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A democracia funcionaria bem se o eleitor fosse apenas ignorante

Nesta altura do campeonato está claro que o liberalismo vai mal. A liberdade declina no mundo há um bom tempo, mas, segundo a Freedom House, o baque de 2016 será o maior desde que a crise financeira virou o mundo de ponta cabeça. O eleitorado tem revelado profunda desilusão com aspirações liberais em campeões da […]

Winston Churchill (Hulton Archive/Keystone/Getty Images)
DR

Da Redação

Publicado em 21 de novembro de 2016 às 12h09.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h23.

Nesta altura do campeonato está claro que o liberalismo vai mal. A liberdade declina no mundo há um bom tempo, mas, segundo a Freedom House, o baque de 2016 será o maior desde que a crise financeira virou o mundo de ponta cabeça. O eleitorado tem revelado profunda desilusão com aspirações liberais em campeões da ideologia como EUA e Reino Unido.

Este contexto estimula os intelectuais a proporem “aperfeiçoamentos”. Para o filósofo americano Jason Brennan, as coisas funcionariam melhor se o voto fosse restrito a uma elite esclarecida. A tese é polêmica. Foi exposta em uma entrevista concedida à Folha há duas semanas.

O argumento soa razoável à primeira vista. Decisões tomadas pela maioria têm que ser engolidas pela totalidade da população e, em muitos casos, as escolhas envolvem riscos elevados. Seria preferível que o julgamento fosse feito por quem tem competência para tal.

A ideia de que a democracia está apoiada em pés de areia não é nova. Churchill disse que uma conversa rápida com o eleitor médio seria o melhor argumento contra o sistema. Para Bill Clinton, o povo fala por meio das eleições, mas é difícil entender o que ele quer dizer.

No campo mais formal, a democracia desperta desconforto em filósofos desde que nasceu. O economista americano Kenneth Arrow demonstrou rigorosamente a impossibilidade de arquitetar um sistema de escolhas sociais que atenda poucos quesitos indiscutíveis de razoabilidade e justiça.

Dito isso, apesar de todas as falhas e dos riscos envolvidos, é difícil engolir a proposta de aperfeiçoar a democracia restringindo o direito ao voto. Na mesma Folha, há uma semana, o escritor português João Pereira Coutinho detonou a proposta: “a política não é uma ciência (…) e pessoas politicamente analfabetas podem saber com lucidez aquilo que desejam para suas vidas, mesmo que desconheçam macroeconomia ou sistemas eleitorais”.

O argumento de Coutinho, não obstante ser politicamente correto, falha por não atacar o ponto levantado por quem defende o voto dos esclarecidos — tese que não parte do pressuposto de que as pessoas não sabem o que querem para suas vidas. A questão é se elas têm condições de avaliar plenamente as implicações de escolhas complexas que afetam as vidas de todos.

Segundo o axioma mais famoso de Mick Jagger, não se pode ter tudo o que se quer. Parece óbvio, mas essa é a lição básica da ciência econômica, matéria sobre a qual muitos são de fato ignorantes (e não sabem disso). Naturalmente as pessoas têm o direito de querer o melhor. Como isso nem sempre é possível é preciso decidir o que deve ser feito antes e como.

A ideia de restringir o direito ao voto é uma tentativa de melhorar a qualidade das escolhas sociais. No entanto, além de antipática e, por assim dizer, antidemocrática, essa tese erra o alvo por uma razão diferente da apontada por Coutinho. A democracia funcionaria às mil maravilhas se as pessoas fossem apenas ignorantes. É simples verificar.

Imagine um país com um milhão de pessoas em que apenas 10 mil são capazes de avaliar competentemente as implicações das políticas públicas. Esse país tem que escolher entre uma proposta populista, palatável (A) e uma proposta alternativa, indigesta, mas necessária (B).

Em estatística, há um animal conhecido por Lei dos Grandes Números. Trata-se de princípio probabilístico que, aplicado ao caso em tela, implica que os votos dos ignorantes para A serão anulados por quantidade semelhante de votos para B – como se o eleitor limitado jogasse uma moeda para decidir.

A aleatoriedade do voto mal informado produz um verdadeiro milagre em nosso exemplo. A população opina, mas quem decide de fato é a elite informada, dentro da qual é razoável supor que a alternativa B será vitoriosa. Voilà! Um mundo povoado por ignorantes toma decisões sábias por meio de voto universal e todos saem felizes. Temos aí a base da teoria da democracia.

Onde está a pegadinha? O problema não é a ignorância da massa, mas sua irracionalidade, especialmente no tocante aos temas econômicos. Pior, a elite também sofre desse mal.

O eleitorado de forma geral não entende os princípios básicos de economia, seja pelo fraco didatismo dos economistas, mas também porque a disciplina é tida como enfadonha. Além disso, muitos “intelectuais” sentem-se confortáveis em discutir temas econômicos sem o devido conhecimento (nem todos os ensinamentos da disciplina são intuitivos). Por isso os debates econômicos parecem com os futebolísticos.

Não menos importante é a propensão que o ser humano tem de agir de acordo com os próprios interesses. As pessoas podem até saber que suas escolhas podem prejudicar o todo, mas os benefícios pessoais falam mais alto – quantos políticos realmente pensam no bem comum? John Nash levou um Nobel ao mostrar que a maioria pode sair perdendo quando cada um cuida do seu.

A irracionalidade do eleitor é o fator que complica a vida da democracia. Na medida em que todos são enviesados, elite incluída, o milagre da agregação proporcionado pela Lei dos Grandes Números vai para o espaço e o sistema fracassa. O risco de isso ocorrer aumenta quando, por exemplo, uma crise provoca elevação de desigualdades.

O populista ganha eleições porque suas falácias ecoam por meio da elite composta por escritores, compositores, professores, juristas, comediantes, empresários, socialites e economistas heterodoxos, por ignorância, ingenuidade, desonestidade, medo de parecer “incorreto”, ou uma combinação desses fatores. A obra prima de Raymond Aron, o Ópio dos Intelectuais, escancara os vieses da intelligentsia esquerdista francesa a partir de sua própria lógica.

A elite brasileira é antiliberal. Nas últimas eleições municipais, ideologia semelhante às que arruinou o Brasil foi vitoriosa em bairros ricos das duas maiores cidades do país. São Paulo e Rio de Janeiro foram salvos do atraso pela “massa ignorante” – não estou aqui defendendo os prefeitos eleitos, mas chamando atenção para a cegueira econômica de uma parcela supostamente esclarecida da população.

Nos Estados Unidos, artistas votaram em candidatos independentes (com atributos e propostas desejáveis, vale dizer), mas claramente inviáveis eleitoralmente, sabendo que essa escolha certamente favoreceria a pior alternativa para eles mesmos, possivelmente de forma decisiva em um páreo apertado. Diga-se, essa é uma das inconsistências elementares que, segundo Arrow, deveria ser evitada por um processo de escolha social consistente.

Além do risco de conceder o poder decisório a uma elite enviesada, a proposta de restringir o direito ao voto envolve o perigo de que o sistema degenere para uma espécie de tirania. Em tese, uma oligarquia esclarecida e benevolente seria capaz de resolver o problema, mas ela não existe.

Você toparia transferir o poder de escolha dos presidentes brasileiros aos economistas inscritos no CRE? Provavelmente não. Eu não aceito transferir meu voto para a comunidade “progressista” de intelectuais brasileiros residentes na França. Diante desse impasse, é melhor estender o voto a todos, tapar o nariz e rezar fervorosamente.

Se, de um lado, restringir o direito ao voto não é o caminho, de outro, afirmações como “analfabetos econômicos sabem o que querem” são também arriscadas porque nivelam por baixo debates que exigiriam conhecimentos prévios para serem superados proveitosamente.

A obrigação politicamente correta de sempre ponderar o “outro lado” em controvérsias econômicas vira e mexe acaba equiparando opiniões de especialistas que logram publicar sua pesquisa em periódicos científicos consagrados a chutes (ingênuos na melhor das hipóteses) propalados por “famosos” ignorantes em economia. Provavelmente não há saída elegante para esse impasse, mas isso não quer dizer que ele não exista.

Se, de um lado, este dilema estrutural da democracia parece insolúvel, há caminhos para melhorar o que existe. Aperfeiçoamentos do processo eleitoral, medidas para nivelar mais adequadamente o jogo, regras que aproximem mais eleitor e eleito, criar meios menos traumáticos para rever escolhas quando algo obviamente dá errado e punição de desvios com tolerância zero, naturalmente sem abusos. Felizmente essas coisas fazem parte do debate aqui no Brasil.

Por fim, as democracias liberais precisam de instituições que limitem efetivamente a discricionariedade dos embusteiros como forma de atenuar os riscos ensejados por nossa irracionalidade. Saberemos em breve como a maior economia do mundo se dará neste quesito.

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Nesta altura do campeonato está claro que o liberalismo vai mal. A liberdade declina no mundo há um bom tempo, mas, segundo a Freedom House, o baque de 2016 será o maior desde que a crise financeira virou o mundo de ponta cabeça. O eleitorado tem revelado profunda desilusão com aspirações liberais em campeões da ideologia como EUA e Reino Unido.

Este contexto estimula os intelectuais a proporem “aperfeiçoamentos”. Para o filósofo americano Jason Brennan, as coisas funcionariam melhor se o voto fosse restrito a uma elite esclarecida. A tese é polêmica. Foi exposta em uma entrevista concedida à Folha há duas semanas.

O argumento soa razoável à primeira vista. Decisões tomadas pela maioria têm que ser engolidas pela totalidade da população e, em muitos casos, as escolhas envolvem riscos elevados. Seria preferível que o julgamento fosse feito por quem tem competência para tal.

A ideia de que a democracia está apoiada em pés de areia não é nova. Churchill disse que uma conversa rápida com o eleitor médio seria o melhor argumento contra o sistema. Para Bill Clinton, o povo fala por meio das eleições, mas é difícil entender o que ele quer dizer.

No campo mais formal, a democracia desperta desconforto em filósofos desde que nasceu. O economista americano Kenneth Arrow demonstrou rigorosamente a impossibilidade de arquitetar um sistema de escolhas sociais que atenda poucos quesitos indiscutíveis de razoabilidade e justiça.

Dito isso, apesar de todas as falhas e dos riscos envolvidos, é difícil engolir a proposta de aperfeiçoar a democracia restringindo o direito ao voto. Na mesma Folha, há uma semana, o escritor português João Pereira Coutinho detonou a proposta: “a política não é uma ciência (…) e pessoas politicamente analfabetas podem saber com lucidez aquilo que desejam para suas vidas, mesmo que desconheçam macroeconomia ou sistemas eleitorais”.

O argumento de Coutinho, não obstante ser politicamente correto, falha por não atacar o ponto levantado por quem defende o voto dos esclarecidos — tese que não parte do pressuposto de que as pessoas não sabem o que querem para suas vidas. A questão é se elas têm condições de avaliar plenamente as implicações de escolhas complexas que afetam as vidas de todos.

Segundo o axioma mais famoso de Mick Jagger, não se pode ter tudo o que se quer. Parece óbvio, mas essa é a lição básica da ciência econômica, matéria sobre a qual muitos são de fato ignorantes (e não sabem disso). Naturalmente as pessoas têm o direito de querer o melhor. Como isso nem sempre é possível é preciso decidir o que deve ser feito antes e como.

A ideia de restringir o direito ao voto é uma tentativa de melhorar a qualidade das escolhas sociais. No entanto, além de antipática e, por assim dizer, antidemocrática, essa tese erra o alvo por uma razão diferente da apontada por Coutinho. A democracia funcionaria às mil maravilhas se as pessoas fossem apenas ignorantes. É simples verificar.

Imagine um país com um milhão de pessoas em que apenas 10 mil são capazes de avaliar competentemente as implicações das políticas públicas. Esse país tem que escolher entre uma proposta populista, palatável (A) e uma proposta alternativa, indigesta, mas necessária (B).

Em estatística, há um animal conhecido por Lei dos Grandes Números. Trata-se de princípio probabilístico que, aplicado ao caso em tela, implica que os votos dos ignorantes para A serão anulados por quantidade semelhante de votos para B – como se o eleitor limitado jogasse uma moeda para decidir.

A aleatoriedade do voto mal informado produz um verdadeiro milagre em nosso exemplo. A população opina, mas quem decide de fato é a elite informada, dentro da qual é razoável supor que a alternativa B será vitoriosa. Voilà! Um mundo povoado por ignorantes toma decisões sábias por meio de voto universal e todos saem felizes. Temos aí a base da teoria da democracia.

Onde está a pegadinha? O problema não é a ignorância da massa, mas sua irracionalidade, especialmente no tocante aos temas econômicos. Pior, a elite também sofre desse mal.

O eleitorado de forma geral não entende os princípios básicos de economia, seja pelo fraco didatismo dos economistas, mas também porque a disciplina é tida como enfadonha. Além disso, muitos “intelectuais” sentem-se confortáveis em discutir temas econômicos sem o devido conhecimento (nem todos os ensinamentos da disciplina são intuitivos). Por isso os debates econômicos parecem com os futebolísticos.

Não menos importante é a propensão que o ser humano tem de agir de acordo com os próprios interesses. As pessoas podem até saber que suas escolhas podem prejudicar o todo, mas os benefícios pessoais falam mais alto – quantos políticos realmente pensam no bem comum? John Nash levou um Nobel ao mostrar que a maioria pode sair perdendo quando cada um cuida do seu.

A irracionalidade do eleitor é o fator que complica a vida da democracia. Na medida em que todos são enviesados, elite incluída, o milagre da agregação proporcionado pela Lei dos Grandes Números vai para o espaço e o sistema fracassa. O risco de isso ocorrer aumenta quando, por exemplo, uma crise provoca elevação de desigualdades.

O populista ganha eleições porque suas falácias ecoam por meio da elite composta por escritores, compositores, professores, juristas, comediantes, empresários, socialites e economistas heterodoxos, por ignorância, ingenuidade, desonestidade, medo de parecer “incorreto”, ou uma combinação desses fatores. A obra prima de Raymond Aron, o Ópio dos Intelectuais, escancara os vieses da intelligentsia esquerdista francesa a partir de sua própria lógica.

A elite brasileira é antiliberal. Nas últimas eleições municipais, ideologia semelhante às que arruinou o Brasil foi vitoriosa em bairros ricos das duas maiores cidades do país. São Paulo e Rio de Janeiro foram salvos do atraso pela “massa ignorante” – não estou aqui defendendo os prefeitos eleitos, mas chamando atenção para a cegueira econômica de uma parcela supostamente esclarecida da população.

Nos Estados Unidos, artistas votaram em candidatos independentes (com atributos e propostas desejáveis, vale dizer), mas claramente inviáveis eleitoralmente, sabendo que essa escolha certamente favoreceria a pior alternativa para eles mesmos, possivelmente de forma decisiva em um páreo apertado. Diga-se, essa é uma das inconsistências elementares que, segundo Arrow, deveria ser evitada por um processo de escolha social consistente.

Além do risco de conceder o poder decisório a uma elite enviesada, a proposta de restringir o direito ao voto envolve o perigo de que o sistema degenere para uma espécie de tirania. Em tese, uma oligarquia esclarecida e benevolente seria capaz de resolver o problema, mas ela não existe.

Você toparia transferir o poder de escolha dos presidentes brasileiros aos economistas inscritos no CRE? Provavelmente não. Eu não aceito transferir meu voto para a comunidade “progressista” de intelectuais brasileiros residentes na França. Diante desse impasse, é melhor estender o voto a todos, tapar o nariz e rezar fervorosamente.

Se, de um lado, restringir o direito ao voto não é o caminho, de outro, afirmações como “analfabetos econômicos sabem o que querem” são também arriscadas porque nivelam por baixo debates que exigiriam conhecimentos prévios para serem superados proveitosamente.

A obrigação politicamente correta de sempre ponderar o “outro lado” em controvérsias econômicas vira e mexe acaba equiparando opiniões de especialistas que logram publicar sua pesquisa em periódicos científicos consagrados a chutes (ingênuos na melhor das hipóteses) propalados por “famosos” ignorantes em economia. Provavelmente não há saída elegante para esse impasse, mas isso não quer dizer que ele não exista.

Se, de um lado, este dilema estrutural da democracia parece insolúvel, há caminhos para melhorar o que existe. Aperfeiçoamentos do processo eleitoral, medidas para nivelar mais adequadamente o jogo, regras que aproximem mais eleitor e eleito, criar meios menos traumáticos para rever escolhas quando algo obviamente dá errado e punição de desvios com tolerância zero, naturalmente sem abusos. Felizmente essas coisas fazem parte do debate aqui no Brasil.

Por fim, as democracias liberais precisam de instituições que limitem efetivamente a discricionariedade dos embusteiros como forma de atenuar os riscos ensejados por nossa irracionalidade. Saberemos em breve como a maior economia do mundo se dará neste quesito.

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