Técnica permite editar o genoma do parasita da doença de Chagas
Pesquisa científica pode contribuir para que a medicina alcance métodos mais eficazes de combate à doença
Da Redação
Publicado em 26 de janeiro de 2017 às 14h14.
Técnicas que permitem manipular o genoma de parasitas causadores de doenças – para, por exemplo, inibir a expressão de proteínas e investigar sua função – têm sido amplamente empregadas pelos cientistas na tentativa de identificar alvos para o desenvolvimento de fármacos.
Enquanto avanços têm sido alcançados no estudo do Trypanosoma brucei (causador da doença do sono) ou do Toxoplasma gondii (causador da toxoplasmose), por exemplo, no caso do Trypanosoma cruzi (causador da doença de Chagas) os métodos tradicionalmente usados para nocautear genes ou marcar proteínas intracelulares vêm se revelando ineficazes.
Com apoio da FAPESP, por meio do Projeto Temático “Sinalização por íons de cálcio em tripanosomatídeos”, um grupo coordenado pelo professor Roberto Docampo na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp) mostrou ser possível manipular o genoma do T. cruzi por meio do chamado sistema CRISPR/Cas9 (do inglês, clustered regularly interspaced short palindromic repeats associated gene 9).
Docampo é professor da Universidade da Georgia, nos Estados Unidos, e mantém colaboração com o professor da Unicamp Aníbal Vercesi há mais de 25 anos, quando descobriram no T. cruzi uma nova organela chamada acidocalcisoma, que está envolvida na regulação dos níveis de cálcio dentro da célula. Ele coordena o Temático no âmbito do Programa São Paulo Excellence Chair (SPEC), desenvolvido no laboratório de Vercesi na Unicamp.
A metodologia CRISPR/Cas9 consiste em transfectar ( introduzir intencionalmente ácido nucleicos nas células) o parasita com um vetor – no caso uma pequena molécula circular de DNA chamada plasmídeo – de modo a induzir a expressão de duas outras moléculas: a enzima Cas9 e o sgRNA, que irão se unir no núcleo celular para formar uma ribonucleoproteína.
A Cas9 é uma endonuclease, ou seja, uma proteína capaz de produzir uma quebra na dupla fita de DNA. O sgRNA é uma espécie de RNA-guia, que serve para dirigir essa enzima para o gene-alvo.
Dessa forma, é possível introduzir ou suprimir material genético no local onde o DNA foi quebrado. Além do plasmídeo, também é transfectada uma molécula de DNA doadora que permite o reparo da dupla fita.
“Esse processo foi inicialmente descrito como sendo um sistema imune rudimentar de bactérias e, mais tarde, foi adaptado para a edição do genoma em organismos eucariotos. Atualmente, é possível usá-lo em praticamente qualquer tipo de organismo”, contou Noelia Lander, pós-doutoranda na FCM-Unicamp.
Em uma pesquisa divulgada na revista mBio em 2015, o grupo da Unicamp mostrou, pela primeira vez, ser possível usar o sistema CRISPR/Cas9 para nocautear genes do T. cruzi.
Mais recentemente, em artigo publicado no The Journal of Biological Chemistry (JBC), a equipe validou o método também para a marcação de proteínas – processo que permite estabelecer sua localização no interior das células e identificar vias de sinalização importantes para a sobrevivência do parasita.
“Fizemos o que se chama de marcação C-terminal de proteínas, que consiste em acrescentar à cadeia polipeptídica uma pequena molécula, como a hemaglutinina (HA), contra a qual já existem anticorpos comerciais específicos. Os anticorpos reconhecem a molécula, ligam-se a ela e, por meio de microscopia de fluorescência, é possível localizar a proteína que estamos estudando na célula”, explicou Lander.
Inicialmente, para confirmar se a técnica de fato funcionava com o T. cruzi, o grupo usou o sistema CRISPR/Cas9 para marcar a proteína TcVP1 (pirofosfatase vacuolar de prótons), cuja localização já era conhecida.
“Ela está presente no acidocalcisoma. Já existem anticorpos específicos contra essa proteína TcVP1 e eles apontaram para a mesma localização que a observada quando usamos o método CRISPR/Cas9”, contou Lander.
Em seguida, o sistema CRISPR/Cas9 foi usado para marcar e localizar três outras proteínas: a TcFCaBP (proteína flagelar de união ao cálcio), encontrada no flagelo do parasita; a TcMCU (uniporter de cálcio mitocondrial), que foi identificada na mitocôndria; e a TcIP3R (receptor de inositol trifosfato), cuja localização foi confirmada no acidocalcisoma.
“Em relação à TcIP3R, havia uma disputa no meio acadêmico sobre qual seria a localização correta. Um grupo do Japão coordenado por Katsuhiko Mikoshiba defendia a teoria de que ela estava no retículo endoplasmático, enquanto Docampo dizia estar no acidocalcisoma, o que conseguimos confirmar”, disse Lander.
Desdobramentos
Segundo a pesquisadora da Unicamp, além de pôr fim a um antigo embate, a descoberta tem diversas outras implicações, pois facilita a compreensão dos processos de sinalização celular mediados pelo cálcio no parasita.
“A sinalização por cálcio é importante para a sobrevivência do parasita e interfere no seu potencial de infectar o hospedeiro. Sinais de cálcio têm sido descritos como importantes para o processo de invasão celular”, explicou Lander.
Atualmente, o grupo tem usado o sistema CRISPR/Cas9 para estudar a função das proteínas TcMCU e TcIP3R e, assim, confirmar se a via de sinalização por cálcio pode ser usada como alvo terapêutico no T. cruzi.
“O que fazemos basicamente é nocautear o gene que codifica a proteína ou induzir sua superexpressão. Em seguida, fazemos a caracterização fenotípica dessas linhagens mutantes”, explicou.
Parte dos experimentos do Projeto Temático está sendo feita durante os pós-doutorados de Lander e de Miguel Angel Chiurillo Siervo – ambos bolsistas da FAPESP.
“Ao estudar a função de diversas proteínas envolvidas na sinalização por cálcio, nosso objetivo é identificar uma enzima ou rota metabólica que seja essencial para o parasita e, ao mesmo tempo, não esteja presente em humanos. Assim, poderemos validá-la como alvo terapêutico”, disse Lander.
O artigo “CRISPR/Cas9-Induced Disruption of Paraflagellar Rod Protein 1 and 2 Genes in Trypanosoma cruzi Reveals Their Role in Flagellar Attachment” pode ser lido aqui.
Este conteúdo foi originalmente publicado no portal da Fapesp.