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Pequenos produtores dependem de financiamento

O objetivo de redução de disparidades econômicas e sociais tem se perdido com o afrouxamento das regras para receber o benefício

O Brasil é central para a segurança alimentar, serviços ambientais e conservação das florestas e da biodiversidade. (andreas160578/Pixabay/Divulgação)
O Brasil é central para a segurança alimentar, serviços ambientais e conservação das florestas e da biodiversidade. (andreas160578/Pixabay/Divulgação)
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Ideias renováveis

Publicado em 5 de abril de 2022 às, 11h09.

O Brasil é central para a segurança alimentar, serviços ambientais e conservação das florestas e da biodiversidade. O país é o terceiro maior produtor agropecuário e o maior exportador líquido do mundo, segundo dados da FAO. Políticas adequadas para o financiamento da atividade rural podem contribuir para modernizar e intensificar a produção agropecuária, gerando maior eficiência no uso de recursos naturais. Desde a década de 1960, o crédito rural é a política brasileira mais relevante para o setor, sendo fundamental para o financiamento do agronegócio.

Pesquisas do Climate Policy Initative/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CPI / PUC-Rio) sugerem que uma maior oferta de crédito rural muda as decisões de produção, levando a aumentos na produtividade da terra e a menor expansão da área destinada à agropecuária, reduzindo pressões por desmatamento. Essa análise mostra também que os impactos de maior intensificação agrícola e melhor uso da terra estão mais diretamente associados ao crédito direcionado a pequenos produtores.

Nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, os Fundos Constitucionais de Financiamento (FCFs) são relevantes para o setor rural ao prover crédito para produtores e municípios que não possuem fontes alternativas de recursos. Entre os anos agrícolas de 2013/14 e 2020/21, cerca de 78% dos municípios da região de abrangência do Fundo Constitucional do Nordeste (FNE), 59% dos municípios do Fundo Constitucional do Norte (FNO) e 9% dos municípios do Fundo Constitucional do Centro-Oeste (FCO) tinham esses fundos como principal fonte de crédito rural.

Os FCFs foram criados com o objetivo de promover o desenvolvimento econômico e social dessas três regiões historicamente desfavorecidas, fortalecer pequenos e mini produtores e reduzir disparidades de renda intra-regionais. No entanto, os FCFs têm falhado em atender essas questões. Em um trabalho publicado recentemente pelo CPI/PUC-RIO, mostramos que as regras de definição de beneficiários prioritários, apesar de aparentemente alinhadas com os objetivos da política, são muito frouxas. Com isso, não existe uma priorização real na alocação dos recursos.

De fato, os FCFs consideram como produtores prioritários aqueles classificados até pequeno-médio porte, definidos como os que possuem renda bruta anual de até R$ 16 milhões. Usando dados do Censo Agropecuário de 2017, verificamos que 99,96% dos estabelecimentos das regiões dos FCFs possuem receitas que os qualificam como beneficiários prioritários. Dessa forma, praticamente todos os estabelecimentos rurais das regiões atendidas são enquadrados como prioridade.

A classificação de porte dos produtores nos FCFs difere significativamente daquela usada para as demais linhas de crédito rural. Pelo Manual do Crédito Rural do Banco do Central, os pequenos produtores são os que possuem renda bruta anual até R$ 500 mil, enquanto os FCFs consideram mini/pequenos produtores os que têm renda até R$ 4,8 milhões. Os produtores classificados como pequeno-médio pelos FCFs, categoria que não existe para as demais linhas de crédito rural, têm renda bruta entre R$ 4,8 milhões e R$ 16 milhões. Esses produtores de pequeno-médio porte são prioritários para o direcionamento de recursos dos FCFs, mesmo sendo considerados grandes pela classificação do Banco Central. Portanto, a priorização de produtores nos FCFs é perdida com critérios frouxos para a definição de porte.

Cabe destacar que esses critérios de priorização foram ficando mais permissivos ao longo dos anos, contribuindo para a concentração dos recursos dos fundos, evidenciada pelo aumento do valor médio dos contratos. Por exemplo, até 2010, a prioridade era dada para produtores até pequeno porte, definidos como tendo renda bruta anual até R$ 300.000. Em 2011, foi criada a nova classe prioritária de porte pequeno-médio e os beneficiários com renda bruta anual até R$ 16 milhões também passaram a ser considerados prioritários.

O segundo tipo de priorização dos FCFs é a espacial e apresenta problemas semelhantes.   A maior parte dos municípios das regiões de abrangência dos fundos são classificados como prioritários. Há diversos critérios usados para priorização de municípios: semiárido, regiões integradas de desenvolvimento (RIDES), faixa de fronteira e municípios até média renda pela tipologia da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR). No trabalho, constatamos que os municípios prioritários representam 97%, 93% e 56% do total de municípios do FNE, FNO e FCO, respectivamente. Novamente, a abrangência das prioridades espaciais dificulta a focalização dos recursos.

Ainda assim, os recursos dos FCFs são relevantes para localidades com pouca oferta de crédito. Em contraste com a região Centro-Oeste, onde a disponibilidade de crédito rural é maior, as regiões Norte e Nordeste têm poucas fontes de recursos para o crédito rural. De fato, 77% dos municípios da região de abrangência do FNE e 59% da região do FNO têm os FCFs como principal fonte de recurso.

É importante que a política pública tenha objetivos bem definidos e socialmente relevantes. Os FCFs buscam contribuir para o desenvolvimento econômico e social das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, mas as regras frouxas para priorizar recursos dificultam a redução das desigualdades intra e entre regiões. Há, ainda, uma multiplicidade de regras e variações frequentes que geram imprevisibilidade da disponibilidade de recursos. Portanto, uma redefinição dos critérios e uma simplificação das regras podem proporcionar tanto uma melhor aplicação dos recursos como em uma melhor compreensão e avaliação do direcionamento da política.

*Priscila Souza é coordenadora de Avaliação de Políticas e Instrumentos Financeiros do CPI/PUC-Rio e Leila Pereira é Analista Sênior do CPI/PUC-Rio.