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"Não existe uma rejeição aos extremos", diz João Victor Guedes-Neto

Instituto Millenium traz uma análise política do pesquisador e especialista em comportamento político, João Victor Guedes-Neto

Instituto Millenium traz uma análise política do pesquisador e especialista em comportamento político, João Victor Guedes-Neto
Instituto Millenium

Instituto Millenium

Publicado em 20 de outubro de 2023 às 10h50.

Última atualização em 20 de outubro de 2023 às 13h59.

Em um fim de semana intenso de atividade política global, vários países foram às urnas. Enquanto o Equador focava nas eleições presidenciais e legislativas, Polônia e Nova Zelândia voltaram-se para suas escolhas parlamentares, e a Austrália colocou em cheque a opinião pública através de um plebiscito. Diante deste cenário repleto de nuances e significados, surge a necessidade de uma análise profunda, que compreenda tanto as semelhanças quanto as particularidades de cada contexto. João Victor Guedes-Neto, pesquisador do CEPESP/FGV e especialista em comportamento político, mergulha conosco nesta empreitada de desvendar os movimentos políticos recentes. Com experiências anteriores no IPEA e na Kean University, João Victor apresenta uma visão detalhada e crítica, ajudando-nos a entender como a política global está se moldando.

Instituto Millenium: Dada a ascensão da centro-direita na Polônia, Equador e Nova Zelândia, estamos observando uma tendência global de rejeição aos extremos ou apenas reflexos das situações internas específicas de cada nação? Como essa tendência se relaciona com discussões mais amplas sobre retrocesso e resiliência democrática?

João Victor Guedes-Neto: Não existe uma rejeição aos extremos nem mesmo onde políticos de centro ganharam as eleições. O caso da Polônia deixa isso muito claro. Foram mais de 7,5 milhões de votos para a Direita Unida, coalizão nacionalista-conservadora encabeçada pelo partido Lei e Justiça (em polonês, PiS). Isso significa 35% dos votos em uma eleição com participação recorde. Além deles, a extrema-direita (Konfederacja Wolność i Niepodległość) obteve 7,2% dos votos.

A coalizão de centro-direita de Donald Tusk obteve 30,7% e só chegará ao poder por se unir aos blocos Terceira Via (cristãos-democratas) e A Esquerda (progressista), totalizando 53,7% dos votos. Obviamente, é o suficiente para se formar um governo no modelo parlamentarista, mas o resultado está longe de indicar uma rejeição aos extremos.

A eleição presidencial equatoriana também foi apertada e reforça que os extremos mantêm força política. No primeiro turno, Luisa González (apoiada pelo partido de extrema-esquerda de Rafael Correa) saiu na frente com 33,6% dos votos. No segundo turno, chegou a 48,2%, bem próxima de Daniel Noboa, candidato de centro-direita eleito presidente. Indo além, o partido de Correa fez 52 cadeiras no legislativo, enquanto a Ação Democrática Nacional de Noboa elegeu apenas 14.

Os radicais continuam fortes na Polônia, Equador e em várias outras partes do mundo democrático. O desafio para os democratas está em algo que Jean François-Revel

escreveu em “Como Terminam as Democracias” em 1983: o modelo democrático dá voz a todos, inclusive aos que querem o seu fim. Por isso, democratas precisam se manter ativos no “mercado de ideias”, oferecendo as melhores soluções para seus dilemas.

IM: A escolha contra a direita populista na Polônia e o revés do correísmo no Equador representam uma resposta a administrações anteriores ou um rechaço ao populismo? Como esses eventos recentes se posicionam no panorama político regional e mundial?

JVGN: O caso do Equador é bem particular. Quando Rafael Correa terminou seu mandato em 2017, seu partido Alianza País elegeu o presidente Lenín Moreno. Apesar da proximidade política, o novo governante se distanciou de Correa ao ponto de ser expulso do partido. Durante o governo, desfez políticas autoritárias do correísmo, por exemplo, eliminando a reeleição indefinida. Além disso, em tempo de crise, se aproximou do FMI e Banco Mundial—sempre demonizados pelo seu antecessor.

Seu sucessor, Guillermo Lasso, era um dos líderes históricos do Movimiento Creo, de direita. Havia concorrido contra Moreno em 2017 e se tornou presidente em 2021, quando derrotou o correísta Andrés Arauz. Apesar da derrota, o Alianza País se manteve forte politicamente e mobilizou diversos protestos de larga escala no Equador. Isso foi intensificado pela crise de segurança pela qual boa parte da América Latina passa e pela crise econômica gerada pela pandemia.

Isto para dizer que a eleição de Noboa não foi necessariamente um rechaço ao modelo de Rafael Correa, que já estava fora do governo há muitos anos. Obviamente, a extrema-esquerda se manteve forte durante todo este tempo e, mais uma vez, perdeu as eleições. Mas o governo anterior já tinha inspirações de centro-direita, bem como o futuro presidente.

Uma explicação paralela seria a opção pelo novo. Daniel Noboa tem 35 anos e uma carreira política de 2 anos como legislador. No entanto, seu pai, Álvaro Noboa, é extremamente conhecido: foi candidato presidencial por cinco vezes desde 1998 e é um dos homens mais ricos do país. É possível que, em um cenário onde os blocos mais tradicionais de esquerda e direita fracassaram, a população esteja apostando em uma cara nova com sobrenome antigo.

Essa escolha pelos “outsiders parciais” reflete algo que já vimos em várias democracias. Trump, por exemplo, sempre foi ativo politicamente, mas só chegou ao mainstream em 2017. Jair Bolsonaro era um deputado sem importância e virou presidente em 2019. Noboa não é um extremista como Trump e Bolsonaro. Além disso, a fama do sobrenome vem do seu pai. Ainda assim, é um “outsider parcial” que soube aproveitar a crise dos partidos tradicionais. Isto definitivamente representa a

tendência dos tempos modernos, onde mídias sociais aliadas à insatisfação com a política produzem novos líderes com uma velocidade incrível.

O caso da Polônia é diferente. Donald Tusk, líder da Plataforma Cívica, foi primeiro-ministro do país entre 2007 e 2014. Entregou o cargo para sua co-partidária para se tornar presidente do Conselho Europeu, cargo que ocupou até 2019. Sempre foi parte do mainstream e retorna ao poder em conjunto com outros políticos experientes, como Kosiniak-Kamysz (seu antigo Ministro do Trabalho em 2011-2015). O bloco também conta com outsiders, mas ele é essencialmente uma vitória da oposição à extrema-direita.

IM: A negação do plebiscito "The Voice" na Austrália e a vitória da centro-direita na Polônia sobre a direita nacionalista indicam resistência às políticas de identidade. Qual é a sua visão sobre o papel da política identitária no cenário de mudança política global atual?

JVGN: A política identitária sempre esteve presente. O novo é quem está sendo chamado de identitário. Os Cristão-Democratas, por exemplo, surgiram como um movimento identitário católico em resposta ao fortalecimento do discurso laico crescente entre os liberais europeus do século 19. Essa história é discutida em um livro de Stathis Kalyvas. Os partidos não eram chamados de “identitários” porque a etiqueta não existia, mas representavam uma identidade prevalente no dia a dia da sociedade.

Isso é comparável aos movimentos indígenas que temos em boa parte da América Latina. Raúl Madrid escreveu, entre outros casos, sobre o que aconteceu na Bolívia. Evo Morales coordenava um movimento identitário étnico e foi habilidoso ao realizar coalizões com outros grupos para chegar à presidência do país. Será que são diferentes dos identitários católicos na Europa do século 19? Aliás, os partidos cristão-democratas continuam vivos e fortes. Angela Merkel, ex-primeira-ministra alemã, era líder da União Democrata-Cristã.

O que acontece, no entanto, é uma mudança das clivagens e do peso de cada um desses grupos identitários. Enquanto os grupos tradicionais perdem força, outros começam a se tornar politicamente relevantes. Alguns deles pela mobilização de populações que já eram majoritárias, mas não tinham espaço, e outros a partir de coalizões com grupos maiores.

As mulheres, por exemplo, compõem por volta de 50% dos eleitorados do mundo democrático, mas até pouco tempo eram privadas da participação democrática. Nos Estados Unidos, os negros não são maioria, mas representam boa parte da população. Ainda assim, o sufrágio universal, incluindo mulheres negras, só foi aprovado em 1965. É natural que estas mudanças tragam novas identidades para a política.

Existem pelo menos dois desafios nesta questão. O primeiro é o movimento identitário extremista. O partido de extrema-direita da Polônia, por exemplo, ataca frequentemente todos aqueles que não compartilham da sua “identidade polonesa”. Isso leva a uma política radical anti-imigração que prejudica, inclusive, os estrangeiros que já estão estabelecidos no país. O mesmo movimento identitário de direita é prevalente na França, Alemanha, e vários outros países.

O segundo problema é o cabo de guerra entre novos e velhos identitários. Existe uma polarização política crescente que se maximiza uma vez que os polos políticos colocam suas identidades como antagônicas. Liliana Mason, professora americana, mostra como isso influencia a relação entre democratas e republicanos. Na média, os partidários são diferentes na origem racial e étnica, nos locais de residência, no gênero... No fim das contas, democratas frequentam o Starbucks, dirigem um Prius e ouvem música pop. Os republicanos, do outro lado, vão ao Dunkin Donuts, têm uma pick-up na garagem e apreciam música country. Não existe mais ponto comum e qualquer debate vira questão de vida ou morte.

No final das contas, o mais difícil é esperar uma conciliação entre os grupos que estão cada vez mais entrincheirados, seja na Austrália, na Polônia, ou nos Estados Unidos.

IM: Os resultados na Polônia e na Nova Zelândia insinuam a importância das coalizões. Em ambos os contextos, agrupamentos com orientações políticas distintas terão que negociar para consolidar maiorias. Na Polônia, os dois partidos minoritários da potencial coalizão opositora têm posições bem distintas. Na Nova Zelândia, o minoritário ACT tem uma orientação libertária que se distingue do conservadorismo do Partido Nacional. Em sua opinião, como esse fenômeno de formação de coalizões afeta a governabilidade e a estabilidade política, tanto nesses países quanto em um contexto mais amplo?

JVGN: Em boa parte do mundo parlamentarista, essas coalizões são comuns. Muitas vezes existem alianças históricas que sempre se repetem para formar governos. Em outros casos, os partidos menores observam oportunidades para implementar sua agenda de governo. Na Alemanha, por exemplo, o Partido Liberal Democrata já formou governos tanto com a centro-esquerda como com a centro-direita. A decisão variava de acordo com as preferências dos liberais da época e com as promessas feitas pelo partido líder da coalizão. Essa barganha é comum e saudável para as democracias. Ela impede políticas radicais e garante maior estabilidade ao país.

Por outro lado, nem sempre é possível cumprir com tudo que foi acordado pela coalizão. Os liberais alemães geralmente atingem entre 5 e 10% do parlamento. Em 2009, chegou a 14,6% das cadeiras, prometendo redução massiva da carga tributária. Formou governo com a centro-direita e, por conta da crise, o governo não entregou. Os liberais e não a centro direita receberam a culpa. Em 2013, o partido ficou abaixo da cláusula de barreira e saiu do parlamento.

O cenário sempre é mais difícil para os partidos minoritários da coalizão. Recebem menos espaço no governo, menos ministérios e têm pouco poder de barganha. É comum que percam espaço em eleições subsequentes. Ainda assim, vale fazer parte do governo se conseguirem implementar pelo menos algum dos itens de sua agenda. Este será o desafio da Associação de Consumidores e Pagadores de Impostos (ACT) no novo governo neozelandês.

IM: No passado, já tivemos a influência de países distantes. O regime de Metas de Inflação da Nova Zelândia em 1990, por exemplo, foi inspiração para o nosso. Existem políticas públicas específicas que pautaram essas eleições e que poderiam influenciar países como o Brasil?

JVGN: Está muito cedo para dizer. Infelizmente, programa eleitoral e prática governamental muitas vezes são mundos distantes. Isto não é exclusividade do Brasil. A grande lição, neste momento, é que o centro democrático pode ganhar eleições por diferentes vias. Em alguns casos, como no Equador, serão “outsiders parciais”. Em outros, vide o caso polonês, serão os partidos e políticos que já conhecíamos há tempos.

O desafio, mais uma vez, é garantir pluralidade política e respeitar a normalidade democrática mesmo quando nossos opositores estiverem no poder. Isto não significa, no entanto, que os insatisfeitos devam se calar. Pelo contrário, a oposição responsável é parte necessária de qualquer regime democrático.

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Em um fim de semana intenso de atividade política global, vários países foram às urnas. Enquanto o Equador focava nas eleições presidenciais e legislativas, Polônia e Nova Zelândia voltaram-se para suas escolhas parlamentares, e a Austrália colocou em cheque a opinião pública através de um plebiscito. Diante deste cenário repleto de nuances e significados, surge a necessidade de uma análise profunda, que compreenda tanto as semelhanças quanto as particularidades de cada contexto. João Victor Guedes-Neto, pesquisador do CEPESP/FGV e especialista em comportamento político, mergulha conosco nesta empreitada de desvendar os movimentos políticos recentes. Com experiências anteriores no IPEA e na Kean University, João Victor apresenta uma visão detalhada e crítica, ajudando-nos a entender como a política global está se moldando.

Instituto Millenium: Dada a ascensão da centro-direita na Polônia, Equador e Nova Zelândia, estamos observando uma tendência global de rejeição aos extremos ou apenas reflexos das situações internas específicas de cada nação? Como essa tendência se relaciona com discussões mais amplas sobre retrocesso e resiliência democrática?

João Victor Guedes-Neto: Não existe uma rejeição aos extremos nem mesmo onde políticos de centro ganharam as eleições. O caso da Polônia deixa isso muito claro. Foram mais de 7,5 milhões de votos para a Direita Unida, coalizão nacionalista-conservadora encabeçada pelo partido Lei e Justiça (em polonês, PiS). Isso significa 35% dos votos em uma eleição com participação recorde. Além deles, a extrema-direita (Konfederacja Wolność i Niepodległość) obteve 7,2% dos votos.

A coalizão de centro-direita de Donald Tusk obteve 30,7% e só chegará ao poder por se unir aos blocos Terceira Via (cristãos-democratas) e A Esquerda (progressista), totalizando 53,7% dos votos. Obviamente, é o suficiente para se formar um governo no modelo parlamentarista, mas o resultado está longe de indicar uma rejeição aos extremos.

A eleição presidencial equatoriana também foi apertada e reforça que os extremos mantêm força política. No primeiro turno, Luisa González (apoiada pelo partido de extrema-esquerda de Rafael Correa) saiu na frente com 33,6% dos votos. No segundo turno, chegou a 48,2%, bem próxima de Daniel Noboa, candidato de centro-direita eleito presidente. Indo além, o partido de Correa fez 52 cadeiras no legislativo, enquanto a Ação Democrática Nacional de Noboa elegeu apenas 14.

Os radicais continuam fortes na Polônia, Equador e em várias outras partes do mundo democrático. O desafio para os democratas está em algo que Jean François-Revel

escreveu em “Como Terminam as Democracias” em 1983: o modelo democrático dá voz a todos, inclusive aos que querem o seu fim. Por isso, democratas precisam se manter ativos no “mercado de ideias”, oferecendo as melhores soluções para seus dilemas.

IM: A escolha contra a direita populista na Polônia e o revés do correísmo no Equador representam uma resposta a administrações anteriores ou um rechaço ao populismo? Como esses eventos recentes se posicionam no panorama político regional e mundial?

JVGN: O caso do Equador é bem particular. Quando Rafael Correa terminou seu mandato em 2017, seu partido Alianza País elegeu o presidente Lenín Moreno. Apesar da proximidade política, o novo governante se distanciou de Correa ao ponto de ser expulso do partido. Durante o governo, desfez políticas autoritárias do correísmo, por exemplo, eliminando a reeleição indefinida. Além disso, em tempo de crise, se aproximou do FMI e Banco Mundial—sempre demonizados pelo seu antecessor.

Seu sucessor, Guillermo Lasso, era um dos líderes históricos do Movimiento Creo, de direita. Havia concorrido contra Moreno em 2017 e se tornou presidente em 2021, quando derrotou o correísta Andrés Arauz. Apesar da derrota, o Alianza País se manteve forte politicamente e mobilizou diversos protestos de larga escala no Equador. Isso foi intensificado pela crise de segurança pela qual boa parte da América Latina passa e pela crise econômica gerada pela pandemia.

Isto para dizer que a eleição de Noboa não foi necessariamente um rechaço ao modelo de Rafael Correa, que já estava fora do governo há muitos anos. Obviamente, a extrema-esquerda se manteve forte durante todo este tempo e, mais uma vez, perdeu as eleições. Mas o governo anterior já tinha inspirações de centro-direita, bem como o futuro presidente.

Uma explicação paralela seria a opção pelo novo. Daniel Noboa tem 35 anos e uma carreira política de 2 anos como legislador. No entanto, seu pai, Álvaro Noboa, é extremamente conhecido: foi candidato presidencial por cinco vezes desde 1998 e é um dos homens mais ricos do país. É possível que, em um cenário onde os blocos mais tradicionais de esquerda e direita fracassaram, a população esteja apostando em uma cara nova com sobrenome antigo.

Essa escolha pelos “outsiders parciais” reflete algo que já vimos em várias democracias. Trump, por exemplo, sempre foi ativo politicamente, mas só chegou ao mainstream em 2017. Jair Bolsonaro era um deputado sem importância e virou presidente em 2019. Noboa não é um extremista como Trump e Bolsonaro. Além disso, a fama do sobrenome vem do seu pai. Ainda assim, é um “outsider parcial” que soube aproveitar a crise dos partidos tradicionais. Isto definitivamente representa a

tendência dos tempos modernos, onde mídias sociais aliadas à insatisfação com a política produzem novos líderes com uma velocidade incrível.

O caso da Polônia é diferente. Donald Tusk, líder da Plataforma Cívica, foi primeiro-ministro do país entre 2007 e 2014. Entregou o cargo para sua co-partidária para se tornar presidente do Conselho Europeu, cargo que ocupou até 2019. Sempre foi parte do mainstream e retorna ao poder em conjunto com outros políticos experientes, como Kosiniak-Kamysz (seu antigo Ministro do Trabalho em 2011-2015). O bloco também conta com outsiders, mas ele é essencialmente uma vitória da oposição à extrema-direita.

IM: A negação do plebiscito "The Voice" na Austrália e a vitória da centro-direita na Polônia sobre a direita nacionalista indicam resistência às políticas de identidade. Qual é a sua visão sobre o papel da política identitária no cenário de mudança política global atual?

JVGN: A política identitária sempre esteve presente. O novo é quem está sendo chamado de identitário. Os Cristão-Democratas, por exemplo, surgiram como um movimento identitário católico em resposta ao fortalecimento do discurso laico crescente entre os liberais europeus do século 19. Essa história é discutida em um livro de Stathis Kalyvas. Os partidos não eram chamados de “identitários” porque a etiqueta não existia, mas representavam uma identidade prevalente no dia a dia da sociedade.

Isso é comparável aos movimentos indígenas que temos em boa parte da América Latina. Raúl Madrid escreveu, entre outros casos, sobre o que aconteceu na Bolívia. Evo Morales coordenava um movimento identitário étnico e foi habilidoso ao realizar coalizões com outros grupos para chegar à presidência do país. Será que são diferentes dos identitários católicos na Europa do século 19? Aliás, os partidos cristão-democratas continuam vivos e fortes. Angela Merkel, ex-primeira-ministra alemã, era líder da União Democrata-Cristã.

O que acontece, no entanto, é uma mudança das clivagens e do peso de cada um desses grupos identitários. Enquanto os grupos tradicionais perdem força, outros começam a se tornar politicamente relevantes. Alguns deles pela mobilização de populações que já eram majoritárias, mas não tinham espaço, e outros a partir de coalizões com grupos maiores.

As mulheres, por exemplo, compõem por volta de 50% dos eleitorados do mundo democrático, mas até pouco tempo eram privadas da participação democrática. Nos Estados Unidos, os negros não são maioria, mas representam boa parte da população. Ainda assim, o sufrágio universal, incluindo mulheres negras, só foi aprovado em 1965. É natural que estas mudanças tragam novas identidades para a política.

Existem pelo menos dois desafios nesta questão. O primeiro é o movimento identitário extremista. O partido de extrema-direita da Polônia, por exemplo, ataca frequentemente todos aqueles que não compartilham da sua “identidade polonesa”. Isso leva a uma política radical anti-imigração que prejudica, inclusive, os estrangeiros que já estão estabelecidos no país. O mesmo movimento identitário de direita é prevalente na França, Alemanha, e vários outros países.

O segundo problema é o cabo de guerra entre novos e velhos identitários. Existe uma polarização política crescente que se maximiza uma vez que os polos políticos colocam suas identidades como antagônicas. Liliana Mason, professora americana, mostra como isso influencia a relação entre democratas e republicanos. Na média, os partidários são diferentes na origem racial e étnica, nos locais de residência, no gênero... No fim das contas, democratas frequentam o Starbucks, dirigem um Prius e ouvem música pop. Os republicanos, do outro lado, vão ao Dunkin Donuts, têm uma pick-up na garagem e apreciam música country. Não existe mais ponto comum e qualquer debate vira questão de vida ou morte.

No final das contas, o mais difícil é esperar uma conciliação entre os grupos que estão cada vez mais entrincheirados, seja na Austrália, na Polônia, ou nos Estados Unidos.

IM: Os resultados na Polônia e na Nova Zelândia insinuam a importância das coalizões. Em ambos os contextos, agrupamentos com orientações políticas distintas terão que negociar para consolidar maiorias. Na Polônia, os dois partidos minoritários da potencial coalizão opositora têm posições bem distintas. Na Nova Zelândia, o minoritário ACT tem uma orientação libertária que se distingue do conservadorismo do Partido Nacional. Em sua opinião, como esse fenômeno de formação de coalizões afeta a governabilidade e a estabilidade política, tanto nesses países quanto em um contexto mais amplo?

JVGN: Em boa parte do mundo parlamentarista, essas coalizões são comuns. Muitas vezes existem alianças históricas que sempre se repetem para formar governos. Em outros casos, os partidos menores observam oportunidades para implementar sua agenda de governo. Na Alemanha, por exemplo, o Partido Liberal Democrata já formou governos tanto com a centro-esquerda como com a centro-direita. A decisão variava de acordo com as preferências dos liberais da época e com as promessas feitas pelo partido líder da coalizão. Essa barganha é comum e saudável para as democracias. Ela impede políticas radicais e garante maior estabilidade ao país.

Por outro lado, nem sempre é possível cumprir com tudo que foi acordado pela coalizão. Os liberais alemães geralmente atingem entre 5 e 10% do parlamento. Em 2009, chegou a 14,6% das cadeiras, prometendo redução massiva da carga tributária. Formou governo com a centro-direita e, por conta da crise, o governo não entregou. Os liberais e não a centro direita receberam a culpa. Em 2013, o partido ficou abaixo da cláusula de barreira e saiu do parlamento.

O cenário sempre é mais difícil para os partidos minoritários da coalizão. Recebem menos espaço no governo, menos ministérios e têm pouco poder de barganha. É comum que percam espaço em eleições subsequentes. Ainda assim, vale fazer parte do governo se conseguirem implementar pelo menos algum dos itens de sua agenda. Este será o desafio da Associação de Consumidores e Pagadores de Impostos (ACT) no novo governo neozelandês.

IM: No passado, já tivemos a influência de países distantes. O regime de Metas de Inflação da Nova Zelândia em 1990, por exemplo, foi inspiração para o nosso. Existem políticas públicas específicas que pautaram essas eleições e que poderiam influenciar países como o Brasil?

JVGN: Está muito cedo para dizer. Infelizmente, programa eleitoral e prática governamental muitas vezes são mundos distantes. Isto não é exclusividade do Brasil. A grande lição, neste momento, é que o centro democrático pode ganhar eleições por diferentes vias. Em alguns casos, como no Equador, serão “outsiders parciais”. Em outros, vide o caso polonês, serão os partidos e políticos que já conhecíamos há tempos.

O desafio, mais uma vez, é garantir pluralidade política e respeitar a normalidade democrática mesmo quando nossos opositores estiverem no poder. Isto não significa, no entanto, que os insatisfeitos devam se calar. Pelo contrário, a oposição responsável é parte necessária de qualquer regime democrático.

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