Exame Logo

Cidades têm chance de corrigir distorções em planos diretores

Veja a entrevista com o arquiteto e urbanista Anthony Ling, fundador e editor-chefe do site Caos Planejado

(Arquivo pessoal/Divulgação)
DR

Da Redação

Publicado em 12 de abril de 2023 às 13h53.

Última atualização em 12 de abril de 2023 às 15h38.

Anthony Ling é arquiteto, urbanista e pesquisador, conhecido por seu trabalho como fundador e editor-chefe do Caos Planejado, site que reúne artigos, entrevistas e informações sobre urbanismo, com foco nas cidades brasileiras. Ele estará neste sábado (15), em Porto Alegre, para participar da VII Conferência Atlantos, que esse ano trará a temática do futuro das cidades, abordando urbanismo e mobilidade urbana, sob a perspectiva da liberdade. Nesta entrevista para o Instituto Millenium, ele contou um pouco do que pensa sobre as questões urbanísticas das cidades brasileiras e os principais desafios que as cidades precisam enfrentar na atualização de seus planos diretores. Confira!

Como você avalia a atual situação do planejamento urbano no Brasil? Esse ano, muitas cidades revisarão seus planos diretores. Quais os principais desafios que os gestores públicos precisam enfrentar nessa área?

Anthony Ling - Nosso planejamento urbano atual, via de regra, tem uma inversão de prioridades: foca muito na regulação dos espaços privados e pouco no planejamento e gestão dos espaços públicos. A começar pela expansão urbana, praticamente toda expansão da malha viária é feita através de projetos privados de loteamento, aprovados um a um, sem um planejamento de longo prazo sobre quais áreas devemos avançar e como. Evidentemente, a ausência de diretrizes claras aliada à baixa fiscalização, principalmente em áreas periféricas, leva à proliferação de loteamentos e ocupações irregulares que, na prática, acabam sendo consolidados como parte do desenvolvimento urbano. Há também um descaso histórico com gestão e manutenção dos espaços públicos existentes. Será que estamos usando os recursos adequadamente, permitindo estacionamento de veículos privados gratuitamente ou a um custo irrisório? Como deve ser feita a expansão de ciclovias, de corredores de ônibus, de calçadas? Por que a calçada, um espaço tão público quanto o leito carroçável, é desenhada e mantida pelos proprietários dos imóveis adjacentes? Por que existe uma ineficácia tão grande em tarefas básicas, como a zeladoria de parques e praças ou da ocupação de baixos de viadutos? Em um paradigma ainda mais grave, como o Estado deve investir e interferir em favelas atualmente desprovidas de infraestrutura física e social, como deve regularizar esses territórios para diminuir o abismo que existe hoje entre cidade formal e informal? Essas questões, inerentemente de natureza pública, são praticamente inexistentes do debate do planejamento urbano nas cidades brasileiras e não há atualmente atores responsáveis por pensar como endereçá-las.

Em contrapartida, gastamos maior parte do tempo do chamado “debate urbanístico” de uma cidade discutindo a quantidade de andares ou que atividades devem ou não ser permitidas em cada lote privado, que é uma decisão essencialmente privada e que já conta com uma série de atores privados no processo decisório, desde arquitetos aos incorporadores e os ocupantes finais das edificações.

Outra lacuna é a ausência de dados para guiar o processo de planejamento e gestão urbana. Indicadores imobiliários, por exemplo, fundamentais para entender a acessibilidade à moradia em uma determinada cidade, não são medidos pelo setor público, mas sim por diferentes agentes do setor privado para fins mercadológicos, ou seja, não de forma aberta para auxiliar o planejamento urbano. A ausência de dados torna as discussões a respeito de urbanismo uma “guerra de narrativas” sem embasamento em evidências, ou seja, sem avaliar causa-efeito de políticas públicas implementadas no passado, sem entendermos onde estão os acertos e os erros, e tornando cada discussão de planejamento como se a cidade estivesse sendo construída do zero.

Assim, entendo que gestores públicos deveriam buscar ampliar seus corpos técnicos na consolidação e organização de dados que possam guiar o processo de planejamento e gestão urbana, assim como mudar radicalmente seu foco para o planejamento e gestão dos espaços públicos e implantação de infraestrutura, adotando uma postura de monitoramento em relação ao espaço privado.

Adensamento urbano é problema ou solução?

AL - Nem um, nem outro. A densidade por si só é apenas um indicador e não deve ser entendida como problema ou solução, sendo uma distração tratar do tema nesse sentido. Nas grandes cidades brasileiras, os bairros mais densos normalmente são os menos verticais: são favelas ou bairros que cresceram informalmente, onde as construções são coladas umas nas outras, e onde o espaço construído per capita é pequeno. Temos muitos bairros altamente verticalizados com densidades surpreendentemente baixas, à medida que os edifícios são torres isoladas entre si, com amplas áreas livres condominiais ao seu redor, e onde as unidades são grandes e as famílias, pequenas. Temos um paradigma curioso onde densidade ocorre sem verticalização e vice versa, em grande parte, resultado (ou consequência) das nossas regulações urbanísticas da cidade formal.

Como a mobilidade urbana pode ser pensada dentro do contexto do planejamento urbano? Quais as melhores práticas que podem ser adotadas para melhorar a qualidade do transporte nas cidades?

AL - A mobilidade urbana ainda é vista, na maioria das prefeituras, como um trabalho essencialmente viário, com objetivo de dar maior fluxo de trânsito ao automóvel individual, investindo centenas de milhões de reais na ampliação viária, na forma de alargamentos, túneis e viadutos. Ou seja, a demanda por espaço gerada pelo uso do automóvel individual, o meio de transporte que mais exige espaço, não tem mecanismo de preço para equilíbrio, sendo adotada uma postura de reagir com mais oferta através de recursos públicos e destruindo os tecidos urbanos, muitas vezes com desapropriações de populações de baixa renda, no processo. Como respondido na primeira questão, é preciso um foco maior no entendimento do uso da infraestrutura e do espaço público. O espaço viário não é bem utilizado, normalmente priorizando o uso do automóvel individual: apesar de ser uma propriedade 100% privada, ocupa espaços públicos de forma indiscriminada, gerando não apenas uma ineficiência no uso do espaço, assim como também pode ser compreendido como uma renúncia fiscal do poder público, ao não atribuir um preço ou uma tarifa por este uso, que é a regra em todas as outras infraestruturas urbanas, desde água à energia elétrica.

Na ausência de mecanismos de precificação, inicialmente cobrando pelo serviço de estacionamento em via pública, mas também possivelmente pensando em mecanismos de taxa de congestionamento, ou pedágio urbano, é preciso pensar na reorganização do espaço viário, como na implantação de faixas exclusivas de ônibus, que tem o mesmo objetivo de mitigar o subsídio atualmente concedido ao automóvel, assim como em toda cadeia de transporte ativo que leva ao transporte público, essencialmente as calçadas e, quando possível, as ciclovias. No lado regulatório, é preciso repensar os contratos de concessões de transporte público, focando em métricas operacionais, assim como revisar a proibição histórica do chamado “transporte alternativo” de vans e lotações, que cumpriam e ainda cumprem um papel essencial no sistema de transportes, de forma a regulamentar e incorporar o serviço ao leque de opções de transporte dos usuários.

Quais são as principais tendências em urbanismo no mundo que estão em linha com o que você acredita serem boas soluções para as cidades brasileiras?

AL - Sinceramente, eu não acredito em seguir “tendências” de urbanismo. Esta palavra é usada com frequência, como se estivéssemos falando de tendências de estilos na produção arquitetônica, só que para a produção de cidades, ou na última moda de dieta para perder peso que, na realidade, tem pouco respaldo na literatura científica da área da saúde e que pode até prejudicar a saúde de quem adota. Esta abordagem é equivocada. O urbanismo deveria ser encarado como uma ciência que possui um arcabouço de evidências teóricas e práticas bastante robustas que devem nos ajudar a nortear nossas tomadas de decisões em relação às cidades. A discussão sobre tendências apenas exacerba a “guerra de narrativas” que mencionei na primeira pergunta.

Como a pandemia da Covid-19 afetou o planejamento urbano e as políticas de mobilidade nas cidades brasileiras? Quais os impactos a longo prazo que podemos esperar na forma como as cidades são planejadas e gerenciadas?

AL - No que pude acompanhar, os processos de planejamento urbano foram prejudicados pela pandemia, no sentido de impossibilitar o processo participativo presencial, que normalmente caracteriza a participação democrática no planejamento urbano, com muitas revisões de planos diretores sendo adiadas por este motivo. No que tange a dados, que comentei nas respostas anteriores, tivemos o adiamento do Censo, que tem sido uma ferramenta importantíssima no entendimento das cidades e que ajuda a balizar decisões de planejamento em diversos municípios. Na mobilidade urbana, o fator mais crítico foi o colapso dos sistemas de transporte público, que viram o número de passageiros – e, consequentemente, sua receita – despencar durante a pandemia, agravando em um curto período de tempo a sangria financeira que esses sistemas já estavam sofrendo antes da pandemia. A resposta que muitas dessas cidades tiveram foi o socorro emergencial exclusivamente financeiro desses sistemas, para que os ônibus continuassem funcionando. No entanto, o que poderia ser uma oportunidade para reorganizar as concessões sob novas bases de eficiência operacional, trazendo benefícios no longo prazo, foi o contrário do esperado. No pós-pandemia temos visto pouco ou nenhum avanço nesse aspecto, com subsídios às operações em patamares insustentáveis para as finanças municipais se tornando permanentes, não apenas endereçando o caráter emergencial da pandemia.

Durante a pandemia, algumas cidades também aproveitaram o momento propício para testar ciclovias temporárias e outras formas de adaptação urbana para a mobilidade, mas acredito que mais oportunidades foram desperdiçadas do que de fato utilizadas nos anos de pandemia.

Como a tecnologia pode ser utilizada para melhorar o planejamento urbano e a gestão das cidades? Quais são as principais ferramentas e soluções tecnológicas que podem ser adotadas nesse contexto?

AL - Tecnologias computacionais, de geoprocessamento e de mapeamento e ferramentas de gestão e de comunicação já estão disponíveis há décadas, assim como a ferramenta mais usual de todas, o computador. Não vejo elas sendo o principal gargalo para o planejamento e a gestão das cidades. Evidentemente que o custo dessas ferramentas diminuiu ao longo dos anos, mas o mais importante é ter claro que objetivos devem ser atingidos e como utilizar as ferramentas já existentes para atingir esses objetivos.

O planejamento urbano é incompatível com a liberdade? Acredita que é possível conciliar o zoneamento com as vontades e preferências das pessoas para determinadas áreas?

AL - Não acho que o debate sobre planejamento urbano sob a ótica da “liberdade” seja resolutivo. O problema de determinar a priori um “zoneamento”, que defino aqui como a regulação de usos e ocupações de terrenos privados em todo o território de uma cidade, surge, pois essas determinações normalmente são subjetivas e distorcem a alocação de espaço construído e de atividades – de pessoas, de empregos e, assim, também de deslocamentos. A alocação de atividades e de espaços, seja através do mercado imobiliário ou dos usos que ocupam cada edificação na cidade, funciona relativamente bem sob regulações mínimas de externalidades, como poluentes agressivos ou geradores de ruído, já há tempo virtualmente eliminados dos centros urbanos, não só pela evolução das regulações urbanas e ambientais, mas também pelo preço da terra, que expulsou grandes manufaturas das regiões valorizadas.

No entanto, mercados – e, portanto, o uso e ocupação do solo – por definição, não funcionam quando estão ausentes, seja quando estamos lidando com infraestruturas inerentemente públicas e monopolísticas na cidade, seja quando endereçamos uma favela que se desenvolveu em paralelo ao que chamamos de mercado formal e que não há uma atuação de fato do Estado criando condições básicas para que mercados funcionem.

Veja também

Anthony Ling é arquiteto, urbanista e pesquisador, conhecido por seu trabalho como fundador e editor-chefe do Caos Planejado, site que reúne artigos, entrevistas e informações sobre urbanismo, com foco nas cidades brasileiras. Ele estará neste sábado (15), em Porto Alegre, para participar da VII Conferência Atlantos, que esse ano trará a temática do futuro das cidades, abordando urbanismo e mobilidade urbana, sob a perspectiva da liberdade. Nesta entrevista para o Instituto Millenium, ele contou um pouco do que pensa sobre as questões urbanísticas das cidades brasileiras e os principais desafios que as cidades precisam enfrentar na atualização de seus planos diretores. Confira!

Como você avalia a atual situação do planejamento urbano no Brasil? Esse ano, muitas cidades revisarão seus planos diretores. Quais os principais desafios que os gestores públicos precisam enfrentar nessa área?

Anthony Ling - Nosso planejamento urbano atual, via de regra, tem uma inversão de prioridades: foca muito na regulação dos espaços privados e pouco no planejamento e gestão dos espaços públicos. A começar pela expansão urbana, praticamente toda expansão da malha viária é feita através de projetos privados de loteamento, aprovados um a um, sem um planejamento de longo prazo sobre quais áreas devemos avançar e como. Evidentemente, a ausência de diretrizes claras aliada à baixa fiscalização, principalmente em áreas periféricas, leva à proliferação de loteamentos e ocupações irregulares que, na prática, acabam sendo consolidados como parte do desenvolvimento urbano. Há também um descaso histórico com gestão e manutenção dos espaços públicos existentes. Será que estamos usando os recursos adequadamente, permitindo estacionamento de veículos privados gratuitamente ou a um custo irrisório? Como deve ser feita a expansão de ciclovias, de corredores de ônibus, de calçadas? Por que a calçada, um espaço tão público quanto o leito carroçável, é desenhada e mantida pelos proprietários dos imóveis adjacentes? Por que existe uma ineficácia tão grande em tarefas básicas, como a zeladoria de parques e praças ou da ocupação de baixos de viadutos? Em um paradigma ainda mais grave, como o Estado deve investir e interferir em favelas atualmente desprovidas de infraestrutura física e social, como deve regularizar esses territórios para diminuir o abismo que existe hoje entre cidade formal e informal? Essas questões, inerentemente de natureza pública, são praticamente inexistentes do debate do planejamento urbano nas cidades brasileiras e não há atualmente atores responsáveis por pensar como endereçá-las.

Em contrapartida, gastamos maior parte do tempo do chamado “debate urbanístico” de uma cidade discutindo a quantidade de andares ou que atividades devem ou não ser permitidas em cada lote privado, que é uma decisão essencialmente privada e que já conta com uma série de atores privados no processo decisório, desde arquitetos aos incorporadores e os ocupantes finais das edificações.

Outra lacuna é a ausência de dados para guiar o processo de planejamento e gestão urbana. Indicadores imobiliários, por exemplo, fundamentais para entender a acessibilidade à moradia em uma determinada cidade, não são medidos pelo setor público, mas sim por diferentes agentes do setor privado para fins mercadológicos, ou seja, não de forma aberta para auxiliar o planejamento urbano. A ausência de dados torna as discussões a respeito de urbanismo uma “guerra de narrativas” sem embasamento em evidências, ou seja, sem avaliar causa-efeito de políticas públicas implementadas no passado, sem entendermos onde estão os acertos e os erros, e tornando cada discussão de planejamento como se a cidade estivesse sendo construída do zero.

Assim, entendo que gestores públicos deveriam buscar ampliar seus corpos técnicos na consolidação e organização de dados que possam guiar o processo de planejamento e gestão urbana, assim como mudar radicalmente seu foco para o planejamento e gestão dos espaços públicos e implantação de infraestrutura, adotando uma postura de monitoramento em relação ao espaço privado.

Adensamento urbano é problema ou solução?

AL - Nem um, nem outro. A densidade por si só é apenas um indicador e não deve ser entendida como problema ou solução, sendo uma distração tratar do tema nesse sentido. Nas grandes cidades brasileiras, os bairros mais densos normalmente são os menos verticais: são favelas ou bairros que cresceram informalmente, onde as construções são coladas umas nas outras, e onde o espaço construído per capita é pequeno. Temos muitos bairros altamente verticalizados com densidades surpreendentemente baixas, à medida que os edifícios são torres isoladas entre si, com amplas áreas livres condominiais ao seu redor, e onde as unidades são grandes e as famílias, pequenas. Temos um paradigma curioso onde densidade ocorre sem verticalização e vice versa, em grande parte, resultado (ou consequência) das nossas regulações urbanísticas da cidade formal.

Como a mobilidade urbana pode ser pensada dentro do contexto do planejamento urbano? Quais as melhores práticas que podem ser adotadas para melhorar a qualidade do transporte nas cidades?

AL - A mobilidade urbana ainda é vista, na maioria das prefeituras, como um trabalho essencialmente viário, com objetivo de dar maior fluxo de trânsito ao automóvel individual, investindo centenas de milhões de reais na ampliação viária, na forma de alargamentos, túneis e viadutos. Ou seja, a demanda por espaço gerada pelo uso do automóvel individual, o meio de transporte que mais exige espaço, não tem mecanismo de preço para equilíbrio, sendo adotada uma postura de reagir com mais oferta através de recursos públicos e destruindo os tecidos urbanos, muitas vezes com desapropriações de populações de baixa renda, no processo. Como respondido na primeira questão, é preciso um foco maior no entendimento do uso da infraestrutura e do espaço público. O espaço viário não é bem utilizado, normalmente priorizando o uso do automóvel individual: apesar de ser uma propriedade 100% privada, ocupa espaços públicos de forma indiscriminada, gerando não apenas uma ineficiência no uso do espaço, assim como também pode ser compreendido como uma renúncia fiscal do poder público, ao não atribuir um preço ou uma tarifa por este uso, que é a regra em todas as outras infraestruturas urbanas, desde água à energia elétrica.

Na ausência de mecanismos de precificação, inicialmente cobrando pelo serviço de estacionamento em via pública, mas também possivelmente pensando em mecanismos de taxa de congestionamento, ou pedágio urbano, é preciso pensar na reorganização do espaço viário, como na implantação de faixas exclusivas de ônibus, que tem o mesmo objetivo de mitigar o subsídio atualmente concedido ao automóvel, assim como em toda cadeia de transporte ativo que leva ao transporte público, essencialmente as calçadas e, quando possível, as ciclovias. No lado regulatório, é preciso repensar os contratos de concessões de transporte público, focando em métricas operacionais, assim como revisar a proibição histórica do chamado “transporte alternativo” de vans e lotações, que cumpriam e ainda cumprem um papel essencial no sistema de transportes, de forma a regulamentar e incorporar o serviço ao leque de opções de transporte dos usuários.

Quais são as principais tendências em urbanismo no mundo que estão em linha com o que você acredita serem boas soluções para as cidades brasileiras?

AL - Sinceramente, eu não acredito em seguir “tendências” de urbanismo. Esta palavra é usada com frequência, como se estivéssemos falando de tendências de estilos na produção arquitetônica, só que para a produção de cidades, ou na última moda de dieta para perder peso que, na realidade, tem pouco respaldo na literatura científica da área da saúde e que pode até prejudicar a saúde de quem adota. Esta abordagem é equivocada. O urbanismo deveria ser encarado como uma ciência que possui um arcabouço de evidências teóricas e práticas bastante robustas que devem nos ajudar a nortear nossas tomadas de decisões em relação às cidades. A discussão sobre tendências apenas exacerba a “guerra de narrativas” que mencionei na primeira pergunta.

Como a pandemia da Covid-19 afetou o planejamento urbano e as políticas de mobilidade nas cidades brasileiras? Quais os impactos a longo prazo que podemos esperar na forma como as cidades são planejadas e gerenciadas?

AL - No que pude acompanhar, os processos de planejamento urbano foram prejudicados pela pandemia, no sentido de impossibilitar o processo participativo presencial, que normalmente caracteriza a participação democrática no planejamento urbano, com muitas revisões de planos diretores sendo adiadas por este motivo. No que tange a dados, que comentei nas respostas anteriores, tivemos o adiamento do Censo, que tem sido uma ferramenta importantíssima no entendimento das cidades e que ajuda a balizar decisões de planejamento em diversos municípios. Na mobilidade urbana, o fator mais crítico foi o colapso dos sistemas de transporte público, que viram o número de passageiros – e, consequentemente, sua receita – despencar durante a pandemia, agravando em um curto período de tempo a sangria financeira que esses sistemas já estavam sofrendo antes da pandemia. A resposta que muitas dessas cidades tiveram foi o socorro emergencial exclusivamente financeiro desses sistemas, para que os ônibus continuassem funcionando. No entanto, o que poderia ser uma oportunidade para reorganizar as concessões sob novas bases de eficiência operacional, trazendo benefícios no longo prazo, foi o contrário do esperado. No pós-pandemia temos visto pouco ou nenhum avanço nesse aspecto, com subsídios às operações em patamares insustentáveis para as finanças municipais se tornando permanentes, não apenas endereçando o caráter emergencial da pandemia.

Durante a pandemia, algumas cidades também aproveitaram o momento propício para testar ciclovias temporárias e outras formas de adaptação urbana para a mobilidade, mas acredito que mais oportunidades foram desperdiçadas do que de fato utilizadas nos anos de pandemia.

Como a tecnologia pode ser utilizada para melhorar o planejamento urbano e a gestão das cidades? Quais são as principais ferramentas e soluções tecnológicas que podem ser adotadas nesse contexto?

AL - Tecnologias computacionais, de geoprocessamento e de mapeamento e ferramentas de gestão e de comunicação já estão disponíveis há décadas, assim como a ferramenta mais usual de todas, o computador. Não vejo elas sendo o principal gargalo para o planejamento e a gestão das cidades. Evidentemente que o custo dessas ferramentas diminuiu ao longo dos anos, mas o mais importante é ter claro que objetivos devem ser atingidos e como utilizar as ferramentas já existentes para atingir esses objetivos.

O planejamento urbano é incompatível com a liberdade? Acredita que é possível conciliar o zoneamento com as vontades e preferências das pessoas para determinadas áreas?

AL - Não acho que o debate sobre planejamento urbano sob a ótica da “liberdade” seja resolutivo. O problema de determinar a priori um “zoneamento”, que defino aqui como a regulação de usos e ocupações de terrenos privados em todo o território de uma cidade, surge, pois essas determinações normalmente são subjetivas e distorcem a alocação de espaço construído e de atividades – de pessoas, de empregos e, assim, também de deslocamentos. A alocação de atividades e de espaços, seja através do mercado imobiliário ou dos usos que ocupam cada edificação na cidade, funciona relativamente bem sob regulações mínimas de externalidades, como poluentes agressivos ou geradores de ruído, já há tempo virtualmente eliminados dos centros urbanos, não só pela evolução das regulações urbanas e ambientais, mas também pelo preço da terra, que expulsou grandes manufaturas das regiões valorizadas.

No entanto, mercados – e, portanto, o uso e ocupação do solo – por definição, não funcionam quando estão ausentes, seja quando estamos lidando com infraestruturas inerentemente públicas e monopolísticas na cidade, seja quando endereçamos uma favela que se desenvolveu em paralelo ao que chamamos de mercado formal e que não há uma atuação de fato do Estado criando condições básicas para que mercados funcionem.

Acompanhe tudo sobre:Entrevistas

Mais lidas

exame no whatsapp

Receba as noticias da Exame no seu WhatsApp

Inscreva-se