Estudo identifica fatores que contribuíram para disseminação da covid-19
Temperatura baixa, alta urbanização e maior número de turistas internacionais nos primeiros dias da epidemia explicam começo da onda de contaminação
Victor Sena
Publicado em 23 de junho de 2020 às 10h00.
Última atualização em 23 de junho de 2020 às 10h02.
Quando deixou a província chinesa de Hubei rumo à Europa e aos vizinhos asiáticos – entre dezembro de 2019 e janeiro de 2020 – o coronavírus SARS-CoV-2 encontrou em algumas regiões do globo condições particularmente favoráveis à sua disseminação.
Após analisar dados de 126 países, entre eles o Brasil, pesquisadores das universidades de Campinas (Unicamp) e de Barcelona identificaram um conjunto de fatores que teriam favorecido o espalhamento rápido do vírus na fase inicial da epidemia, ou seja, antes que fossem adotadas políticas públicas para conter o contágio.
Segundo o estudo, apoiado pela FAPESP, entre os fatores que contribuíram para a maior taxa inicial de crescimento da COVID-19 estão:
- Temperatura baixa e, consequentemente, população menos exposta aos raios ultravioleta do sol e com menor nível de vitamina D;
- maior proporção de idosos e, portanto, maior expectativa de vida;
- maior número de turistas internacionais nos primeiros dias da epidemia;
- início precoce do surto (países onde a doença chegou primeiro demoraram mais para tomar medidas de prevenção);
- maior prevalência de câncer de pulmão, de câncer em geral e de DPOC (doença pulmonar obstrutiva crônica); maior proporção de homens obesos;
- maior taxa de urbanização, maior consumo de álcool e tabaco;
- e hábitos de saudação que envolvem contato físico, como beijo, abraço ou aperto de mão.
“Escolhemos como ponto de partida de nossa análise o dia em que cada país registrou o 30º caso de COVID-19 e analisamos os dias seguintes [entre 12 e 20 dias, dependendo do país]. O objetivo era entender o que ocorreu na fase em que a doença cresceu livremente, de forma quase exponencial”, explica à Agência FAPESP Giorgio Torrieri, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW-Unicamp) e coautor do artigo divulgado na plataforma medRxiv, ainda sem revisão por pares.
Segundo o pesquisador, a proposta era aplicar análises estatísticas comumente usadas na área de física – entre elas a regressão linear simples e o cálculo do coeficiente de determinação – para tentar entender o que ocorreu no início da pandemia. Os dados usados nas análises vieram de fontes diversas – boa parte de um repositório público conhecido como Our World in Data.
“A ideia era avaliar o seguinte: caso não fosse feito nada para conter a doença, com qual velocidade o vírus se espalharia nos diferentes países ou nos diferentes grupos sociais? Fatores como temperatura, densidade demográfica, urbanização e condições de saúde da população influenciam a velocidade do contágio?
Fontes confiáveis
Alguns estudos sugerem que a vacina BCG, contra tuberculose, pode ter algum efeito protetor no caso da COVID-19. As análises feitas pelos pesquisadores da Unicamp e da Universidade de Barcelona indicam a existência de uma correlação fraca entre as duas variáveis (taxa de imunização contra tuberculose e taxa de contágio pelo SARS-CoV-2). Segundo Torrieri, porém, é possível que o resultado tenha sido prejudicado pela falta de dados confiáveis em países onde a vacinação não é obrigatória.
“Quando excluímos os países sem dados de vacinação, a correlação fica fraca. Mas quando incluímos esses locais na análise e assumimos que têm uma taxa baixa de imunização, a correlação se torna mais forte”, conta o pesquisador.
Para alguns dos fatores analisados – entre eles a prevalência de doenças como anemia, hepatite B (nas mulheres) e hipertensão – os pesquisadores identificaram uma correlação negativa. Ou seja, nos países com maior proporção de hipertensos, por exemplo, a taxa de contágio inicial do SARS-CoV-2 foi menor.
“Podemos imaginar que nesses locais há mais doença cardiovascular e, portanto, menor expectativa de vida”, avalia Torrieri.
Entre os fatores analisados que não apresentaram correlação com o contágio (nem positiva e nem negativa) estão: número de habitantes; prevalência de asma; densidade populacional; cobertura vacinal para poliomielite, difteria, tétano, coqueluche e hepatite B; prevalência de diabetes; nível de poluição do ar; quantidade de feriados; e proporção de dias chuvosos. No caso do Produto Interno Bruto (PIB) per capita, como explicou Torrieri, a correlação se mostrou positiva apenas em valores acima de 5 mil euros.
“O PIB está relacionado com a qualidade da infraestrutura pública. Quanto maior é o PIB per capita de um país, melhor é a infraestrutura de saúde e de moradia, por exemplo. Mas abaixo de 5 mil euros não fez diferença provavelmente porque a infraestrutura é de baixa qualidade”, avalia o pesquisador.
Como destacam os autores no texto, diversas variáveis analisadas estão correlacionadas entre si e, portanto, é provável que tenham uma interpretação comum e não é fácil separá-las. “A estrutura de correlação é bastante rica e não trivial, e incentivamos os leitores interessados a estudarem as tabelas [do artigo] em detalhes”, afirmam.
Segundo os pesquisadores, algumas das correlações apontadas são "óbvias", por exemplo, entre temperatura, radiação UV e nível de vitamina D. “Outras são acidentais, históricas e sociológicas. Por exemplo, hábitos como consumo de álcool e tabagismo estão correlacionados com variáveis climáticas. De forma semelhante, a correlação entre tabagismo e câncer de pulmão é muito alta e, provavelmente, contribui para a correlação deste último [o câncer] com o clima. Razões históricas também explicam a correlação entre clima e o PIB per capita”, dizem os pesquisadores.
Embora seja impossível para os países alterar algumas das variáveis estudadas, como o clima, a expectativa de vida e a proporção de idosos, por exemplo, sua influência na disseminação da doença deve ser levada em conta na formulação de políticas públicas, ajudando a definir estratégias de testagem e de isolamento social, defendem.
Outras variáveis, segundo os autores, podem ser controladas pelos governos: testagem e isolamento de viajantes internacionais; restrição de voos para regiões mais afetadas pela pandemia; promoção de hábitos de distanciamento social e de campanhas visando reduzir o contato físico enquanto o vírus estiver se espalhando; e campanhas voltadas a estimular na população a suplementação de vitamina D, a redução do tabagismo e da obesidade.
“Enfatizamos ainda que algumas variáveis apontadas são úteis para inspirar e apoiar a pesquisa na área médica, como a correlação do contágio com câncer de pulmão, obesidade, baixo nível de vitamina D e diferentes tipos sanguíneos e diabetes tipo 1. Isso definitivamente merece estudo mais aprofundado, com dados de pacientes”, concluem os cientistas.