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Michele de Souza: uma pessoa que cria tecnologia para auxiliar (e não substituir) o ser humano

Neste Papo de Tubarões apresentamos uma mulher empreendedora, que conheci na quarta temporada do Shark Tank, durante o primeiro programa ao vivo

 (Cris Arcangeli/Reprodução)
(Cris Arcangeli/Reprodução)

Neste Papo de Tubarões apresentamos uma mulher empreendedora, que conheci na quarta temporada do Shark Tank, durante o primeiro programa ao vivo. Ela foi tão consistente, que eu e mais três tubarões investimos na Cycor Cibernética e estamos muito orgulhosos do seu trabalho. Este Papo de Tubarões mostra quem é Michele de Souza, que superou o autismo, teve a coragem de se apresentar ao vivo num programa de alcance nacional e é uma mulher vencedora, determinada, inovadora e uma grande empreendedora, que até inclusive enfrentou um cancelamento e saiu vitoriosa.

Quem é a Michele?

Eu sou uma pessoa que faz o que dizia que iria fazer quando era criança. Empreendo e, como todo empreendedor, resolvo problemas todos os dias. Sou uma pessoa bastante dedicada, gosto muito do que faço, estudo o tempo todo e tenho paixão pela área em que empreendo. Faço isso com amor.

Você escolheu se dedicar a coisas difíceis, a usar sua tecnologia para  transformar a vida de pessoas com deficiências graves. Conte um pouco sobre essas tecnologias e em que estágio estão.

Quem acredita e trabalha com inovação, sabe que uma tecnologia nunca está 100% terminada: sempre pode melhorar. A Cycor Cibernética tem várias tecnologias que estão em estágios diferentes de maturidade. Uma das mais conhecidas é Exoesqueleto, que pode ser aplicado tanto na indústria, como na área de Saúde, para pessoas com e sem deficiência física. Essa é uma tecnologia da qual derivam o Exon USR, que é a unidade de suporte robótico de pernas e o Exon Daf, para membros superiores. O nível de maturidade destes dois produtos já chegou no estágio máximo (TRL/MRL9) e, agora, estamos no processo de registro na área da Saúde para escalar a venda do produto e poder distribuir via Crédito à Acessibilidade, um programa governamental com juros baixos.

O teto desse crédito é de 30 mil reais desde 2019 e, como a produção sem escala é  cara, muitos produtos como o Exoesqueleto não chegam à pessoa com deficiência. Hoje o nosso custo de fabricação dele fica em torno de 24 a 26 mil reais, porque utiliza muitos componentes eletrônicos importados e todas as peças são fabricadas com exclusividade para esta tecnologia. Mas  vamos manter o custo num valor de até 30 mil, para que as pessoas que precisam possam ter acesso a esse Crédito à Acessibilidade.  E, à medida em que aumentarmos a escala, conseguiremos reduzir e diluir o custo de fabricação, ao mesmo tempo em que podemos aumentar a margem.

A rentabilidade do Exon será aplicada na certificação de uma prótese de mão miolétrica, que utiliza uma tecnologia desenvolvida dentro da Cycor, chamada Argedom Robotics. Essa prótese também já chegou ao nível máximo de maturidade (TRL/MRL9) e poderá entrar no SUS a partir da certificação, fazendo com que o Brasil seja o primeiro país a distribuir uma prótese inteligente diretamente para a população.

Funciona assim: nosso corpo trabalha com impulsos elétricos e toda nossa conexão física é feita por comandos elétricos. A Argedom Robotics capta esses sinais, que passam por um sistema que filtra os sinais mioelétricos do corpo e envia esse comando para a máquina. Enquanto as próteses existentes precisam de um treino de 6 a 8 meses para uso, a Argedom Robotics diminuiu essa necessidade para 45 minutos, porque usa uma Inteligência Artificial de hardware, que funciona como uma parte do nosso córtex, com os componentes dispostos na mesma forma em que funciona nosso cérebro. Até agora, as próteses captavam uma gama de sinais que não eram muito eficientes porque utilizam somente um par de sensores. A Argedom traz a possibilidade de trabalharmos com até 16 sensores: para a mão é um par, para conectar a um Exon, são três pares de sensores, todos não implantáveis. Pensamos em fazer parcerias dessa tecnologia com empresas que fabricam próteses, porque elas conseguiriam baixar o preço dos seus produtos, mas não houve nenhuma proposta de negociação até agora. Meu trabalho é reduzir o preço do produto no mercado, utilizando alta tecnologia sem mexer na margem de lucro.

Uma outra tecnologia ainda em processo é o Zeus, que na verdade é a tecnologia mãe da Cycor, pois permite que dela saiam outras. Seu principal foco é o tratamento de doenças por dispositivos, como já acontece com um aparelho de ultrassom que vem sendo utilizado para tratamento de tumores.  O que diferencia o Zeus de outros micro equipamentos desenvolvidos ao redor do mundo, é que ele consegue trabalhar com infrassom e ultrassom ao mesmo tempo, fazendo uma escala de oscilação, passando de um ponto para outro em milésimos de segundo e faz um mapeamento. Como o Zeus está voltado para os pulmões, estamos fazendo testes com vários tipos de doença, como câncer, pneumonia, tuberculose e até sequelas de Covid 19, a partir da pandemia. Esta é uma tecnologia que por enquanto  será utilizada junto com a quimioterapia, em casos de câncer. Minha ideia é fazer grupos de duas a cinco doenças para a tecnologia ser testada, validada em ensaios in vitro, depois por ensaios científicos e clínicos, conforme parâmetros da legislação brasileira. Depois de tudo aprovado, poderemos fazer parcerias com hospitais, passamos pelo conselho de ética e somente depois será dado acesso ao público.

Muitas empresas não têm  a cultura da inovação como você, que também está trabalhando numa tecnologia para permitir que pessoas sem olfato possam sentir cheiros por telas de celular ou computador. Isso para mim, que sempre trabalhei com perfumes, é maravilhoso. Que tecnologia é essa?

É o Scents by Sounds, uma tecnologia desenvolvida para a transmissão de aromas via arquivos de áudio, que foi concebida num primeiro momento, para pessoas com uma deficiência chamada anosmia, que as impede de sentir cheiros. Mas eu precisava escalar essa tecnologia para obter mais recursos financeiros destinados a investir no seu próprio desenvolvimento.  Então, ampliei o alcance para a parte alimentícia e perfumaria, entre outras, porque ela poderá ser usada para qualquer coisa relacionada a aromas com o uso de computador, televisão, celular e rádio.

Muita gente diz que isso é impossível, mas não é. Dois pesquisadores suecos estão trabalhando numa tecnologia parecida, só que funciona por meio de rádio. O Scents trabalha um pouquinho diferente: tudo o que temos ao nosso redor são pulsos elétricos que são recebidos pelo nosso  cérebro. Com o cheiro é a mesma coisa: quando algo libera moléculas no ar, essas moléculas entram por nosso nariz, encostam nos sensores olfativos e emitem um pulso elétrico, que é interpretado por nosso cérebro como um determinado aroma. Nós aprendemos, desde crianças, a associar os pulsos elétricos e determinados cheiros.  A única coisa que fiz nesse processo foi mudar a porta de entrada, criar uma ponte:  cada área do nosso cérebro trabalha com um grupo de frequências elétricas específicas. O centro auditivo trabalha com uma conversão de sinais diferente do centro olfativo e do visual.

Eu criei uma equação que vai fazer uma conversão do sinal elétrico, captado por um espectômetro que dá os hertz quando se coloca uma fragrância. A informação entra no Scents por meio de um protocolo, é convertida e anexada a um arquivo de mp3 não audível. Esse arquivo entra pelo nervo auditivo, mas não é traduzido pela área auditiva, porque é um grupo de frequências que não estão relacionadas com ela. O cérebro recebe essa informação, a "espirra" para algumas áreas, os dados são convertidos pelo centro olfativo e o resultado é a sensação de aroma. Já existe um protocolo de testes com consumidores sendo realizado na PUC, autorizado pelo comitê de ética, para um ensaio com o aroma do café.

Você acha que a IA vai substituir o homem? Acredita, como eu, que a IA vai melhorar a nossa capacidade de condensar e de saber o que realmente precisamos para podermos perguntar corretamente?

Já na época em que se criaram as máquinas a vapor havia uma crença de que a mão de obra humana não seria mais utilizada, porque as máquinas  iriam tomar conta de tudo. As pessoas precisam entender que a tecnologia vem para auxiliar e não  para substituir. Os operadores de máquinas existem até hoje, com a diferença de que eles não estão mais colocando as mãos em risco, pois controlam as coisas por meio de um computador conectado à máquina.

A conexão humana sempre vai existir, mesmo que hajam robôs antropomórficos muito inteligentes, porque nós somos seres sociáveis, dependemos do outro inevitavelmente e afetivamente. Eu tenho menos necessidade de contato social com outras pessoas, por conta do espectro autista,  mas sei que a afetividade é muito importante e vai continuar sendo: isso a máquina não vai substituir. Ela pode simular uma gentileza, como o Chat GPT já faz, mas ainda assim sabemos que a máquina está programada para isso e não nutre a nossa  vontade de ter uma validação de outro ser humano. E isso vai continuar existindo.

Graças a Deus existem pessoas como você que dedicam sua vida para estudar. Nós precisamos incentivar pessoas curiosas, disciplinadas e corajosas, que continuem estudando para que um dia venhamos ter  cura para uma doença grave, para que um  tetraplégico possa se movimentar de uma forma mais digna. Os sharks que investiram  em você estão ali porque querem ver a transformação na vida das pessoas, não pelo retorno financeiro, mas pelo propósito de transformar o mundo, mercados e a vida das pessoas. Falei tudo isso porque você enfrentou um problema de fake news em 2021 e é muito difícil ver mulheres criativas, estudiosas, empreendedoras sendo atacadas como você foi. Dá para contar o que aconteceu?

Resumindo: o Exon seria lançado em 2020, mas veio a pandemia e parei tudo até julho de 2021. Ocorre que durante o processo de validação, foi entendido que ele também poderia ser usado na indústria, porque o Exon USR tem um suporte de força para quase 100 quilos. Só que ainda não havia legislação na Anvisa,  nem no Inmetro e, apesar de termos feito todos os ensaios e testes, não havia como certificar obrigatoriamente ou compulsoriamente. Daí dois youtubers, inclusive com participação uma ex-funcionária que havia sido demitida via ação judicial e uma ex-cliente a quem não pudemos liberar o equipamento por uma questão de segurança, fizeram um vídeo dizendo que o aparelho não funcionava. Mentira total, porque inclusive temos um vídeo dessa ex-funcionária num treino com um cliente. A coisa aumentou, viralizou e sobrou até para os sharks investidores, pois chegaram a dizer que éramos uma fraude do Shark Tank.

Só que ninguém entrou em contato comigo para corroborar e nem para saber como estava sendo feito o processo de certificação, que aliás está ocorrendo agora, inclusive de forma a estruturar uma nomenclatura para que o Exon possa ser distribuído pelo SUS. Foi um verdadeiro processo de assassinato de reputação e me pergunto,  por que fazer isso? Entramos com uma queixa-crime na Delegacia , foi acolhida e transformada em Inquérito Policial a pedido do Delegado e do Ministério Público, também em processo criminal na justiça, está em andamento, mas o Juiz do MP já pediu diligências com prisão dos envolvidos e hoje estou convencida de que existe vida após o cancelamento, a gente sobrevive, se reergue. No final, meu próprio trabalho ficou muito melhor, pois hoje tomo muito mais cuidado com tudo e  os contratos são muito mais rígidos.