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Como a pecuária brasileira pode enfrentar os desafios futuros

Mesmo com aumento da demanda, a atividade deve ficar mais difícil para os pequenos produtores. Mas há saídas

Estudo aponta as transformações do mundo e seus impactos na pecuária brasileira (Wenderson Araujo/Trilux/Sistema Senar-CNA/Divulgação)
Estudo aponta as transformações do mundo e seus impactos na pecuária brasileira (Wenderson Araujo/Trilux/Sistema Senar-CNA/Divulgação)

Pelo menos metade dos pecuaristas brasileiros deve deixar a pecuária até 2040. A previsão é da mais recente edição da série “Desafios do Agronegócio Brasileiro”, um estudo sobre as transformações do mundo e seus impactos na pecuária brasileira, realizado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), para orientar as decisões do setor.

O motivo pelo qual o trabalho estima que tanta gente vá deixar a atividade não é a queda na venda de carne bovina, já que o texto também prevê que a pecuária brasileira deve continuar a crescer, não só no mercado nacional, mas com mais demanda de países asiáticos, como China e Hong Kong, que já compram mais de 40% de toda a carne que mandamos para fora. O que explica a projeção, então?

O estudo aponta para mais sofisticação na pecuária, com ampliação do uso da tecnologia e muito mais produtividade, além de maior busca por qualidade e cortes diferenciados. Consumidores mais exigentes, no entanto, podem dificultar a vida dos pequenos produtores, pois estarão de olho no fim do desmatamento, bem-estar animal e em soluções sustentáveis, como integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF).

Além do papel ainda mais central da tecnologia, os pesquisadores da Embrapa acreditam que a cadeia produtiva de carne bovina vai precisar ser melhor gerenciada, em todas as suas etapas. A digitalização de processos será muito importante para garantir critérios que se tornarão cada vez mais essenciais no mercado: certificação, rastreabilidade e qualidade.

Neste contexto, o Radar Verde, único indicador, público e independente, de transparência e controle da cadeia de produção e comercialização de carne bovina no Brasil, será ainda mais relevante. Além de avaliar o grau de comprometimento de frigoríficos e supermercados com a garantia de que a carne bovina que compram e vendem não está relacionada ao desmatamento da Amazônia Legal, o índice fornece informações aos financiadores, aos consumidores e também é útil para que a comunidade internacional acompanhe a segurança dos exportadores brasileiros.

Outro ponto positivo, é que o índice mostra a evolução da cadeia ao longo dos anos. Os resultados da última edição, inclusive, mostram que ainda temos muito a avançar, uma vez que 92% dos frigoríficos e 95% dos varejistas da Amazônia não apresentam controle de nenhuma etapa da cadeia pecuária. E ninguém demonstra controle da cadeia toda.

Será fundamental acompanhar a evolução das empresas na lista para ver se e como estão melhorando seu monitoramento e tirando as ilegalidades da cadeia. O Estado do Pará anunciou que terá todo o gado monitorado (inclusive os fornecedores indiretos) para a Conferência do Clima (COP30) em Belém no final de 2025. É um prazo apertado. Um levantamento também realizado pelo Radar Verde revelou que das 132 empresas frigoríficas com plantas na Amazônia, 34 operam no Pará.

Dessas 34 empresas, só 9 mostraram algum controle das fazendas fornecedoras diretas. São aquelas que engordam o gado nos últimos meses antes do abate. Mesmo essas 9 empresas não demonstraram ainda controle das outras fazendas por onde o gado passou. E as outras empresas não mostraram controle de nenhuma etapa da cadeia. Se o Estado do Pará estiver no caminho de regularizar sua cadeia de carne, o progresso será acompanhado nos próximos relatórios do Radar Verde.

Esse desafio impacta o setor. Voltando à pesquisa da Embrapa, o novo cenário - que não inclui apenas mais exigências sociais e ambientais - deve gerar uma crise no campo, por conta dos pecuaristas que não conseguirão se manter na atividade, quase metade dos 1,3 milhão de produtores do país. “Vamos ter menos produtores, que serão mais tecnificados e terão maior volume de produção. Quem for pequeno ou se organiza em cooperativas, em associações, em rede, ou não sobreviverá”, afirma o pesquisador Elísio Contini.

Mas, uma recomendação de outro estudo, que acaba de ser lançado pelo Amazônia 2030, aponta uma saída para a área da Amazônia Legal, uma das mais relevantes do país na atividade: concentrar a pecuária em um raio de 60 quilômetros dos frigoríficos. O trabalho, liderado pelos pesquisadores Paulo Barreto, Ritaumaria Pereira e Arthur José da Silva Rocha, mostra que o uso da terra para a pecuária bovina na Amazônia Legal ainda é ineficiente e incentiva a escassez e o desmatamento, o que fica evidente nos baixos indicadores socioeconômicos da região, apesar da utilização de uma imensa área.

Para resolver o problema e, ao mesmo tempo, garantir que os pecuaristas da região sobrevivam a um mercado cada vez mais exigente, o estudo propõe uma maior concentração da atividade pecuária nas proximidades dos frigoríficos existentes, como uma forma de otimizar a produção, tornando-a mais competitiva e menos impactante. Para isso, é preciso aproveitar melhor os espaços, aprimorando técnicas de cultivo e manejo, que melhorem a produtividade e diminuam a necessidade de abrir novas áreas para pastagem, o que traz um benefício ambiental. Ainda segundo o estudo, os fazendeiros de regiões mais próximas aos abatedouros demonstram maior propensão a adotar inovações.

Adotar essas práticas pode elevar a produtividade média do gado bovino de 80 kg/hectare/ano para 300 kg por hectare/ano, o que geraria ganhos significativos. Além dos benefícios óbvios de diminuir os custos de transporte e o sofrimento dos animais, concentrar os esforços em algumas zonas facilitaria o trabalho do governo no direcionamento de políticas para acelerar a adoção de melhores práticas na pecuária, além de oferta de crédito rural e assistência técnica. Infraestruturas que garantam melhoria de qualidade de vida e sejam convenientes para o comércio, como manutenção de estradas, acesso à energia e comunicação, também podem ser priorizadas nas regiões próximas aos frigoríficos. Esses estabelecimentos, por sua vez, devem ser monitorados para que também façam a sua parte no controle da cadeia — e aí novamente entra o Radar Verde.

Ao concentrar a pecuária em zonas menores e recuperar pastagens degradadas, mais áreas ficariam livres para outras atividades econômicas, garantindo emprego em outros setores, incluindo a restauração florestal e a venda de créditos de carbono. Segundo o Amazônia 2030, aumentar a produtividade permitirá liberar 37 milhões de hectares de terras. Ou seja, não precisamos aumentar a crise social e econômica no campo, basta tomarmos as decisões certas. Não há mais tempo a perder.