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Jurisdições especiais: o caso das cidades privadas

Sob um bom arranjo destes seis pilares, uma cidade privada pode ser um poderoso instrumento para o desenvolvimento econômico

Blumenau: cidade é parte do Polo de Tecnologia da Informação de Santa Catarina (SandroSalomon/Thinkstock)
Blumenau: cidade é parte do Polo de Tecnologia da Informação de Santa Catarina (SandroSalomon/Thinkstock)

Hermann Bruno Otto Blumenau ou, apenas Hermann Blumenau, é conhecido como o fundador da colônia de Blumenau, em Santa Catarina. Oficialmente, sua fundação data de 02 de setembro de 1850, mas o próprio fundador considerava 28 de agosto de 1852, pois foi nesta data que distribuiu os primeiros lotes de terra, conforme informa-nos Mariana Deschamps, em sua dissertação de mestrado sobre a vida cotidiana dos colonos desta famosa cidade. 

Neste mesmo trabalho aprendemos que, inicialmente, Blumenau apresentou o projeto da colônia à Assembléia Legislativa do estado em nome da alemã Companhia Protetora dos Emigrados Alemães de Hamburgo. Enquanto aguardava a aprovação (que não veio, mesmo com o pagamento de propinas), o empreendedor comprou terras e conseguiu algumas por doações do governo ao qual, aliás, nunca deixou de pedir (e de receber) algum auxílio. 

A colônia existiu sob sua gestão por cerca de 10 anos. Sua população aumentou em cinco anos, mas, a partir de 1855, a situação econômica deteriorou-se por conta de chuvas e enchentes. Em 1860, o governo brasileiro comprou e passou a gerenciar a colônia, mantendo Blumenau com funções administrativas: o empresário transformou-se em um servidor público. 

O resumo dos primeiros anos de Blumenau não é um caso isolado na história. Como nos lembra o recente relatório do Banco Mundial editado por Yuei Li e Martin Rama, Private Cities: Outstanding Examples from Developing Countries and Their Implications for Urban Policy. Urban Development Series, cidades privadas um tipo de jurisdição que sociedades podem usar para gerar desenvolvimento urbano e, claro, socioeconômico. 

Um dos produtos deste relatório é a proposta de um protocolo de política urbana para estas cidades, composto de 6 itens: (1) potencial locacional; (2) papel dos atores privados; (3) funções governamentais; (4) captura do valor da terra; (5) incentivos e regulações; (6) cumprimento dos contratos. Vejamos cada um deles. 

Colônias como Blumenau não parecem ter sido fundadas com base no potencial locacional. Visava-se proteger o território, principalmente de ataques de indígenas e o incentivo para trazer colonos, para as empresas, eram os descontos nas tarifas de ancoragem nos portos brasileiros. Entretanto, a localização de uma nova cidade não prescinde de infraestrutura, cidades próximas, potencial de turismo ou mesmo da existência de recursos naturais (e.g., minérios). 

A atuação dos atores privados consiste em sua capacidade de atuar na criação e/ou manutenção de infra-estrutura da nova cidade. Quanto mais eficiente, relativamente à ação governamental, maior deveria ser o seu papel na gestão da cidade. Por exemplo, um estudo de 1993, dos economistas De Long e Shleifer, mostrou que, antes da Revolução Industrial, cidades europeias governadas por comerciantes foram mais prósperas que as governadas por príncipes. 

Quanto às funções do governo, elas não deveriam ser a de socorrer empreendedores malsucedidos como Blumenau. O governo deve vencer o espírito hesitocrático, ser ágil e eficiente. A chave está em uma honesta avaliação sobre quem tem vantagem comparativa em certa atividade essencial ao desenvolvimento urbano: o governo ou o setor privado?  

A propósito, o arranjo público-privado está inevitavelmente ligado aos três últimos itens do protocolo. Primeiramente, o relatório nos dá vários exemplos de como a ‘captura’ do valor da terra pode ocorrer em cidades privadas e seu desenho é função direta do alinhamento dos interesses entre os diversos agentes governamentais (burocratas, políticos, poder judiciário) e privados. Trata-se de uma parceria público-privada que deve se basear em algum critério de custo-benefício social no qual a sociedade, obviamente, tenha ganhos líquidos.  

Além disso, o texto de Li e Rama parece imputar ao setor privado a maior parte da culpa das externalidades, aumentando a demanda por regulações. Ora, o leitor que compartilha comigo o orgulho e o fardo de ser brasileiro está acostumado com as notícias sobre o descumprimento de legislações ambientais ou sociais por parte do poder público. Sim, a regulação criada pelo setor público pode gerar externalidades. A moderna Economia Política nos lembra que não existem apenas falhas de mercado, mas também de governo. Estas últimas, muitas vezes, causam as primeiras (e.g. leis que criam privilégios). 

Quanto ao cumprimento de contratos, o relatório se aproxima da solução proposta por Paul Romer, especificamente de sua ideia de charter cities. Neste tipo de cidade – que pode ou não ser privada – há a adoção de um código legal diferente do vigente no país. A ideia é que isto valeria a pena se, comparado com a lei do país na solução de disputas, seu benefício-custo fosse maior. De forma mais branda, Li e Rama falam no envolvimento de ‘parceiros estrangeiros’ que podem ser, inclusive, instituições multinacionais que bem podem ser o próprio Banco Mundial, o FMI etc.  

Sob um bom arranjo destes seis pilares, uma cidade privada pode ser um poderoso instrumento para o desenvolvimento econômico. Simples? Talvez. Fácil? Não, mas vale a pena.