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Como aprimorar as concessões rodoviárias brasileiras?

A frustração de receitas tarifárias quase sempre foi um problema alocado ao concessionário, mas para suportar esse risco, exige-se um retorno maior

Obra em rodovia de Santa Catarina  (Ministério dos Transportes/Divulgação)
Obra em rodovia de Santa Catarina (Ministério dos Transportes/Divulgação)

Publicado em 19 de julho de 2023 às, 06h00.

Última atualização em 19 de julho de 2023 às, 08h53.

Com 75 mil km de rodovias federais, sendo 10 mil sob responsabilidade de operadores privados, o Brasil vem, desde os anos de 1990, apostando nas concessões como forma de obter investimentos e melhoria da qualidade. A participação privada permite liberar recursos públicos para outras atividades, como assistência social, saúde e educação. O princípio de que o usuário paga o pedágio é justo e equânime, na medida em que, sem tarifas, quem pagaria seria o contribuinte. A concessão traz, ainda, a vantagem dar o incentivo correto à concessionária, que quer gastar menos no investimento, mas também menos na manutenção, o que favorece a visão de minimização do custo total de longo prazo. Nisso, o privado tende a ser mais eficiente, pois não tem as amarras licitatórias de um órgão público. Na base disso tudo, está uma boa agência reguladora, uma licitação competitiva e um contrato adequado.

Nem sempre essa base funcionou bem. Muitas vezes o concessionário não faz os investimentos devidos. Levantamento do Tribunal de Contas da União[1] apontou que as concessões licitadas entre 2012 e 2014 estavam, em 2017, com 69% de atraso. Do total que deveria ser concluído em 5 anos, havia apenas 16% de execução física. O presente artigo inaugura uma série de seis que vão explorar o tema, propondo aprimoramentos com vistas a garantir licitações futuras mais competitivas e contratos mais adequados.

O tema inaugural deste primeiro artigo é a alocação do risco de demanda, um dos principais de uma concessão rodoviária. Trata-se do risco de o tráfego de veículos vir abaixo do estimado no momento da licitação, ocasionando uma frustração de receita e possivelmente o comprometimento da capacidade e do interesse da concessionária em fazer os investimentos.

O risco de demanda, nas experiências brasileiras, tradicionalmente foi alocado, integralmente ou quase integralmente, ao concessionário. Esse não é o desenho mais eficiente, visto que a demanda é, em sua maior parte, influenciada por variáveis que fogem do controle do concessionário. Assim, deve-se ter em mente que, ao atribuí-lo ao privado, está-se impactando no retorno esperado do projeto, que deverá ser mais alto para atrair licitantes interessados. Isso, naturalmente, eleva a tarifa paga pelo usuário. Seria ilusão acreditar que essa conta não é repassada.

Qual o potencial de redução das tarifas se optarmos, daqui para frente, por fazer contratos com compartilhamento do risco de demanda? Como colocar em prática tal compartilhamento minimizando o ônus ao usuário e sem criar esqueletos fiscais? Este artigo responde a essas questões e recomenda diversos aprimoramentos.

É premissa que nenhum risco fiscal seja criado. Se a frustração da demanda fosse paga pelo Tesouro, seria um complicador do ponto de vista de programação orçamentária e financeira de médio e longo prazos, além de um péssimo incentivo para governos superestimarem demanda de modo a viabilizar investimentos colossais, deixando a bomba fiscal para explodir em futuros governos. Uma cláusula contratual simples pode prever expressamente que não haverá risco a ser pago por meio do orçamento público.

Recomendamos que se utilize a metodologia de reequilíbrio econômico-financeiro para compensar variações na demanda, tanto para cima quanto para baixo. O reequilíbrio é um procedimento comum utilizado nas agências reguladoras de todos os setores. Sempre que ocorre um evento de risco que não é de responsabilidade do concessionário, a agência reguladora faz as contas e o compensa, geralmente por meio de tarifas ou pela modificação de suas obrigações.

No caso de frustração da demanda, o reequilíbrio pode se dar por meio da postergação ou da supressão de obras. Para quando isso não for possível ou suficiente, o que se deve dar principalmente na segunda metade do prazo do contrato, recomendamos o reequilíbrio por meio da extensão de prazo. Há, ainda, a possibilidade de reequilíbrio por meio de aumento das tarifas, que pode ser utilizada em último caso, quando o conjunto das demais alternativas não for suficiente.

Dada a premissa de não se criar risco fiscal, é fundamental analisar a assunção de risco por parte do usuário. Em primeiro lugar, cabe lembrar que o compartilhamento de risco com o usuário não é somente para os cenários ruins. Ele se beneficiará dos cenários em que a demanda for mais alta, obtendo revisões contratuais que vão garantir antecipação e aumento dos investimentos e/ou a antecipação do fim do contrato para uma nova licitação, justamente quando a via estiver mais congestionada com a alta demanda. Num cenário de baixa demanda, é racional que se promova supressão ou postergação de determinadas obras. Além disso, o usuário ganhará por prevenir uma falência ou abandono do concessionário.

O caso em que o usuário perderia por suportar o risco seria quando a postergação e a supressão de obras não fossem suficientes para reequilibrar a frustração de demanda. Nesse caso, é possível que a solução da agência reguladora preveja uma elevação tarifária ou a prorrogação do prazo da concessão. Mesmo sem considerar o potencial de redução da tarifa, dadas as diversas vantagens, é provável que o consumidor prefira o cenário com compartilhamento ao cenário sem compartilhamento.

Mas há de se considerar que o compartilhamento visa, em primeiro lugar, à redução da exigência de retorno do projeto e, consequentemente, das tarifas (isso não significa que defendemos o leilão por menor tarifa, tema para outro artigo). A título de referência, tomamos a regra de compartilhamento de 70%. Neste modelo, 70% dos desvios da demanda efetiva em relação à estimada, para cima ou para baixo, seriam compartilhados com o setor público, ficando os 30% restantes como ônus ou bônus do concessionário.

Usando métricas de análise de risco do mercado financeiro[2], encontramos um potencial de redução das tarifas de 8% a 22%. Isto é, numa licitação competitiva, os licitantes aceitariam fazer propostas mais agressivas, dado o menor risco do contrato, e, de largada, o usuário teria uma tarifa de 8% a 22% mais baixa do que no cenário atual, em que não há compartilhamento do risco de demanda. Além disso, o consumidor poderia se beneficiar com a antecipação e a inclusão de obras adicionais, em caso de a demanda superar a estimada.

Há, ainda, outros benefícios indiretos. A redução das tarifas vai permitir que mais projetos que seriam deficitários ou demandariam tarifas muito altas tornem-se viáveis, indo ao encontro do tema da expansão do programa brasileiro de concessões rodoviárias, assunto de outro artigo. Propicia, também, menor aversão ao pagamento por parte do usuário, logo, um ambiente político mais favorável e uma menor taxa de fuga de tráfego. Por fim, beneficia por prevenir a falência ou abandono da concessão pelo desinteresse da concessionária, evitando situações como as das concessões de 2012-2014, que se arrastam há uma década com inexecução de obras e sem uma solução jurídica.

Contratos ruins atraem interessados oportunistas e podem levar ao fracasso das concessões por décadas. O início de um novo governo é sempre uma oportunidade para redesenhar políticas públicas. É o momento ideal para se pensar em aprimoramentos no modelo de concessões rodoviárias que será utilizado nos próximos anos, absorvendo as melhores práticas conhecidas nas novas licitações e novos contratos. É preciso que todos os agentes envolvidos, públicos e privados, se unam em defesa de licitações sérias, que promovam a concorrência leal, deem os incentivos adequados e aloquem os riscos corretamente, de modo a selecionar os melhores operadores e as melhores propostas. Com isso em mente, trazemos neste artigo e nos próximos cinco nesta coluna uma série de temas que contribuirão para o aperfeiçoamento do programa federal de concessões rodoviárias.

Edson Silveira Sobrinho é PhD em Economia pela University of Houston, EUA. Foi Secretário de Desenvolvimento da Infraestrutura e um dos principais executivos do Ministério da Economia a liderar reformas regulatórias nos setores de ferrovias, rodovias, aeroportos, saneamento, energia e telecomunicações.

Bruno Sad, PMP, é engenheiro civil pela UnB. Foi Subsecretário de Regulação e Mercados de Infraestrutura do Ministério da Economia. Atualmente é Superintendente Especial do Programa de Parcerias Público Privadas de Sergipe.

Fabiano Pompermayer é Doutor em Engenharia de Produção pela PUC-Rio. É pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e foi Subsecretário de Planejamento de Infraestrutura Nacional no Ministério da Economia.

Marco Boareto é engenheiro civil com especialização em engenharia geotécnica, engenharia ferroviária e gestão de políticas e ciências ambientais. Ele trabalha no serviço público federal desde 2013 e atualmente é chefe de divisão do Departamento de Infraestrutura e Melhoria do Ambiente de Negócios do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços.

O grupo Infra 2038 é um movimento sem fins lucrativos iniciado em 2017, formado por mais de 100 pessoas físicas com grande experiência no setor de infraestrutura. O grupo é movido pela crença que o país precisa avançar fortemente em sua infraestrutura para garantir um aumento de produtividade que, por sua vez, trará ao Brasil uma maior competitividade internacional. Saiba mais aqui


[1] Tomada de Contas TC 012.624/2017-9.

[2] Nota Técnica SEI nº 31280/2022/ME.