Áreas de Revitalização Econômica: Como a gestão privada pode melhorar espaços públicos
Confira a entrevista com o arquiteto e urbanista Washington Fajardo, que já foi Secretário Municipal de Planejamento Urbano da cidade do Rio de Janeiro
Da Redação
Publicado em 10 de março de 2023 às 19h17.
Se você fosse comerciante em uma área decadente da cidade, aceitaria pagar um imposto extra para a revitalização desse espaço, e consequente atração de clientes para o seu negócio? E se esse excedente fosse administrado por uma associação privada, sem fins lucrativos, escolhida ou constituída pela própria comunidade de comerciantes locais? Esse modelo já existe há décadas pelo mundo, e é chamado de Business Improvement Districts (BIDs). Nesta entrevista para o Instituto Millenium, o arquiteto e urbanista Washington Fajardo, que já foi Secretário Municipal de Planejamento Urbano da cidade do Rio de Janeiro, explica como funciona o modelo e quais os resultados onde ele foi aplicado. Também fala da viabilidade de implantá-lo no Brasil e da tentativa feita no Rio de Janeiro.
- O que é o BID e onde ele já é utilizado?
Washington Fajardo - Os BIDs surgiram no final dos anos 70, no Canadá, e logo depois chegaram aos Estados Unidos. BID quer dizer “business improvement districts”. Na tradução para o português, “área de revitalização econômica”, ou ARE. O objetivo dos BIDs era conseguir melhorar o espaço público em áreas comerciais. E foi uma iniciativa comunitária.
Comerciantes se reuniram, diante da degradação do espaço público e, obviamente, da perda de clientes e de uma decadência econômica, e foram à prefeitura sugerir pagar uma cota extra de IPTU, mas com a condição de que essa cota extra fosse redirecionada para que, através de uma organização própria, eles pudessem complementar e melhorar os serviços públicos naquela rua.
Isso deu muito certo e virou um modelo que hoje está disseminado em toda América do Norte, Europa e - com variações sobre o tema -, também no México, na África do Sul, Oriente Médio e chegando na Ásia. Os BIDs mostram como o espaço público é decisivo para a qualidade de vida e para percepção positiva da população de um lugar. E eles mostram também como a alternância nos governos, nos poderes locais, acaba tendo impacto na qualidade dos serviços.
Os BIDs conseguiram obter uma estabilidade da oferta de conservação, de embelezamento, paisagismo, mobiliário urbano, além de realizar funções que mesmo uma prefeitura muito organizada tem dificuldade de fazer, como promoção urbana, ou marketing urbano. Todas essas estratégias de divulgação, promoção ou até mesmo de animação cultural, que do ponto de vista de uma gestão pública, são bastante trabalhosas, porque lidam com muitos detalhes, uma organização da sociedade civil consegue fazer com qualidade.
Os BIDs são sempre instituições sem fins lucrativos, organizadas por proprietários de imóveis em áreas comerciais. E são sempre os proprietários de imóveis comerciais que contribuem, pagando para o BID. Não existem modelos de BID com pagamento de imóveis residenciais. A lógica é que esses imóveis que têm um retorno econômico da sua localização, pela função de comércio de serviço, façam essa manutenção. E eles conseguem ter uma eficiência administrativa. Então é um aspecto muito simples, mas que nessa solução alcançou um resultado muito eficaz.
Por que pagar a cota extra no IPTU? Porque desta forma, isso não é um ato voluntário. Todo mundo dentro daquele perímetro fica obrigado a pagar aquela cota extra. Quem não pagar a cota extra acaba entrando na dívida ativa do imposto predial da prefeitura. Então não é uma ação voluntária, né? É uma ação que vem de base comunitária, mas a partir do momento que ela é definida e aprovada em assembleia comunitária, passa a valer para todos dentro daquele perímetro. Então, todos dentro daquele perímetro ficam obrigados a pagar aquela cota extra de IPTU, que se destina a uma organização, também criada por essa própria comunidade, para fazer a gestão dos recursos.
O BID hoje é o modelo mais estudado, mais expressivo da cidade de Nova Iorque, onde há mais de 76 BIDs, em diferentes áreas. O mais famoso é o Times Square, que é um BID, vamos chamar assim, rico, porque é um local de altíssima visitação, densidade de comércio, de oferta cultural. Mas também existem BIDs muito simples, como uma rua comercial em Long Island (ilha no estado de Nova Iorque), outra no Bronx (burgo na cidade de Nova Iorque). Então, tem BIDs muito pequenos, muito localizados, e tem BIDs também muito grandes, em função dessa demanda pelo local, que é o caso da Times Square.
Em Nova Iorque, tem mais de 76 e, em todo o território dos Estados Unidos, são mais de 2500 BIDs. As empresas, quando procuram um edifício para se instalar, um endereço novo, elas sempre olham para os BIDS, porque elas sabem que ali tem uma manutenção da qualidade. Em Los Angeles, se tem utilizado o BID também para recuperar patrimônio cultural. Ou seja, cada BID define a sua agenda, o que é importante para aquele território e para aquela comunidade.
O BID de Los Angeles é muito dedicado a recuperar o patrimônio cultural, de Art Déco, que é característico do BID do Downtown de Los Angeles, muito marcado pelo Art Déco, por isso a ênfase nisso. E tem também o desafio da população em situação de rua, que é um desafio também na área central de Los Angeles.
Em Joanesburgo, na África do Sul, o BID foi decisivo para revitalizar radicalmente a área, que tinha problemas seríssimos de insegurança. O BID de Joanesburgo, inclusive, adotou a estratégia de contratar ex-presidiários para sua base de operários, então os BIDs também têm componentes de inclusão social, isso é muito comum. Em algumas cidades, os BIDs são porta de entrada para o primeiro emprego de imigrantes.
Os BIDs amplificam muito a oferta de contratação de serviços, então mais arquitetos são contratados, mais paisagistas, mais designers, mais publicitários, mais pessoal de marketing... e os BIDs, então, acabam também mostrando uma densidade de investimentos privados nessas áreas. Isso tem a ver com essa formulação que coloca a qualidade do espaço público como base decisiva de desenvolvimento econômico e de qualidade ambiental das cidades.
- Quais os resultados nesses locais?
WF - O processo de aprovação do BID é muito interessante porque, obviamente, ninguém tem muito interesse em pagar mais impostos, né? Então é muito interessante observar que, nas assembleias de formação de BIDs, a votação para aprovar o BID é sempre apertada, é sempre pouco mais de 50%. E os BIDs têm, por lei, um mandato de cinco anos. Ao término, eles têm que fazer uma nova assembleia, uma nova votação.
Tem uma literatura que investiga os BIDs, e é interessante ver que as votações de origem dos BIDs sempre são votações apertadas. E isso é natural, ninguém, obviamente, vai rapidamente aderir à tese de pagar um imposto a mais. Mas depois que o BID é constituído, raramente os BIDs são interrompidos. As votações de continuidade, essas sim, são sempre votações expressivamente favoráveis.
Isso porque aquela comunidade começa a perceber os benefícios daquele pagamento a mais, que é reinvestido no local. Então, o BID é uma estratégia de reinvestimento desse imposto comunitário, isso é que é uma ideia bacana. É um imposto de caráter comunitário, todo mundo fica obrigado a pagar, mas ele retorna para uma organização comunitária sem fins lucrativos, que faz a gestão daquele recurso.
- O que faz com que os resultados do BID sejam melhores que o modelo convencional, totalmente gerido pela administração pública?
WF - Os BIDs sempre complementam serviços públicos, e é importante deixar isso claro. Então, vamos imaginar que a prefeitura faça duas varrições por dia naquele trecho da rua, e o BID faz mais duas. Mas o BID consegue fazer coisas que é muito difícil para uma prefeitura. E até o conceito de concierge urbano. O BID coloca pessoas, que estão sempre identificadas com o uniforme do BID, e é muito comum, especialmente Estados Unidos, você ver o “posso ajudar?” escrito atrás do colete da pessoa; tem sempre uma folheteria, mapas para pessoa se localizar naquela área comercial... Os BIDs têm sempre uma característica de comércio, de serviços ou de entretenimento.
Os BIDs não são feitos para áreas residenciais. Quem mora dentro de um BID não tem nenhuma obrigação de pagar por esse BID. Então, essa ação do BID complementa serviços, mas eles, por exemplo, conseguem fazer com muita qualidade ações que são mais desafiadoras do ponto de vista da administração pública. Por exemplo, a atenção com mobiliário urbano, então, além de ter bancos, além de ter mesas, cadeiras, lixeiras de boa qualidade, com bom design, tem uma preocupação também de criar identidade local, então você vê a marca daquele BID presente no mobiliário. Ou seja, você tem uma percepção de unidade territorial naquele espaço. O logo está presente, o BID oferece informação sobre a memória do local, alguns se dedicam a patrimônio cultural, alguns procuram resgatar cinemas de rua ou antigos teatros, por exemplo.
É um modelo que foi inventado pra cidade existente, mas hoje ele faz parte também de processos de desenvolvimento de novas áreas, que é muito interessante. Então, em Washington, capital dos Estados Unidos, você vê, por exemplo, áreas que estão em desenvolvimento, mas ela já tem o BID formado logo no início. Ou seja, mesmo que ainda não tenha tantos prédios, não tenha ainda uma base de ocupação ou de atividade econômica, o BID já é estabelecido no início. Isso são variações do tema, onde o BID tem também uma contribuição das incorporadoras, dos developers, que estão criando aquela área com o objetivo de já oferecer uma experiência de vida comunitária.
O BID, do ponto de vista urbanístico, atua com muita precisão no aspecto físico da cidade, ou seja, limpeza, beleza, organização, sinalização (como eu me localizo?), mobiliário de Way Finding, (como eu acho alguma coisa aqui?), assim como no aspecto intangível da cidade, ou seja, resgatar a história, resgatar comércios tradicionais. Esse é o fenômeno que explica por que as cidades são tão importantes na história da humanidade. Essa relação entre um aspecto tangível e um aspecto subjetivo e simbólico, os BIDs conseguem atuar com qualidade nessas duas dimensões.
E, como eles contratam profissionais, eles conseguem também atrair e amplificar a diversidade de especializações dedicadas àquele território, algo que uma administração pública levaria muito tempo para conseguir. Então os BIDs também conseguem acelerar uma especialização do ponto de vista tanto intelectual, como do ponto de vista operacional, como do ponto de vista gerencial para um território.
- Em termos de legislação, é possível importar o modelo para o Brasil? Pode falar um pouco do que se está tentando fazer no Rio de Janeiro?
WF - No Brasil, a nossa Constituição vai no detalhe de como deve ser feito o imposto territorial. Então, a gente não consegue criar esse princípio do imposto comunitário. Ou seja, não existe, do ponto de vista constitucional, no Brasil, a possibilidade de uma comunidade se reunir e dizer: “ei, poder público, nós queremos pagar um imposto a mais”. Não existe essa possibilidade, curiosamente. É papel do Estado definir o imposto. Então, com o objetivo de tornar BIDs possíveis no Brasil, tem uma proposta de emenda constitucional, feita pelo deputado federal Pedro Paulo (PSD/RJ), e eu colaborei nessa emenda. Ela tem esse objetivo de permitir essa ação. Importante lembrar que nenhum BID pode ser imposto, não tem como, em nenhuma experiência internacional, o BID ser empurrado de cima pra baixo, por uma decisão de governo. Ele é sempre um movimento de baixo pra cima.
Obviamente, as prefeituras têm interesse em ter esse tipo de gestão compartilhada do espaço público. Então, elas oferecem a metodologia que aquela comunidade tem que adotar para constituir um BID. Eles têm que se organizar numa entidade sem fins lucrativos, eles têm um procedimento a ser feito, têm que agregar mais pessoas, e o ponto decisivo é fazer essa votação.
A partir da definição do perímetro daquele BID, tem que ter um dia daquela votação comunitária, e essa votação é o momento legal e oficial que a prefeitura entende que aquela comunidade votou a favor de um aumento no seu imposto predial, com o objetivo de constituir um BID. Esse é o marco regulatório decisivo.
Então, a gente não tem essa possibilidade no Brasil, e essa emenda, e também o projeto de lei complementar necessário para regulamentar isso, está lá no Congresso, já avançou. Mas, infelizmente, o tema da gestão do espaço público, os temas urbanos, não são assuntos que ganham muita prioridade nas políticas públicas brasileiras.
Mas tem essa iniciativa, e é muito importante que as pessoas procurem conhecer mais e isso traria um grande benefício para as cidades brasileiras, especialmente pensando nesse aspecto do interesse turístico que tem nas cidades brasileiras. As nossas cidades são muito especiais, né? Elas são muito diversas entre si, têm uma característica muito peculiar, e a gente tem também o aspecto cultural da sociedade brasileira, que é muito alegre no espaço público, nossos visitantes sempre ficam fascinados com a nossa desenvoltura no espaço público, do ponto de vista de musicalidade, de festas, de uso do espaço público. Então tem uma certa beleza aí, da sociedade brasileira no uso do espaço público, em detrimento das capacidades governamentais de conseguir gerir isso bem.
Acho que os BIDs no Brasil, imaginando uma priorização, beneficiariam muito áreas de interesse turístico. O contexto do término da pandemia da Covid-19 mostra também uma necessidade de reabilitar as áreas centrais, porque o trabalho remoto está tirando pessoas das áreas centrais de trabalho, das áreas centrais de negócios. Então, especialmente o comércio nesses centros urbanos está sofrendo muito. Nesse sentido, acho que os BIDs passam a ter uma certa urgência de implementação no Brasil.
O Rio de Janeiro teve essa iniciativa lá nos anos 90, encabeçada pela Associação Comercial do Rio, que conseguiu o apoio da prefeitura... a prefeitura ficou interessada nisso... se tentou naquele momento uma legislação, e muitas vezes isso é entendido equivocadamente como uma privatização do espaço público. É radicalmente distinto, na verdade é o contrário. É você conseguir aumentar a percepção de domínio público do espaço público, exatamente pela sua alta qualificação. Não há nenhum controle de pessoas, o BID não tem nenhuma competência policial, por exemplo. É simplesmente algo muito básico que, infelizmente, a gente não consegue fazer com qualidade, que é organizar o espaço público, tornar ele mais acessível, por exemplo - veja a qualidade das calçadas. No Brasil, as calçadas são péssimas, as pessoas caem, se machucam -, a capacidade de organizar o espaço público, capacidade de ter um mobiliário urbano de qualidade, a gente sequer consegue ter banheiro público de qualidade em espaço público, a iluminação é sempre problemática e a gente nunca consegue chegar num nível de excelência de espaço público como já tivemos no passado, especialmente no Rio de Janeiro. A área central, se a gente olhar pro início do século XX, a década de 10, a década de 20, a área central do Rio de Janeiro era de excelência. Você tinha calçadas impecáveis, mobiliário urbano impecável e isso acontece em todas as outras cidades. A gente desaprendeu a cuidar do espaço público. Isso é comum no mundo, não é um problema só nosso. Mas é interessante que essas cidades nos Estados Unidos e no Canadá, quando elas tiveram seu pior momento, no final da década de 70, início da década de 80, elas tiveram essa solução, essa inovação, que foram os BIDs.
Então, hoje, pra ter algo parecido com BID, depende da aprovação dessa emenda constitucional. Por outro lado, tem aumentado o conhecimento da sociedade civil sobre esse modelo. Tem algumas jabuticabas de BID começando a aparecer, e isso é positivo. No centro do Rio, o Segurança Presente é uma certa jabuticaba de BID, porque é uma complementação do serviço de segurança pública, financiado pelo Sistema S, a partir da Fecomércio, com investimento do estado e do município. Essa operação mostra, paradoxalmente, como o mesmo policial, da corporação da Polícia Militar, com um cuidado de gestão, uma estratégia, um planejamento, ele funciona muito melhor do que no policiamento de rua normal. É altamente paradoxal imaginar que o mesmo profissional, num ambiente com a gestão melhor, funcione melhor.
- Uma vez que não é possível destinar o IPTU para entes privados, como convencer os comerciantes a pagar uma taxa extra pelo BID?
WF - Uma maneira efetiva de conseguir convencer esses proprietários de imóveis comerciais e também do comércio a contribuir no BID é por demonstração. É necessário estabelecer áreas piloto, que é o que a Aliança Centro está fazendo, e a partir dessa área piloto, você começar a ter um efeito de demonstração e, com isso, então, de modo voluntário, pedir contribuição.
Isso também se converter numa certa base contratual, ou seja, se a ação é voluntária, por outro lado tem ali um contrato firmado com aquela organização, onde eu digo que eu vou contribuir com X parcelas mensais, por Y tempo, para que aquilo funcione.
Os BIDs não podem ser voos de galinha, eles não são experimentos rápidos. Eles têm mandato de cinco anos, então o BID tem que ter um compromisso de longo prazo, porque é no longo prazo que você consegue de fato alcançar essa excelência. O que eu tenho sugerido sempre a essas iniciativas é que é melhor assumir um compromisso de longo prazo fazendo coisas muito simples e viáveis de financiar, do que tentar fazer coisas altamente complexas. E aí, com esse efeito demonstração, se consegue angariar mais apoios.
Mas não tenha dúvida que esse mecanismo da obrigatoriedade da cota extra no BID é que faz ele passar a ter muita capacidade de atuar no longo prazo e alcançar esse grau de excelência.
Se você fosse comerciante em uma área decadente da cidade, aceitaria pagar um imposto extra para a revitalização desse espaço, e consequente atração de clientes para o seu negócio? E se esse excedente fosse administrado por uma associação privada, sem fins lucrativos, escolhida ou constituída pela própria comunidade de comerciantes locais? Esse modelo já existe há décadas pelo mundo, e é chamado de Business Improvement Districts (BIDs). Nesta entrevista para o Instituto Millenium, o arquiteto e urbanista Washington Fajardo, que já foi Secretário Municipal de Planejamento Urbano da cidade do Rio de Janeiro, explica como funciona o modelo e quais os resultados onde ele foi aplicado. Também fala da viabilidade de implantá-lo no Brasil e da tentativa feita no Rio de Janeiro.
- O que é o BID e onde ele já é utilizado?
Washington Fajardo - Os BIDs surgiram no final dos anos 70, no Canadá, e logo depois chegaram aos Estados Unidos. BID quer dizer “business improvement districts”. Na tradução para o português, “área de revitalização econômica”, ou ARE. O objetivo dos BIDs era conseguir melhorar o espaço público em áreas comerciais. E foi uma iniciativa comunitária.
Comerciantes se reuniram, diante da degradação do espaço público e, obviamente, da perda de clientes e de uma decadência econômica, e foram à prefeitura sugerir pagar uma cota extra de IPTU, mas com a condição de que essa cota extra fosse redirecionada para que, através de uma organização própria, eles pudessem complementar e melhorar os serviços públicos naquela rua.
Isso deu muito certo e virou um modelo que hoje está disseminado em toda América do Norte, Europa e - com variações sobre o tema -, também no México, na África do Sul, Oriente Médio e chegando na Ásia. Os BIDs mostram como o espaço público é decisivo para a qualidade de vida e para percepção positiva da população de um lugar. E eles mostram também como a alternância nos governos, nos poderes locais, acaba tendo impacto na qualidade dos serviços.
Os BIDs conseguiram obter uma estabilidade da oferta de conservação, de embelezamento, paisagismo, mobiliário urbano, além de realizar funções que mesmo uma prefeitura muito organizada tem dificuldade de fazer, como promoção urbana, ou marketing urbano. Todas essas estratégias de divulgação, promoção ou até mesmo de animação cultural, que do ponto de vista de uma gestão pública, são bastante trabalhosas, porque lidam com muitos detalhes, uma organização da sociedade civil consegue fazer com qualidade.
Os BIDs são sempre instituições sem fins lucrativos, organizadas por proprietários de imóveis em áreas comerciais. E são sempre os proprietários de imóveis comerciais que contribuem, pagando para o BID. Não existem modelos de BID com pagamento de imóveis residenciais. A lógica é que esses imóveis que têm um retorno econômico da sua localização, pela função de comércio de serviço, façam essa manutenção. E eles conseguem ter uma eficiência administrativa. Então é um aspecto muito simples, mas que nessa solução alcançou um resultado muito eficaz.
Por que pagar a cota extra no IPTU? Porque desta forma, isso não é um ato voluntário. Todo mundo dentro daquele perímetro fica obrigado a pagar aquela cota extra. Quem não pagar a cota extra acaba entrando na dívida ativa do imposto predial da prefeitura. Então não é uma ação voluntária, né? É uma ação que vem de base comunitária, mas a partir do momento que ela é definida e aprovada em assembleia comunitária, passa a valer para todos dentro daquele perímetro. Então, todos dentro daquele perímetro ficam obrigados a pagar aquela cota extra de IPTU, que se destina a uma organização, também criada por essa própria comunidade, para fazer a gestão dos recursos.
O BID hoje é o modelo mais estudado, mais expressivo da cidade de Nova Iorque, onde há mais de 76 BIDs, em diferentes áreas. O mais famoso é o Times Square, que é um BID, vamos chamar assim, rico, porque é um local de altíssima visitação, densidade de comércio, de oferta cultural. Mas também existem BIDs muito simples, como uma rua comercial em Long Island (ilha no estado de Nova Iorque), outra no Bronx (burgo na cidade de Nova Iorque). Então, tem BIDs muito pequenos, muito localizados, e tem BIDs também muito grandes, em função dessa demanda pelo local, que é o caso da Times Square.
Em Nova Iorque, tem mais de 76 e, em todo o território dos Estados Unidos, são mais de 2500 BIDs. As empresas, quando procuram um edifício para se instalar, um endereço novo, elas sempre olham para os BIDS, porque elas sabem que ali tem uma manutenção da qualidade. Em Los Angeles, se tem utilizado o BID também para recuperar patrimônio cultural. Ou seja, cada BID define a sua agenda, o que é importante para aquele território e para aquela comunidade.
O BID de Los Angeles é muito dedicado a recuperar o patrimônio cultural, de Art Déco, que é característico do BID do Downtown de Los Angeles, muito marcado pelo Art Déco, por isso a ênfase nisso. E tem também o desafio da população em situação de rua, que é um desafio também na área central de Los Angeles.
Em Joanesburgo, na África do Sul, o BID foi decisivo para revitalizar radicalmente a área, que tinha problemas seríssimos de insegurança. O BID de Joanesburgo, inclusive, adotou a estratégia de contratar ex-presidiários para sua base de operários, então os BIDs também têm componentes de inclusão social, isso é muito comum. Em algumas cidades, os BIDs são porta de entrada para o primeiro emprego de imigrantes.
Os BIDs amplificam muito a oferta de contratação de serviços, então mais arquitetos são contratados, mais paisagistas, mais designers, mais publicitários, mais pessoal de marketing... e os BIDs, então, acabam também mostrando uma densidade de investimentos privados nessas áreas. Isso tem a ver com essa formulação que coloca a qualidade do espaço público como base decisiva de desenvolvimento econômico e de qualidade ambiental das cidades.
- Quais os resultados nesses locais?
WF - O processo de aprovação do BID é muito interessante porque, obviamente, ninguém tem muito interesse em pagar mais impostos, né? Então é muito interessante observar que, nas assembleias de formação de BIDs, a votação para aprovar o BID é sempre apertada, é sempre pouco mais de 50%. E os BIDs têm, por lei, um mandato de cinco anos. Ao término, eles têm que fazer uma nova assembleia, uma nova votação.
Tem uma literatura que investiga os BIDs, e é interessante ver que as votações de origem dos BIDs sempre são votações apertadas. E isso é natural, ninguém, obviamente, vai rapidamente aderir à tese de pagar um imposto a mais. Mas depois que o BID é constituído, raramente os BIDs são interrompidos. As votações de continuidade, essas sim, são sempre votações expressivamente favoráveis.
Isso porque aquela comunidade começa a perceber os benefícios daquele pagamento a mais, que é reinvestido no local. Então, o BID é uma estratégia de reinvestimento desse imposto comunitário, isso é que é uma ideia bacana. É um imposto de caráter comunitário, todo mundo fica obrigado a pagar, mas ele retorna para uma organização comunitária sem fins lucrativos, que faz a gestão daquele recurso.
- O que faz com que os resultados do BID sejam melhores que o modelo convencional, totalmente gerido pela administração pública?
WF - Os BIDs sempre complementam serviços públicos, e é importante deixar isso claro. Então, vamos imaginar que a prefeitura faça duas varrições por dia naquele trecho da rua, e o BID faz mais duas. Mas o BID consegue fazer coisas que é muito difícil para uma prefeitura. E até o conceito de concierge urbano. O BID coloca pessoas, que estão sempre identificadas com o uniforme do BID, e é muito comum, especialmente Estados Unidos, você ver o “posso ajudar?” escrito atrás do colete da pessoa; tem sempre uma folheteria, mapas para pessoa se localizar naquela área comercial... Os BIDs têm sempre uma característica de comércio, de serviços ou de entretenimento.
Os BIDs não são feitos para áreas residenciais. Quem mora dentro de um BID não tem nenhuma obrigação de pagar por esse BID. Então, essa ação do BID complementa serviços, mas eles, por exemplo, conseguem fazer com muita qualidade ações que são mais desafiadoras do ponto de vista da administração pública. Por exemplo, a atenção com mobiliário urbano, então, além de ter bancos, além de ter mesas, cadeiras, lixeiras de boa qualidade, com bom design, tem uma preocupação também de criar identidade local, então você vê a marca daquele BID presente no mobiliário. Ou seja, você tem uma percepção de unidade territorial naquele espaço. O logo está presente, o BID oferece informação sobre a memória do local, alguns se dedicam a patrimônio cultural, alguns procuram resgatar cinemas de rua ou antigos teatros, por exemplo.
É um modelo que foi inventado pra cidade existente, mas hoje ele faz parte também de processos de desenvolvimento de novas áreas, que é muito interessante. Então, em Washington, capital dos Estados Unidos, você vê, por exemplo, áreas que estão em desenvolvimento, mas ela já tem o BID formado logo no início. Ou seja, mesmo que ainda não tenha tantos prédios, não tenha ainda uma base de ocupação ou de atividade econômica, o BID já é estabelecido no início. Isso são variações do tema, onde o BID tem também uma contribuição das incorporadoras, dos developers, que estão criando aquela área com o objetivo de já oferecer uma experiência de vida comunitária.
O BID, do ponto de vista urbanístico, atua com muita precisão no aspecto físico da cidade, ou seja, limpeza, beleza, organização, sinalização (como eu me localizo?), mobiliário de Way Finding, (como eu acho alguma coisa aqui?), assim como no aspecto intangível da cidade, ou seja, resgatar a história, resgatar comércios tradicionais. Esse é o fenômeno que explica por que as cidades são tão importantes na história da humanidade. Essa relação entre um aspecto tangível e um aspecto subjetivo e simbólico, os BIDs conseguem atuar com qualidade nessas duas dimensões.
E, como eles contratam profissionais, eles conseguem também atrair e amplificar a diversidade de especializações dedicadas àquele território, algo que uma administração pública levaria muito tempo para conseguir. Então os BIDs também conseguem acelerar uma especialização do ponto de vista tanto intelectual, como do ponto de vista operacional, como do ponto de vista gerencial para um território.
- Em termos de legislação, é possível importar o modelo para o Brasil? Pode falar um pouco do que se está tentando fazer no Rio de Janeiro?
WF - No Brasil, a nossa Constituição vai no detalhe de como deve ser feito o imposto territorial. Então, a gente não consegue criar esse princípio do imposto comunitário. Ou seja, não existe, do ponto de vista constitucional, no Brasil, a possibilidade de uma comunidade se reunir e dizer: “ei, poder público, nós queremos pagar um imposto a mais”. Não existe essa possibilidade, curiosamente. É papel do Estado definir o imposto. Então, com o objetivo de tornar BIDs possíveis no Brasil, tem uma proposta de emenda constitucional, feita pelo deputado federal Pedro Paulo (PSD/RJ), e eu colaborei nessa emenda. Ela tem esse objetivo de permitir essa ação. Importante lembrar que nenhum BID pode ser imposto, não tem como, em nenhuma experiência internacional, o BID ser empurrado de cima pra baixo, por uma decisão de governo. Ele é sempre um movimento de baixo pra cima.
Obviamente, as prefeituras têm interesse em ter esse tipo de gestão compartilhada do espaço público. Então, elas oferecem a metodologia que aquela comunidade tem que adotar para constituir um BID. Eles têm que se organizar numa entidade sem fins lucrativos, eles têm um procedimento a ser feito, têm que agregar mais pessoas, e o ponto decisivo é fazer essa votação.
A partir da definição do perímetro daquele BID, tem que ter um dia daquela votação comunitária, e essa votação é o momento legal e oficial que a prefeitura entende que aquela comunidade votou a favor de um aumento no seu imposto predial, com o objetivo de constituir um BID. Esse é o marco regulatório decisivo.
Então, a gente não tem essa possibilidade no Brasil, e essa emenda, e também o projeto de lei complementar necessário para regulamentar isso, está lá no Congresso, já avançou. Mas, infelizmente, o tema da gestão do espaço público, os temas urbanos, não são assuntos que ganham muita prioridade nas políticas públicas brasileiras.
Mas tem essa iniciativa, e é muito importante que as pessoas procurem conhecer mais e isso traria um grande benefício para as cidades brasileiras, especialmente pensando nesse aspecto do interesse turístico que tem nas cidades brasileiras. As nossas cidades são muito especiais, né? Elas são muito diversas entre si, têm uma característica muito peculiar, e a gente tem também o aspecto cultural da sociedade brasileira, que é muito alegre no espaço público, nossos visitantes sempre ficam fascinados com a nossa desenvoltura no espaço público, do ponto de vista de musicalidade, de festas, de uso do espaço público. Então tem uma certa beleza aí, da sociedade brasileira no uso do espaço público, em detrimento das capacidades governamentais de conseguir gerir isso bem.
Acho que os BIDs no Brasil, imaginando uma priorização, beneficiariam muito áreas de interesse turístico. O contexto do término da pandemia da Covid-19 mostra também uma necessidade de reabilitar as áreas centrais, porque o trabalho remoto está tirando pessoas das áreas centrais de trabalho, das áreas centrais de negócios. Então, especialmente o comércio nesses centros urbanos está sofrendo muito. Nesse sentido, acho que os BIDs passam a ter uma certa urgência de implementação no Brasil.
O Rio de Janeiro teve essa iniciativa lá nos anos 90, encabeçada pela Associação Comercial do Rio, que conseguiu o apoio da prefeitura... a prefeitura ficou interessada nisso... se tentou naquele momento uma legislação, e muitas vezes isso é entendido equivocadamente como uma privatização do espaço público. É radicalmente distinto, na verdade é o contrário. É você conseguir aumentar a percepção de domínio público do espaço público, exatamente pela sua alta qualificação. Não há nenhum controle de pessoas, o BID não tem nenhuma competência policial, por exemplo. É simplesmente algo muito básico que, infelizmente, a gente não consegue fazer com qualidade, que é organizar o espaço público, tornar ele mais acessível, por exemplo - veja a qualidade das calçadas. No Brasil, as calçadas são péssimas, as pessoas caem, se machucam -, a capacidade de organizar o espaço público, capacidade de ter um mobiliário urbano de qualidade, a gente sequer consegue ter banheiro público de qualidade em espaço público, a iluminação é sempre problemática e a gente nunca consegue chegar num nível de excelência de espaço público como já tivemos no passado, especialmente no Rio de Janeiro. A área central, se a gente olhar pro início do século XX, a década de 10, a década de 20, a área central do Rio de Janeiro era de excelência. Você tinha calçadas impecáveis, mobiliário urbano impecável e isso acontece em todas as outras cidades. A gente desaprendeu a cuidar do espaço público. Isso é comum no mundo, não é um problema só nosso. Mas é interessante que essas cidades nos Estados Unidos e no Canadá, quando elas tiveram seu pior momento, no final da década de 70, início da década de 80, elas tiveram essa solução, essa inovação, que foram os BIDs.
Então, hoje, pra ter algo parecido com BID, depende da aprovação dessa emenda constitucional. Por outro lado, tem aumentado o conhecimento da sociedade civil sobre esse modelo. Tem algumas jabuticabas de BID começando a aparecer, e isso é positivo. No centro do Rio, o Segurança Presente é uma certa jabuticaba de BID, porque é uma complementação do serviço de segurança pública, financiado pelo Sistema S, a partir da Fecomércio, com investimento do estado e do município. Essa operação mostra, paradoxalmente, como o mesmo policial, da corporação da Polícia Militar, com um cuidado de gestão, uma estratégia, um planejamento, ele funciona muito melhor do que no policiamento de rua normal. É altamente paradoxal imaginar que o mesmo profissional, num ambiente com a gestão melhor, funcione melhor.
- Uma vez que não é possível destinar o IPTU para entes privados, como convencer os comerciantes a pagar uma taxa extra pelo BID?
WF - Uma maneira efetiva de conseguir convencer esses proprietários de imóveis comerciais e também do comércio a contribuir no BID é por demonstração. É necessário estabelecer áreas piloto, que é o que a Aliança Centro está fazendo, e a partir dessa área piloto, você começar a ter um efeito de demonstração e, com isso, então, de modo voluntário, pedir contribuição.
Isso também se converter numa certa base contratual, ou seja, se a ação é voluntária, por outro lado tem ali um contrato firmado com aquela organização, onde eu digo que eu vou contribuir com X parcelas mensais, por Y tempo, para que aquilo funcione.
Os BIDs não podem ser voos de galinha, eles não são experimentos rápidos. Eles têm mandato de cinco anos, então o BID tem que ter um compromisso de longo prazo, porque é no longo prazo que você consegue de fato alcançar essa excelência. O que eu tenho sugerido sempre a essas iniciativas é que é melhor assumir um compromisso de longo prazo fazendo coisas muito simples e viáveis de financiar, do que tentar fazer coisas altamente complexas. E aí, com esse efeito demonstração, se consegue angariar mais apoios.
Mas não tenha dúvida que esse mecanismo da obrigatoriedade da cota extra no BID é que faz ele passar a ter muita capacidade de atuar no longo prazo e alcançar esse grau de excelência.