A entrevista destemida e exclusiva de Paulo André
Paulo André se destacou nos últimos anos como zagueiro do Corinthians. Com ele em campo, o clube conquistou o campeonato mundial de clubes de 2012. Mas se dentro de campo Paulo André se tornou exemplo para novos jogadores, fora de campo se tornou líder do Bom Senso FC, grupo de jogadores que defendem melhores condições para o futebol brasileiro. Paulo André é ferrenho defensor da modernização do esporte e, mais […] Leia mais
Da Redação
Publicado em 22 de agosto de 2014 às 11h55.
Última atualização em 24 de fevereiro de 2017 às 08h22.
Paulo André se destacou nos últimos anos como zagueiro do Corinthians. Com ele em campo, o clube conquistou o campeonato mundial de clubes de 2012. Mas se dentro de campo Paulo André se tornou exemplo para novos jogadores, fora de campo se tornou líder do Bom Senso FC, grupo de jogadores que defendem melhores condições para o futebol brasileiro. Paulo André é ferrenho defensor da modernização do esporte e, mais especificamente, o futebol. Suas maiores armas, contudo, são a capacidade de raciocínio e articulação. Aliado a isso, uma coragem poucas vezes vista na história do nosso esporte.
O Esporte Executivo conseguiu uma entrevista especial com o homem que, mesmo morando e jogando atualmente na China, está mais presente no futebol brasileiro que muitos dirigentes que moram em nossas capitais. Em pauta, a gestão do esporte brasileiro. E a prévia confissão deste blogueiro que, estupefato, teve dificuldades em acreditar na qualidade e ousadia das respostas cirúrgicas de Paulo André:
Esporte Executivo / Exame.com: Você sempre se destacou, entre outras coisas, pela habilidade na comunicação. Os atletas de quaisquer esportes, quando conseguem se desenvolver neste aspecto, tendem a ser mais valorizados por seus clubes ou são vistos como ameaça?
Paulo André: No esporte de alto rendimento o atleta é cobrado diariamente pelos resultados, por sua performance. A boa comunicação pode auxiliar no dia-a-dia com os companheiros, com a comissão técnica ou em situações delicadas diante da imprensa. Mas se os resultados não forem positivos, de nada adianta se comunicar bem. Por outro lado, se os resultados forem positivos e o atleta souber usar sua exposição midiática para defender uma posição, ideia ou ideal, de fato, ele poderá ser mais valorizado e mais criticado também.
Pensando apenas no Brasil, você consegue enxergar algum esporte que tenha desenvolvido sua gestão conforme você imagina ser possível no futebol?
Eu acho que o Comitê Paralímpico tem feito um grande trabalho, especialmente sob a gestão do Andrew. Houve uma profissionalização na maneira de se administrar as modalidades, fazendo com que as decisões sejam mais técnicas e menos políticas. O estatuto é democrático, limita os mandatos e dá voz aos atletas. Por isso os resultados são expressivos.
O Bom Senso FC já tem quase um ano de vida. Pensa que avançaram, como grupo, conforme imaginaram? Atualmente estão além ou aquém do que imaginariam estar nesta fase?
Acredito que os avanços foram significativos. Há um ano era impossível imaginar que os atletas de futebol, uma categoria historicamente desunida e desinteressada, poderiam iniciar um movimento como esse. Conseguimos duas audiências com a Presidente da República, freamos a LRFE e conseguimos acrescentar emendas ao projeto. Mais do que isso, o nível de discussão acerca das mazelas do futebol brasileiro evoluiu muito desde que levantamos nossas bandeiras e apresentamos as nossas propostas. A CBF não pode deixar de dar ouvido aos principais atores do esporte que ela administra. Ganhamos o apoio dos treinadores, dos executivos do futebol, das atletas do futebol feminino e do beach soccer, todos insatisfeitos com a inércia da entidade que só se preocupa com a Seleção do Brasil e com os R$ 400 milhões de patrocínio.
Sua liderança é natural no Bom Senso. Vocês têm formalizado internamente as lideranças ou isso acontece organicamente? Como se organizam?
Sabendo da escassez de tempo dos atletas devido a rotina de jogos, optamos, em janeiro, por montar uma equipe profissional, capaz de estruturar o movimento, fazer pesquisas, organizar as pautas e as agendas, reunir as vozes e alinhar o discurso. Esse grupo é responsável por fornecer material e informação para que os atletas possam tomar as decisões, de acordo com a vontade da maioria. Dentre os atletas, alguns participam mais e outros menos. Uns gostam de opinar, outros preferem apenas apoiar. Como o medo de retaliação ainda é muito grande, quem dá a cara nas entrevistas e nos eventos públicos são os jogadores de maior renome e de maior estabilidade, não porque estão atuando em causa própria, mas porque é muito mais difícil sofrerem pressão dos clubes e dos dirigentes. Em pleno século XXI, o futebol brasileiro ainda tem ranços fortíssimos da ditadura. É só olhar o estatuto da CBF pra entender o que quero dizer.
Este blog Esporte Executivo sempre aponta que eventos esportivos no Brasil ainda não são vistos como uma plataforma maior de entretenimento. E justamente quem deveria se preocupar apenas com a parte principal do entretenimento (os atletas, com as partidas) passa a se preocupar com questões estruturais do esporte. Como jogadores, também se ressentem por não fazer parte de campeonatos mais completos ou as preocupações que defendem são prioritariamente focadas nas consequências que encontrarão dentro das quatro linhas?
Eu já cansei de dizer que o Bom Senso não é um sindicato de atletas que quer melhorias única e exclusivamente para a categoria. Exatamente por esse motivo tem o apoio da Associação dos Treinadores, dos Executivos do Futebol, das atletas do futebol feminino e dos jogadores do beach soccer. Movimento é muito mais amplo, defende a modernização do futebol nacional, a melhora do espetáculo, o fortalecimento dos clubes, a presença e a qualidade da experiência do torcedor no estádio, o aumento dos investimentos na capacitação dos treinadores e executivos, na formação de novos atletas e de outras modalidades (futebol feminino e beach soccer). Ou seja, tudo o que a CBF deveria fazer e não faz. E tudo que os clubes deveriam exigir e não exigem por medo de retaliação ou por terem rabo preso com o sistema (adiantamento de verbas, etc…). Os atletas, dentre os “atores” mais importantes do futebol – CBF, Clubes e jogadores -, foram os primeiros a perceber e ter coragem que é necessário enfrentar o status quo político burocrático que se sustenta no art. 217, inciso I da Constituição, e lutar por uma reforma no nosso futebol para salva-lo das mãos incompetentes dos cartolas que nos enfiaram num buraco bem fundo.
O argumento de alguns é de que, olhando para os demais países da América Latina, a estrutura do futebol no Brasil está mais evoluída. O que pensa sobre este argumento? Se discorda, pode o Brasil liderar essa evolução continental?
O Brasil tem a maior economia da América Latina, tem mais tradição e mais títulos no futebol, logo, não há do que se vangloriar por ter a estrutura de futebol mais evoluída da região. É apenas uma obrigação. Sem dúvida o Brasil, olhando para os seus interesses e percebendo que está atrasado com relação aos avanços estruturais do futebol europeu, precisa assumir o seu papel de liderança e comandar esse processo de evolução do futebol continental. A Comenbol e suas competições são uma tristeza se comparadas ao que poderiam ser (não comparo nem com a Champions League porque seria injusto). Mas antes de qualquer pretensão internacional, é preciso resolver nossos problemas internos. Se falta vontade política e conhecimento técnico para resolver as questões aqui, imagine as questões internacionais.
Vê na Conmebol alguma condição de auxiliar o futebol brasileiro nesta retomada?
Não.
Há atualmente uma grande discussão sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal aos gestores esportivos. Ao que parece, o principal ponto de discordância para o Bom Senso é a falta de rigidez para com quem de fato não for responsável. Qual o risco que se corre ao refinanciar a dívida dos clubes sem exigir responsabilidade plena dos gestores? Mais que estagnação, há chance de retrocesso?
O risco é conceder o parcelamento, livrar a pele de um bando de dirigentes que poderiam ser julgados por crime de apropriação indébita (retenção do IR e INSS dos atletas e não repassado à União) e ainda ter que voltar a discutir o parcelamento das novas dívidas dos clubes daqui a alguns anos. O Reffis (último programa de resgate aos clubes) não completou nem 10 anos e já estamos, de novo, com R$4 bilhões em dívida. Não podemos cair no mesmo erro de novo. É um tremendo retrocesso, uma perda de tempo irrecuperável.
Vocês têm uma proposta bastante equilibrada quanto ao Fair-Play Financeiro. Este item, tanto quanto o calendário atual, parece dizimar o futebol brasileiro. Há apoio, por exemplo, do Governo federal para a criação dessa agência reguladora que controlaria as finanças dos clubes?
O Governo Federal entendeu que a LRFE do jeito que está não moralizará ou qualificará a gestão no futebol. A proposta do BS é para que haja um órgão que fiscalize não só a apresentação das CNDs, como propõe o projeto, mas fiscalize também o controle de déficit, o custo futebol, a padronização dos balanços dos clubes, o cumprimento da integralidade dos contratos de trabalho, etc. Para cada infração em qualquer um dos itens, há um tipo de punição. Nossa proposta visa prevenir as gestões temerárias, fortalecer os clubes e equilibrar a disputa entre eles (que cada um gaste apenas aquilo que arrecada). A partir daí, a discussão da divisão dos direitos de transmissão se farão ainda mais indispensáveis. Mas até lá, precisamos garantir que a casa esteja em ordem.
Como vê a arquitetura e gestão do futebol no Brasil? Conseguimos ajustar ou precisamos recomeçar?
Precisamos democratizar o estatuto da CBF. Essa é a pedra angular. Não podemos ser reféns de presidentes de Federações estaduais que estão há 20, 30 ou 40 anos no poder. Eles têm maioria no colégio eleitoral e impedem, via clausula de barreira, qualquer possibilidade significativa de mudança de poder dentro da entidade. É preciso oxigenar a estrutura e qualificar os “tomadores de decisão” do futebol brasileiro. Outra coisa, dentro dos clubes, o nosso maior problema continua sendo o modelo jurídico das instituições esportivas, que foram forjadas na década de 40 durante o Estado Novo de Getúlio Vargas. Este mesmo formato cerceia o profissionalismo, ao não permitir profissionais remunerados nos cargos de decisão. Então oferecer benefícios fiscais no mínimo equivalentes aos que os clubes têm hoje (enquanto associações sem fins lucrativos) para fazer com que eles se tornem S/A é, na minha opinião, o melhor caminho para o futebol brasileiro.
Você enxerga como viável, considerando os pontos levantados pelo Bom Senso, que a recuperação do futebol brasileiro se dê com o atual formato e formação da CBF?
Não.
É contra ou a favor da criação de uma liga de clubes? Qual modelo de liga fora do Brasil que mais o agrada? Aliás, vê algo na liga chinesa que possa ser implantado por aqui?
Sou a favor da Liga de Clubes. Acho que aceleraríamos o processo de modernização dos nossos campeonatos em 10 vezes. Os clubes precisam entender que vendem o mesmo produto, são adversários dentro de campo, mas precisam um do outro fora dele. Estão perdendo tempo e dinheiro deixando tudo na mão da CBF. O modelo inglês e alemão são admiráveis. A Liga Chinesa ainda tem um longo caminho a percorrer.
Se a favor de uma Liga, ficaria a CBF cuidando exclusivamente da seleção? Como imagina este desenho?
É aí que mora o perigo. Quando se fala em cuidar “exclusivamente” da Seleção, retiramos da CBF sua essencia de existir. A CBF tem o dever de cuidar da Seleção (masculina, feminina, beach soccer), mas, mais importante do que isso, precisa reinvestir sua gigantesca arrecadação (oriunda do patrimônio nacional que é a própria Seleção) no fomento, no desenvolvimento e no aprimoramento do futebol em todas as suas dimensões – social, educacional, formação e alto rendimento. Essa é a principal responsabilidade de uma entidade que administra o desporto (futebol) nacional. Esse é o ponto. Da maneira como está constituída hoje, sem estudiosos, cientistas, treinadores e atletas em sua composição, você acha que ela tem capacidade de direcionar os investimentos de forma técnica e competente? Ela é tão incapaz que acredita que organizar competições juvenis e profissionais seja suficiente para fomentar e desenvolver o futebol brasileiro. É uma vergonha! E o pior, ninguém tem o direito de cobrá-la porque ela se ampara do Art. 217, inciso I da Constituição que lhe dá independência financeira e estatutária. Só os presidentes das federações, via Assembleia Geral, poderiam mudar isso. Ou seja, sentemos e choremos.
Há uma série de empresas que ainda não investe no futebol justamente por considerar um mercado inseguro pra isso, considerando planejamentos de longo prazo. E isso se dá desde os clubes da séria A, chegando àqueles que vocês consideram quase amadores, por trabalharem apenas quatro meses ao ano. Por que há tanta resistência à profissionalização no esporte?
Porque quando virar um negócio sério, os espertalhões pararão de mamar nas tetas da vaca. Enquanto eles forem maioria no colégio eleitoral, não permitirão a mudança. Os clubes precisam entender que há muito mais dinheiro por aí e que há muita gente querendo investir no futebol, mas só darão esse passo quando houver segurança e transparência na gestão dos clubes.
Teme que, justamente por sua liderança cerebral, sua volta ao futebol brasileiro seja dificultada no futuro? Porque os dirigentes parecem não gostar de quem emite opinião. Chegam a imaginar que, por não falar só sobre jogadas, táticas e técnicas, um jogador não está focado em sua principal atribuição. Enfim, ser bem articulado pode trazer consequências ruins para sua carreira como jogador?
Não gostam do debate aqueles que não conseguem sustentar suas ideias. Eu nunca faltei a um treino enquanto jogava no Corinthians. Pelo contrário, busquei trabalhar mais pois sabia que meu telhado era, a cada nova confrontação, de vidro. Conquistei 5 títulos, escrevi um livro e fiz um leilão beneficente de obras de arte (pós Mundial de clubes) que arrecadou R$ 800 mil reais. Ou seja, há vida antes, durante e depois do futebol. O que não há mais é espaço para dirigentes incompetentes que se utilizam de sua posição para ameaçar atletas, clubes ou quem quer que seja. Quanto as consequências, que cada um tenha consciência do caminho que escolheu. Eu faria tudo de novo. Nada do que me aconteceu ou me acontecerá me surpreende.
Se num passe de mágica, fosse oferecido a você hoje o cargo de líder da CBF, ou o Ministério do Esporte… Consegue se imaginar desde já com tais atribuições? Quando encerar a carreira de jogador, pretende ser ainda mais atuante para a reformulação do futebol brasileiro ou pretende se dedicar a aspirações menos públicas?
Eu confesso que vivo de paixão. Enquanto minhas ideias e meus ideais me despertarem interesse, lutarei por eles. Assim também é com a minha carreira de atleta, já que ainda sinto prazer e frio na barriga ao entrar em um estádio lotado. Enquanto isso acontecer, jogarei futebol. Ao mesmo tempo, enquanto eu acreditar no poder de transformação do futebol ou do esporte como um todo, estudarei e lutarei para que eles sejam mais democráticos e melhores.
Paulo André se destacou nos últimos anos como zagueiro do Corinthians. Com ele em campo, o clube conquistou o campeonato mundial de clubes de 2012. Mas se dentro de campo Paulo André se tornou exemplo para novos jogadores, fora de campo se tornou líder do Bom Senso FC, grupo de jogadores que defendem melhores condições para o futebol brasileiro. Paulo André é ferrenho defensor da modernização do esporte e, mais especificamente, o futebol. Suas maiores armas, contudo, são a capacidade de raciocínio e articulação. Aliado a isso, uma coragem poucas vezes vista na história do nosso esporte.
O Esporte Executivo conseguiu uma entrevista especial com o homem que, mesmo morando e jogando atualmente na China, está mais presente no futebol brasileiro que muitos dirigentes que moram em nossas capitais. Em pauta, a gestão do esporte brasileiro. E a prévia confissão deste blogueiro que, estupefato, teve dificuldades em acreditar na qualidade e ousadia das respostas cirúrgicas de Paulo André:
Esporte Executivo / Exame.com: Você sempre se destacou, entre outras coisas, pela habilidade na comunicação. Os atletas de quaisquer esportes, quando conseguem se desenvolver neste aspecto, tendem a ser mais valorizados por seus clubes ou são vistos como ameaça?
Paulo André: No esporte de alto rendimento o atleta é cobrado diariamente pelos resultados, por sua performance. A boa comunicação pode auxiliar no dia-a-dia com os companheiros, com a comissão técnica ou em situações delicadas diante da imprensa. Mas se os resultados não forem positivos, de nada adianta se comunicar bem. Por outro lado, se os resultados forem positivos e o atleta souber usar sua exposição midiática para defender uma posição, ideia ou ideal, de fato, ele poderá ser mais valorizado e mais criticado também.
Pensando apenas no Brasil, você consegue enxergar algum esporte que tenha desenvolvido sua gestão conforme você imagina ser possível no futebol?
Eu acho que o Comitê Paralímpico tem feito um grande trabalho, especialmente sob a gestão do Andrew. Houve uma profissionalização na maneira de se administrar as modalidades, fazendo com que as decisões sejam mais técnicas e menos políticas. O estatuto é democrático, limita os mandatos e dá voz aos atletas. Por isso os resultados são expressivos.
O Bom Senso FC já tem quase um ano de vida. Pensa que avançaram, como grupo, conforme imaginaram? Atualmente estão além ou aquém do que imaginariam estar nesta fase?
Acredito que os avanços foram significativos. Há um ano era impossível imaginar que os atletas de futebol, uma categoria historicamente desunida e desinteressada, poderiam iniciar um movimento como esse. Conseguimos duas audiências com a Presidente da República, freamos a LRFE e conseguimos acrescentar emendas ao projeto. Mais do que isso, o nível de discussão acerca das mazelas do futebol brasileiro evoluiu muito desde que levantamos nossas bandeiras e apresentamos as nossas propostas. A CBF não pode deixar de dar ouvido aos principais atores do esporte que ela administra. Ganhamos o apoio dos treinadores, dos executivos do futebol, das atletas do futebol feminino e do beach soccer, todos insatisfeitos com a inércia da entidade que só se preocupa com a Seleção do Brasil e com os R$ 400 milhões de patrocínio.
Sua liderança é natural no Bom Senso. Vocês têm formalizado internamente as lideranças ou isso acontece organicamente? Como se organizam?
Sabendo da escassez de tempo dos atletas devido a rotina de jogos, optamos, em janeiro, por montar uma equipe profissional, capaz de estruturar o movimento, fazer pesquisas, organizar as pautas e as agendas, reunir as vozes e alinhar o discurso. Esse grupo é responsável por fornecer material e informação para que os atletas possam tomar as decisões, de acordo com a vontade da maioria. Dentre os atletas, alguns participam mais e outros menos. Uns gostam de opinar, outros preferem apenas apoiar. Como o medo de retaliação ainda é muito grande, quem dá a cara nas entrevistas e nos eventos públicos são os jogadores de maior renome e de maior estabilidade, não porque estão atuando em causa própria, mas porque é muito mais difícil sofrerem pressão dos clubes e dos dirigentes. Em pleno século XXI, o futebol brasileiro ainda tem ranços fortíssimos da ditadura. É só olhar o estatuto da CBF pra entender o que quero dizer.
Este blog Esporte Executivo sempre aponta que eventos esportivos no Brasil ainda não são vistos como uma plataforma maior de entretenimento. E justamente quem deveria se preocupar apenas com a parte principal do entretenimento (os atletas, com as partidas) passa a se preocupar com questões estruturais do esporte. Como jogadores, também se ressentem por não fazer parte de campeonatos mais completos ou as preocupações que defendem são prioritariamente focadas nas consequências que encontrarão dentro das quatro linhas?
Eu já cansei de dizer que o Bom Senso não é um sindicato de atletas que quer melhorias única e exclusivamente para a categoria. Exatamente por esse motivo tem o apoio da Associação dos Treinadores, dos Executivos do Futebol, das atletas do futebol feminino e dos jogadores do beach soccer. Movimento é muito mais amplo, defende a modernização do futebol nacional, a melhora do espetáculo, o fortalecimento dos clubes, a presença e a qualidade da experiência do torcedor no estádio, o aumento dos investimentos na capacitação dos treinadores e executivos, na formação de novos atletas e de outras modalidades (futebol feminino e beach soccer). Ou seja, tudo o que a CBF deveria fazer e não faz. E tudo que os clubes deveriam exigir e não exigem por medo de retaliação ou por terem rabo preso com o sistema (adiantamento de verbas, etc…). Os atletas, dentre os “atores” mais importantes do futebol – CBF, Clubes e jogadores -, foram os primeiros a perceber e ter coragem que é necessário enfrentar o status quo político burocrático que se sustenta no art. 217, inciso I da Constituição, e lutar por uma reforma no nosso futebol para salva-lo das mãos incompetentes dos cartolas que nos enfiaram num buraco bem fundo.
O argumento de alguns é de que, olhando para os demais países da América Latina, a estrutura do futebol no Brasil está mais evoluída. O que pensa sobre este argumento? Se discorda, pode o Brasil liderar essa evolução continental?
O Brasil tem a maior economia da América Latina, tem mais tradição e mais títulos no futebol, logo, não há do que se vangloriar por ter a estrutura de futebol mais evoluída da região. É apenas uma obrigação. Sem dúvida o Brasil, olhando para os seus interesses e percebendo que está atrasado com relação aos avanços estruturais do futebol europeu, precisa assumir o seu papel de liderança e comandar esse processo de evolução do futebol continental. A Comenbol e suas competições são uma tristeza se comparadas ao que poderiam ser (não comparo nem com a Champions League porque seria injusto). Mas antes de qualquer pretensão internacional, é preciso resolver nossos problemas internos. Se falta vontade política e conhecimento técnico para resolver as questões aqui, imagine as questões internacionais.
Vê na Conmebol alguma condição de auxiliar o futebol brasileiro nesta retomada?
Não.
Há atualmente uma grande discussão sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal aos gestores esportivos. Ao que parece, o principal ponto de discordância para o Bom Senso é a falta de rigidez para com quem de fato não for responsável. Qual o risco que se corre ao refinanciar a dívida dos clubes sem exigir responsabilidade plena dos gestores? Mais que estagnação, há chance de retrocesso?
O risco é conceder o parcelamento, livrar a pele de um bando de dirigentes que poderiam ser julgados por crime de apropriação indébita (retenção do IR e INSS dos atletas e não repassado à União) e ainda ter que voltar a discutir o parcelamento das novas dívidas dos clubes daqui a alguns anos. O Reffis (último programa de resgate aos clubes) não completou nem 10 anos e já estamos, de novo, com R$4 bilhões em dívida. Não podemos cair no mesmo erro de novo. É um tremendo retrocesso, uma perda de tempo irrecuperável.
Vocês têm uma proposta bastante equilibrada quanto ao Fair-Play Financeiro. Este item, tanto quanto o calendário atual, parece dizimar o futebol brasileiro. Há apoio, por exemplo, do Governo federal para a criação dessa agência reguladora que controlaria as finanças dos clubes?
O Governo Federal entendeu que a LRFE do jeito que está não moralizará ou qualificará a gestão no futebol. A proposta do BS é para que haja um órgão que fiscalize não só a apresentação das CNDs, como propõe o projeto, mas fiscalize também o controle de déficit, o custo futebol, a padronização dos balanços dos clubes, o cumprimento da integralidade dos contratos de trabalho, etc. Para cada infração em qualquer um dos itens, há um tipo de punição. Nossa proposta visa prevenir as gestões temerárias, fortalecer os clubes e equilibrar a disputa entre eles (que cada um gaste apenas aquilo que arrecada). A partir daí, a discussão da divisão dos direitos de transmissão se farão ainda mais indispensáveis. Mas até lá, precisamos garantir que a casa esteja em ordem.
Como vê a arquitetura e gestão do futebol no Brasil? Conseguimos ajustar ou precisamos recomeçar?
Precisamos democratizar o estatuto da CBF. Essa é a pedra angular. Não podemos ser reféns de presidentes de Federações estaduais que estão há 20, 30 ou 40 anos no poder. Eles têm maioria no colégio eleitoral e impedem, via clausula de barreira, qualquer possibilidade significativa de mudança de poder dentro da entidade. É preciso oxigenar a estrutura e qualificar os “tomadores de decisão” do futebol brasileiro. Outra coisa, dentro dos clubes, o nosso maior problema continua sendo o modelo jurídico das instituições esportivas, que foram forjadas na década de 40 durante o Estado Novo de Getúlio Vargas. Este mesmo formato cerceia o profissionalismo, ao não permitir profissionais remunerados nos cargos de decisão. Então oferecer benefícios fiscais no mínimo equivalentes aos que os clubes têm hoje (enquanto associações sem fins lucrativos) para fazer com que eles se tornem S/A é, na minha opinião, o melhor caminho para o futebol brasileiro.
Você enxerga como viável, considerando os pontos levantados pelo Bom Senso, que a recuperação do futebol brasileiro se dê com o atual formato e formação da CBF?
Não.
É contra ou a favor da criação de uma liga de clubes? Qual modelo de liga fora do Brasil que mais o agrada? Aliás, vê algo na liga chinesa que possa ser implantado por aqui?
Sou a favor da Liga de Clubes. Acho que aceleraríamos o processo de modernização dos nossos campeonatos em 10 vezes. Os clubes precisam entender que vendem o mesmo produto, são adversários dentro de campo, mas precisam um do outro fora dele. Estão perdendo tempo e dinheiro deixando tudo na mão da CBF. O modelo inglês e alemão são admiráveis. A Liga Chinesa ainda tem um longo caminho a percorrer.
Se a favor de uma Liga, ficaria a CBF cuidando exclusivamente da seleção? Como imagina este desenho?
É aí que mora o perigo. Quando se fala em cuidar “exclusivamente” da Seleção, retiramos da CBF sua essencia de existir. A CBF tem o dever de cuidar da Seleção (masculina, feminina, beach soccer), mas, mais importante do que isso, precisa reinvestir sua gigantesca arrecadação (oriunda do patrimônio nacional que é a própria Seleção) no fomento, no desenvolvimento e no aprimoramento do futebol em todas as suas dimensões – social, educacional, formação e alto rendimento. Essa é a principal responsabilidade de uma entidade que administra o desporto (futebol) nacional. Esse é o ponto. Da maneira como está constituída hoje, sem estudiosos, cientistas, treinadores e atletas em sua composição, você acha que ela tem capacidade de direcionar os investimentos de forma técnica e competente? Ela é tão incapaz que acredita que organizar competições juvenis e profissionais seja suficiente para fomentar e desenvolver o futebol brasileiro. É uma vergonha! E o pior, ninguém tem o direito de cobrá-la porque ela se ampara do Art. 217, inciso I da Constituição que lhe dá independência financeira e estatutária. Só os presidentes das federações, via Assembleia Geral, poderiam mudar isso. Ou seja, sentemos e choremos.
Há uma série de empresas que ainda não investe no futebol justamente por considerar um mercado inseguro pra isso, considerando planejamentos de longo prazo. E isso se dá desde os clubes da séria A, chegando àqueles que vocês consideram quase amadores, por trabalharem apenas quatro meses ao ano. Por que há tanta resistência à profissionalização no esporte?
Porque quando virar um negócio sério, os espertalhões pararão de mamar nas tetas da vaca. Enquanto eles forem maioria no colégio eleitoral, não permitirão a mudança. Os clubes precisam entender que há muito mais dinheiro por aí e que há muita gente querendo investir no futebol, mas só darão esse passo quando houver segurança e transparência na gestão dos clubes.
Teme que, justamente por sua liderança cerebral, sua volta ao futebol brasileiro seja dificultada no futuro? Porque os dirigentes parecem não gostar de quem emite opinião. Chegam a imaginar que, por não falar só sobre jogadas, táticas e técnicas, um jogador não está focado em sua principal atribuição. Enfim, ser bem articulado pode trazer consequências ruins para sua carreira como jogador?
Não gostam do debate aqueles que não conseguem sustentar suas ideias. Eu nunca faltei a um treino enquanto jogava no Corinthians. Pelo contrário, busquei trabalhar mais pois sabia que meu telhado era, a cada nova confrontação, de vidro. Conquistei 5 títulos, escrevi um livro e fiz um leilão beneficente de obras de arte (pós Mundial de clubes) que arrecadou R$ 800 mil reais. Ou seja, há vida antes, durante e depois do futebol. O que não há mais é espaço para dirigentes incompetentes que se utilizam de sua posição para ameaçar atletas, clubes ou quem quer que seja. Quanto as consequências, que cada um tenha consciência do caminho que escolheu. Eu faria tudo de novo. Nada do que me aconteceu ou me acontecerá me surpreende.
Se num passe de mágica, fosse oferecido a você hoje o cargo de líder da CBF, ou o Ministério do Esporte… Consegue se imaginar desde já com tais atribuições? Quando encerar a carreira de jogador, pretende ser ainda mais atuante para a reformulação do futebol brasileiro ou pretende se dedicar a aspirações menos públicas?
Eu confesso que vivo de paixão. Enquanto minhas ideias e meus ideais me despertarem interesse, lutarei por eles. Assim também é com a minha carreira de atleta, já que ainda sinto prazer e frio na barriga ao entrar em um estádio lotado. Enquanto isso acontecer, jogarei futebol. Ao mesmo tempo, enquanto eu acreditar no poder de transformação do futebol ou do esporte como um todo, estudarei e lutarei para que eles sejam mais democráticos e melhores.