Carreira

A nova hierarquia

A forma como as empresas estão organizadas não funciona mais. Está na hora de investir mais em modelos colaborativos e valorizar menos as relações de poder

Luis Gonzalo, diretor-geral, com funcionários do Grupo Combustol & Metalpó: ao adotar um modelo misto de hierarquia e equipes autogerenciadas, deixou a empresa mais veloz (Marcelo Spatafora / VOCÊ RH)

Luis Gonzalo, diretor-geral, com funcionários do Grupo Combustol & Metalpó: ao adotar um modelo misto de hierarquia e equipes autogerenciadas, deixou a empresa mais veloz (Marcelo Spatafora / VOCÊ RH)

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Da Redação

Publicado em 18 de julho de 2014 às 16h28.

São Paulo - Em janeiro deste ano, a empresa americana de comércio eletrônico Zappos causou um rebuliço na mídia internacional ao anunciar a eliminação de todos os cargos corporativos e se reorganizar seguindo o conceito de holocracia.

A ideia por trás da palavra ainda desconhecida pela maioria das pessoas é que, com o tempo, seus 1.500 funcionários estejam organizados em círculos em torno da tarefa a ser realizada, e não mais em pirâmides definidas por cargos e funções. Como ninguém mais tem o título de chefe, um gerente que ontem mandava hoje pode receber ordens — tudo em prol da flexibilidade e da produtividade.

A atitude da Zappos desafia o que há de mais básico e antigo nas relações sociais e corporativas: a hierarquia. E, apesar de ser a primeira grande empresa a adotar a holocracia, ela não é a primeira, muito menos a última, a extinguir as relações de poder.

Esse movimento deve ser acompanhado por outras companhias que já perceberam que a estrutura organizacional tal como ainda está desenhada não combina com a velocidade atual do mundo dos negócios. Ela servia numa época em que o trabalhador típico exercia funções estritamente operacionais.

No entanto, o operário típico das linhas de montagem do século 20 atualmente representa apenas 15% do mercado de trabalho nos Estados Unidos. Há tempos, e cada vez mais, essa mão de obra vem sendo substituída por máquinas e sistemas computacionais (veja gráfico na pág. 27).

Mais de 40% dos profissionais americanos fazem parte de outro grupo. São os chamados trabalhadores do conhecimento, caracterizados por usar mais as habilidades de julgamento do que os braços para realizar as tarefas. Isso significa que as corporações estão cada vez mais dependentes da capacidade e da disposição dos funcionários de lidar com ambiguidades, resolver problemas complexos e interagir com outros indivíduos.

Essa transformação na mão de obra, descrita no relatório The Next Revolution in Interactions, de 2005, da McKinsey, “derruba tudo o que sabemos sobre organizações empresariais”.

A grande questão que as companhias enfrentam é como extrair o máximo de produtividade desse novo profissional. Ninguém sabe ainda qual modelo deverá predominar, se é que isso vai acontecer. O certo é que, da maneira como estão organizadas hoje, muitas empresas não estão funcionando. A velha estrutura, rígida e hierarquizada, parece inibir a capacidade criativa, desestimular o profissional do século 21 e, consequentemente, emperrar a inovação e enfraquecer as organizações.

Segundo uma pesquisa do instituto americano de gestão de projetos PMI, com 2.500 líderes de todo o mundo, apenas cinco em cada dez iniciativas estratégicas traçadas pelos executivos-chefes saem do papel e são efetivamente executadas. A velocidade das corporações também está comprometida.

Ainda de acordo com o PMI, três em cada quatro executivos reconhecem que sua companhia não consegue fazer as mudanças e as adaptações exigidas pelo mercado com a velocidade necessária. E 61% afirmam haver uma lacuna entre a formulação da estratégia (feita por aqueles que ocupam os níveis hierárquicos mais altos) e a execução do que foi planejado (feita pelos que estão na base).

Números do Gallup ajudam a entender as causas desse descompasso. De acordo com o estudo State of the Global Workplace, do instituto americano de pesquisa, apenas 13% dos trabalhadores em todo o mundo estão engajados no emprego — e uma das fontes dessa desmotivação está justamente na estrutura organizacional.

“A cultura da hierarquia vertical tende a restringir a comunicação aberta, limitando o potencial de jovens trabalhadores de contribuir com novas ideias e inovações”, afirmam os responsáveis pelo estudo. Ninguém espera que todos sejam tão radicais quanto os donos da Zappos, mas entender o que é “gerir um negócio sem gerentes” desafia qualquer um a repensar como as coisas foram feitas até então. Afinal, dá para eliminar os chefes das empresas?

Uma nova mentalidade

Os chefes, sim. Os líderes, nunca. Não há, segundo a psicologia social, nenhuma tarefa executada sem liderança. Mesmo que todos os chefes sejam destituídos, surgirá naturalmente um líder para guiar o grupo.

“Você pode acabar com a hierarquia, mas não romper a liderança”, diz Marcelo Afonso Ribeiro, professor do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

O novo desenho organizacional não se resume a um modelo simplista de derrubar chefes. O que algumas empresas estão propondo é algo muito mais complexo — que passa por uma mudança cultural profunda. Em sua quinta pesquisa bianual com CEOs, a IBM identificou três grandes desafios que atingirão todos os negócios, independentemente do segmento ou tamanho, nos próximos anos.

Para tal, foram ouvidos 1 700 executivos com seis anos, em média, no cargo, de organizações de 64 países e 18 setores. O primeiro dilema é como liderar por conexões, dando mais poder aos funcionários e usando menos níveis hierárquicos. O segundo é como se conectar com os clientes e enxergá-los como indivíduos, e não simples consumidores.

E o terceiro é como aumentar a capacidade de inovação usando uma rede de colaboração e tecnologias. Esses três desafios só serão vencidos se as decisões forem tomadas de forma colaborativa. “A palavra final ainda pode ser do presidente, mas antes de bater o martelo ele precisará ter ouvido várias partes”, diz Alessandro Bonorino, vice-presidente mundial de recrutamento da IBM.

É esse ponto que algumas companhias, inclusive a IBM, estão cutucando. Em 2003, a empresa — atualmente mais focada em consultoria e serviços — fez pela primeira vez um grande encontro vir­tual com seus trabalhadores para reavaliar valores de quase 100 anos.

Durante três dias, os “ibmistas” (como são chamados os funcionários da IBM) puderam votar e opinar de igual para igual com seus superiores. No ano passado, a companhia repetiu a dose, dessa vez para definir nove práticas que materializam seus valores.
Em dois dias de fóruns, mais de um terço dos 139.000 empregados do mundo se conectou à sala virtual para manifestar suas ideias.

A cooperação continua fora do ambiente virtual. Nos projetos do dia a dia, os funcionários se reúnem e se organizam por si mesmos, seguindo o conceito de autogestão, até encontrar a solução de um problema. De acordo com Bonorino, na área de pesquisas médicas, por exemplo, há mais de 100 pessoas trabalhando dessa forma.

O conceito de autogestão, nascido em uma fábrica da Volvo nos anos 90, é ainda mais comum em atividades fabris. Aliás, a experiência da montadora sueca foi a primeira tentativa de dar aos empregados uma sensação de maior poder e liberdade. Lá, assim como na fabricante de ônibus Irizar, são os trabalhadores das fábricas que definem como vão se organizar para bater as metas.

Alessandro Bonorino, vice-presidente de RH da IBM: um terço dos 139.000 empregados da empresa no mundo se reuniu virtualmente para definir quais ações representariam os valores corporativos. (Omar Paixão / VOCÊ RH)

Eles têm a liberdade de combinar horários, folgas e até o ritmo da produção. Podem até, no caso da Irizar, demitir e contratar pessoal. É claro que continua a existir uma escala hierárquica. A Irizar mantém a figura de um diretor-superintendente e três diretores de áreas-chave (administrativa e financeira, industrial e de compras).

Paulo Sergio Cadorin, diretor administrativo e financeiro da companhia, afirma que eles existem “por causa do estatuto da empresa” e para “assinar a papelada”. “Não temos culto ao chefe”, afirma. Abaixo da diretoria estão os ­coor­denadores, que são uma espécie de “elo entre a fábrica e o administrativo”. Na base da pirâmide “achatada” está o pessoal das equipes autogeridas — a maioria dos 600 funcionários —, com poder para decidir o dia a dia. Na fábrica, todos recebem o mesmo salário. Os diretores ganham mais.

Há uma empresa no Brasil que foi ainda mais longe nesse conceito. Em 2007, os sócios da Mercur, de Santa Cruz do Sul (RS), que produz de borrachas escolares a bolsas de água quente, questionaram se as atividades da companhia estavam realmente alinhadas a seus valores. Descobriram que não. Como na maioria das empresas no mundo todo, o diálogo era um; a prática, outra.

Com base nessa constatação, a Mercur iniciou uma série de mudanças que deveriam estar em linha com seu objetivo maior — ser uma empresa que respeita clientes e funcionários como “cidadãos planetários”. Entre outras medidas, pararam de vender produtos com personagens de desenhos famosos, que custavam até três vezes mais do que os comuns. “Não era certo manipular uma criança para comprar uma borracha mais cara que tinha a mesma função”, afirma Breno Strussmann, diretor-geral da Mercur.

As transformações não pararam por aí. Os seis diretores à época foram “convidados a se destituir dos cargos” e se juntar à massa de operários, contribuindo mais com perguntas e respostas do que dando ordens. “Quem somos nós para nos achar donos da razão, numa hierarquia top-down, e esperar que as coisas se cumpram?”, diz Strussmann.

Dos seis, apenas um executivo saiu por não se adaptar à nova realidade. Strussmann admite que algumas situações ainda exigem a palavra final do diretor-geral. “Mesmo assim, a decisão precisa ter passado por uma discussão, ser democrática”, afirma.

Todos juntos (e mais velozes)

Essa discussão pode até demorar. Mas, uma vez decidido o caminho a ser adotado, a empresa consegue que todos os funcionários remem no mesmo sentido. E isso permite que o trabalho flua mais rapidamente — algo que dez em cada dez empresários desejam. Afinal, empresas mais ágeis geram 30% mais lucro do que as companhias mais lentas, segundo um estudo do PMI.

Para Cadorin, da Irizar, não há dúvidas de que as empresas que adotam a autogestão como modelo são mais rápidas. “As pessoas são incentivadas a tomar decisões, e todos sabem que precisam produzir, porque o outro depende dele”, diz. A Volvo no Brasil conta com 140 equipes autogerenciáveis, cada qual com seis a 25 pessoas, totalizando 2.200 empregados nesse modelo, dos 5.000 que tem no país.

Hoje, a operação, apesar de ser a única a manter equipes autogeridas, é referência em qualidade dos produtos e redução de desperdício na multinacional. Com o intuito de trabalhar de forma mais colaborativa e ganhar velocidade na tomada de decisões, essas corporações acabam naturalmente enxugando a quantidade de níveis hierárquicos. “O propósito, porém, não é fazer downsizing”, afirma Luis Gonzalo, diretor-geral do Grupo Combustol & Metalpó, fabricante de fornos industriais.

Ao entrar na empresa há cerca de dois anos, Gonzalo queria quebrar os “silos departamentais” que, em sua visão, emperravam os negócios. Adotou, nas áreas entre a produção e a diretoria, um mix de hierarquia flat e equipe autogerenciada. Antes, dez engenheiros cuidavam dos produtos que lhes cabiam, e cada equipe de vendas atendia sua própria carteira de clientes.

A mesma regra valia para as equipes de compras, processos e qualidade. Gonzalo fez com que todos parassem de olhar para si e passassem a enxergar o cliente. Na nova estrutura, a empresa formou grupos compostos de engenheiros, vendedores, técnicos de qualidade e processos e compra de material para atender às necessidades de cada cliente.

Os 400 funcionários foram organizados em uma estrutura hierárquica enxuta: apenas o presidente, que responde por todas as empresas do grupo, o diretor-geral e quatro gerentes estão acima do nível de produção. Como resultado, a companhia leva três meses para desenvolver e entregar um produto ao cliente, dois a menos do que antes de adotar esse modelo. E todos os funcionários têm a mesma meta: trabalhar pela satisfação do cliente e pela rentabilidade do produto vendido.

A volúpia do poder

Na opinião de Jeffrey Pfeffer, professor de ambiente organizacional da Universidade Stanford, os empresários sabem que, para ganhar agilidade e melhorar o engajamento dos empregados, precisam descentralizar as decisões, ser menos autoritários, reduzir a hierarquia e distribuir os ganhos de forma justa.

“Mas não o fazem porque, primeiro, acham que isso custa tempo e dinheiro e o retorno não é garantido; e, segundo, porque gostam do poder”, diz.

A ânsia pelo poder é a base de quase todas as práticas de negócios e gestão de pessoas e é nela que reside a principal fraqueza do modelo baseado na autogestão e nas estruturas sem chefe. O ser humano acredita que o conceito de sucesso é subir degraus na escada corporativa, ter prestígio, influência e dinheiro.

E as companhias sempre se valeram dessa crença para que as pessoas — em troca de tudo isso — dessem o máximo de si. Num modelo em que, teoricamente, os degraus começam a diminuir, como oferecer a possibilidade e a sensação de crescimento? Como recompensar os melhores?

Na Irizar, onde o salário dos trabalhadores da fábrica é nivelado, quem se destaca é alocado em projetos específicos. Para alguns é oferecida a oportunidade de passar uma temporada de estudos na Austrália, onde há uma unidade da empresa, por exemplo. Mas, para efetivamente crescer na carreira, o funcionário precisa esperar que algum diretor saia — algo difícil de acontecer. “Não somos perfeitos. Quando veem a chance de ganhar mais, algumas pessoas acabam saindo”, afirma Cadorin.

A tarefa de reorganizar sua estrutura, portanto, vai muito além de derrubar caixinhas do organograma. É preciso derrubar os (pré)conceitos e os modelos a que estamos acostumados. E isso não é para todos.

“Você não tem como exigir que o mundo pense igual e partilhe do mesmo propósito. É uma proposta muito individual e depende dos estágios de consciência”, diz Strussmann. A conversão para o trabalho colaborativo — para o diretor-geral da Mercur — é muito dura. E, em alguns casos, pode nunca acontecer.

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