricos do Brasil. Ainda que pertencendo aos 10% da população com mais patrimônio do País com renda mensal média a partir de R$3.500, a resposta de seu colega será algo como “os grandes empresários e investidores da bolsa” ou “os banqueiros e os mega fazendeiros”. Que dirá então dos 5% mais ricos do Brasil - do qual já se faz parte com renda média mensal a partir de R$10.500? Pode ter certeza: os ricos serão sempre os outros. E a verdade é que essa percepção faz toda diferença quando se discutem políticas públicas como a cobrança de mensalidades em universidades públicas. Os outros - mais ricos - que devem pagar - não eu!

Entrou em debate recente a Proposta de Emenda à Constituição 206 de 2019, cujo texto prevê cobrança de mensalidade nas universidades públicas para alunos de alta renda. O modelo já é seguido por países como Austrália, Canadá, Reino Unido, Itália, Japão e Israel e, aqui, no Brasil, busca corrigir as distorções criadas pela gratuidade generalizada - como o aumento da desigualdade social. Afinal, apesar de políticas afirmativas como cotas sociais e raciais terem aumentado a entrada de alunos de famílias mais pobres, oriundos da rede pública de ensino fundamental e médio, ainda prevalece nas faculdades, em grande medida, um perfil de aluno oriundo das melhores escolas da rede de ensino particular e com condições de custear - total ou parcialmente - sua graduação. De acordo com os dados do Ministério da Educação, nas universidades federais, apenas 14% dos alunos vieram de escolas públicas, enquanto a maioria esmagadora passou por escolas privadas.

A partir do momento que o custeio das faculdades públicas se faz majoritariamente pela arrecadação de tributos sobre o consumo (cujo caráter da tributação é regressivo, isto é, pesa mais sobre uma família com menor renda) e o perfil do alunato é majoritariamente oriundo de classes mais ricas, a universidade pública e gratuita torna-se uma máquina de desigualdade - drenando, proporcionalmente, recursos dos mais pobres em benefícios dos mais ricos. Lembre-se, pois: um aluno de família com renda per capita de R$250 mensais tem 2% de chance de entrar na faculdade, enquanto que um aluno de família com renda superior a R$40 mil per capita tem chance de 40%. É justo cobrar da parcela mais pobre da sociedade por um serviço público que dificilmente lhe será entregue?

Na ocasião, peço licença, amigo leitor, para um breve panorama geral antes de voltar à questão específica da mensalidade universitária em si, mas é preciso atestar: o dinheiro acabou. Nos últimos anos, o Brasil fez uma série de escolhas que, hoje, cobram sua fatura. O Estado brasileiro já gasta - conforme manda a lei - mais do que arrecada. As despesas obrigatórias já superam mais de 105% da receita líquida do governo. No orçamento, a fatia disponível para investimentos é cada vez menor. De acordo com o Instituto Fiscal Independente, a partir de 2025, o País já corre risco de ter recursos disponíveis em nível inferior ao que se considera o mínimo necessário para o funcionamento da administração pública. E, nas universidades públicas, por sua vez, o quadro é bastante similar (e igualmente crítico): o orçamento das instituições de ensino já é consumido quase que em 90% por folha de pagamento - o que, por tabela, implica na falta de recursos para investimento em infraestrutura, pesquisa e desenvolvimento de ponta, ou até mesmo manutenção de mais bolsas para o sustento de alunos de menor renda.

Haja vista nosso insustentável quadro fiscal e o perfil socioeconômico do alunato para o nível superior, a sociedade brasileira precisará encarar seus dilemas. Se a nossa população prefere pagar menos impostos, será necessário cortar e rever uma série de gastos públicos. Mas, se o povo insiste no atual modelo e elege políticos que defendem um Estado gastador, provedor de serviços públicos gratuitos para todos, será necessário aumentar impostos. Não tem outra saída, receio eu. O gasto público atual não se sustenta com aquilo que arrecadamos todos os anos. Mais justo, portanto, que pelo menos os usuários que podem pagar pelos serviços que usufruem assim o façam. Não há escapatória: ou se aumenta a carga tributária, ou se financia o gasto público via inflação. E, dentre as opções possíveis, a cobrança sobre o usuário com condições de pagar é aquela que menos gera distorções e injustiças.

O texto da PEC não deve esmiuçar os critérios de cobrança: caberá à legislação infraconstitucional e às próprias instituições a avaliação da capacidade de contribuição e renda média de cada aluno - desde que assegurada a gratuidade para quem não pode pagar. E, por menor que seja o montante pago em mensalidades daqueles que podem pagar em relação ao orçamento total da universidade, em terra de cego, quem tem olho é rei: qualquer centavo faz diferença para permitir investimentos em tecnologia quando quase a totalidade dos orçamentos atuais se consome com salários e aposentadorias. A proposta é clara: nenhuma mensalidade poderá ser cobrada daqueles que não têm condições, mas, com aquilo que for pago adicionalmente via cobrança, as instituições poderiam considerar alternativas como ampliar o número de vagas disponíveis, investir em melhores condições físicas e investir em tecnologia para beneficiar a totalidade de alunos.

Curiosamente, agora, aqueles tradicionais defensores da taxação das grandes fortunas e de maior cobrança de impostos sobre os mais ricos - aquela turma mais à gauche, como diria o filósofo - estão perplexos diante da possibilidade de se cobrar mensalidade dos filhos da elite brasileira. Quão estapafúrdia não seria a ideia de enviar um boleto ao fim do mês para uma família de alta renda custear o estudo universitário de seus filhos, uma vez que podem pagar, não é mesmo, meu caro amigo leitor?! Afinal, rico mesmo é meu vizinho.

Por André Bolini

O inferno são os outros. Sempre. E, no Brasil, os ricos também. Difícil mesmo é conhecer um conterrâneo que consiga ver em si mesmo suas próprias falhas e admita estar entre os mais abastados desta pobre sociedade tupiniquim. A frase com que começo o texto é de autoria de Jean-Paul Sartre. Em poucas palavras, o filósofo e escritor francês conseguiu satirizar uma característica comum à maioria esmagadora das pessoas: sua incapacidade de reconhecer as próprias falhas e assumir as consequências de seus próprios atos, de modo a, convenientemente, transferir a culpa para um terceiro. São os outros, afinal, que nos lembram como somos responsáveis por tudo o que fazemos. Já o adendo na terceira sentença deste parágrafo - sobre a riqueza alheia - é de minha autoria. Explico a seguir.

Se o meu querido amigo leitor estiver um tanto quanto cético em relação ao que digo, proponho-lhe de pronto um exercício: pergunte aos colegas de trabalho quem são os ricos do Brasil. Ainda que pertencendo aos 10% da população com mais patrimônio do País com renda mensal média a partir de R$3.500, a resposta de seu colega será algo como “os grandes empresários e investidores da bolsa” ou “os banqueiros e os mega fazendeiros”. Que dirá então dos 5% mais ricos do Brasil - do qual já se faz parte com renda média mensal a partir de R$10.500? Pode ter certeza: os ricos serão sempre os outros. E a verdade é que essa percepção faz toda diferença quando se discutem políticas públicas como a cobrança de mensalidades em universidades públicas. Os outros - mais ricos - que devem pagar - não eu!

Entrou em debate recente a Proposta de Emenda à Constituição 206 de 2019, cujo texto prevê cobrança de mensalidade nas universidades públicas para alunos de alta renda. O modelo já é seguido por países como Austrália, Canadá, Reino Unido, Itália, Japão e Israel e, aqui, no Brasil, busca corrigir as distorções criadas pela gratuidade generalizada - como o aumento da desigualdade social. Afinal, apesar de políticas afirmativas como cotas sociais e raciais terem aumentado a entrada de alunos de famílias mais pobres, oriundos da rede pública de ensino fundamental e médio, ainda prevalece nas faculdades, em grande medida, um perfil de aluno oriundo das melhores escolas da rede de ensino particular e com condições de custear - total ou parcialmente - sua graduação. De acordo com os dados do Ministério da Educação, nas universidades federais, apenas 14% dos alunos vieram de escolas públicas, enquanto a maioria esmagadora passou por escolas privadas.

A partir do momento que o custeio das faculdades públicas se faz majoritariamente pela arrecadação de tributos sobre o consumo (cujo caráter da tributação é regressivo, isto é, pesa mais sobre uma família com menor renda) e o perfil do alunato é majoritariamente oriundo de classes mais ricas, a universidade pública e gratuita torna-se uma máquina de desigualdade - drenando, proporcionalmente, recursos dos mais pobres em benefícios dos mais ricos. Lembre-se, pois: um aluno de família com renda per capita de R$250 mensais tem 2% de chance de entrar na faculdade, enquanto que um aluno de família com renda superior a R$40 mil per capita tem chance de 40%. É justo cobrar da parcela mais pobre da sociedade por um serviço público que dificilmente lhe será entregue?

Na ocasião, peço licença, amigo leitor, para um breve panorama geral antes de voltar à questão específica da mensalidade universitária em si, mas é preciso atestar: o dinheiro acabou. Nos últimos anos, o Brasil fez uma série de escolhas que, hoje, cobram sua fatura. O Estado brasileiro já gasta - conforme manda a lei - mais do que arrecada. As despesas obrigatórias já superam mais de 105% da receita líquida do governo. No orçamento, a fatia disponível para investimentos é cada vez menor. De acordo com o Instituto Fiscal Independente, a partir de 2025, o País já corre risco de ter recursos disponíveis em nível inferior ao que se considera o mínimo necessário para o funcionamento da administração pública. E, nas universidades públicas, por sua vez, o quadro é bastante similar (e igualmente crítico): o orçamento das instituições de ensino já é consumido quase que em 90% por folha de pagamento - o que, por tabela, implica na falta de recursos para investimento em infraestrutura, pesquisa e desenvolvimento de ponta, ou até mesmo manutenção de mais bolsas para o sustento de alunos de menor renda.

Haja vista nosso insustentável quadro fiscal e o perfil socioeconômico do alunato para o nível superior, a sociedade brasileira precisará encarar seus dilemas. Se a nossa população prefere pagar menos impostos, será necessário cortar e rever uma série de gastos públicos. Mas, se o povo insiste no atual modelo e elege políticos que defendem um Estado gastador, provedor de serviços públicos gratuitos para todos, será necessário aumentar impostos. Não tem outra saída, receio eu. O gasto público atual não se sustenta com aquilo que arrecadamos todos os anos. Mais justo, portanto, que pelo menos os usuários que podem pagar pelos serviços que usufruem assim o façam. Não há escapatória: ou se aumenta a carga tributária, ou se financia o gasto público via inflação. E, dentre as opções possíveis, a cobrança sobre o usuário com condições de pagar é aquela que menos gera distorções e injustiças.

O texto da PEC não deve esmiuçar os critérios de cobrança: caberá à legislação infraconstitucional e às próprias instituições a avaliação da capacidade de contribuição e renda média de cada aluno - desde que assegurada a gratuidade para quem não pode pagar. E, por menor que seja o montante pago em mensalidades daqueles que podem pagar em relação ao orçamento total da universidade, em terra de cego, quem tem olho é rei: qualquer centavo faz diferença para permitir investimentos em tecnologia quando quase a totalidade dos orçamentos atuais se consome com salários e aposentadorias. A proposta é clara: nenhuma mensalidade poderá ser cobrada daqueles que não têm condições, mas, com aquilo que for pago adicionalmente via cobrança, as instituições poderiam considerar alternativas como ampliar o número de vagas disponíveis, investir em melhores condições físicas e investir em tecnologia para beneficiar a totalidade de alunos.

Curiosamente, agora, aqueles tradicionais defensores da taxação das grandes fortunas e de maior cobrança de impostos sobre os mais ricos - aquela turma mais à gauche, como diria o filósofo - estão perplexos diante da possibilidade de se cobrar mensalidade dos filhos da elite brasileira. Quão estapafúrdia não seria a ideia de enviar um boleto ao fim do mês para uma família de alta renda custear o estudo universitário de seus filhos, uma vez que podem pagar, não é mesmo, meu caro amigo leitor?! Afinal, rico mesmo é meu vizinho.

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