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"Estado se afastou dos pobres", diz o criador do Bolsa Família

No lançamento do painel de pobreza multidimensional, o economista Ricardo Paes de Barros alerta para a falta de identificação das necessidades da população vulnerável. Veja como vai funcionar a plataforma de dados

"Antes o pobre trabalhava muito e ganhava pouco. O objetivo era melhorar as condições de trabalho dele. Hoje, ele não tem trabalho", completa Paes de Barros (Marcelo Correa/Exame)

"Antes o pobre trabalhava muito e ganhava pouco. O objetivo era melhorar as condições de trabalho dele. Hoje, ele não tem trabalho", completa Paes de Barros (Marcelo Correa/Exame)

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Agência O Globo

Publicado em 28 de setembro de 2022 às 17h41.

Última atualização em 28 de setembro de 2022 às 18h01.

O economista Ricardo Paes de Barros apresentou nesta quarta-feira um painel de indicadores sociais, lançado pelo movimento Brasil sem Pobreza e pela Oppen Social, que mostram as várias dimensões da pobreza, para que o combate à miséria possa ser feito com efetividade.

O objetivo da plataforma, que reúne 30 indicadores de trabalho, saúde, segurança pública, habitação, nutrição e assistência, de 5,5 mil municípios, “é monitorar e prestar atenção às violações dos direitos sociais e na pobreza”, segundo Paes de Barros.

"Nem todo mundo entende que todas as pessoas têm direitos sociais, como habitação, trabalho, alimentação, e que é grave violação constitucional não garantir esses direitos a todas as pessoas", afirma.

O economista, um dos criadores do programa Bolsa Família, diz que “o Estado se afastou do pobre”, que ninguém sabe o que é o “Auxílio Brasil, que muda toda hora”, o que aumenta a insegurança alimentar:

"No Bolsa Família, ganhava-se pouco, mas se sabia que ia ganhar e quanto. Agora não sabe quando vai ganhar e se vai ganhar de novo. Não faz nenhum sentido essa instabilidade, nota zero em qualquer desenho de política de combate à pobreza. A pobreza no Brasil voltou ao nível de 2007, de 14 anos atrás. Reduzimos a pobreza de 2004 a 2014 e já perdemos dez anos de avanços", complementa.

O desenho do programa é apontado pelo economista como um dos motivos para a insegurança alimentar grave ter aumentado tanto nos últimos tempos, com 33 milhões nessa situação, de acordo com a pesquisa da Rede Penssan.

"Não é à toa que os pobres se sentem inseguros, não é à toa que essas transferências não geram uma percepção dos pobres de que estão mais seguros. Nunca se transferiu tanto dinheiro e nossos pobres estão mais inseguros nutricionalmente".

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Insegurança alimentar em risco de aumento

Ele lembra que o Brasil tem o mesmo nível de pobreza de 2007, mas com insegurança alimentar muito maior e que o primordial é a estabilidade na transferência de recursos.

A visão integrada da política social, usando os 9 mil centros de referência de assistência social (Cras), para chegar a um atendimento individualizado da família, fazendo o diagnóstico das vulnerabilidades das pessoas e encaminhando para os programas existentes é o caminho para superar a pobreza.

A oferta desses serviços hoje é descoordenada, com ONGs e governo selecionando beneficiários. As transferências funcionam para aliviar a pobreza, até que essas famílias possam ter condições de deixar de serem pobres:

"Desde o Brasil sem Miséria (programa criado em 2011, no governo de Dilma Rousseff), se afastou a solução personalizada. Tem um cadastro único (porta de entrada para os programas sociais do governo) incrivelmente desatualizado, sucatearam o cadastro único e, com pandemia e a pouca atenção à assistência social, afastou-se o Cras das famílias pobres. Tem menos conhecimento de quem é o pobre. Se não for individualizado e integrado, não funciona", acrescentou.

Falta de monitoramento do desenvolvimento infantil

Paes de Barros diz que falta monitoramento sobre o desenvolvimento infantil no Brasil e usa como exemplo a educação. Se sabe o que se perdeu de aprendizado na pandemia, com a Prova Brasil, mas não sabemos o que aconteceu com as crianças, com o desenvolvimento delas. Políticas que já são adotadas em outros países, como Chile, Austrália, Canadá, monitoram o desenvolvimento da criança desde o nascimento.

"Não temos indicadores muito bons do desenvolvimento social, emocional, cognitivo das crianças. São mais nutricionais, como peso ao nascer, mas sem outras avaliações mais profundas. No Canadá, na Austrália, eles sabem se as crianças já estão prontas para alfabetização, se tem coordenação motora fina para pegar um lápis. Não temos isso", diz.

No grupo de indicadores do painel, há a proporção de crianças com baixo peso ao nascer, e de baixo peso ao nascer de mães do CadastroÚnico.

Outro indicador que falta para análise social no Brasil é de violência doméstica, "ainda temos carência dessas informações", diz Paes de Barros.

E ainda mais um complicador: o mercado de trabalho não está gerando ocupações menos qualificadas que os mais pobres conseguiam, diz Paes de Barros.

"Antes o pobre trabalhava muito e ganhava pouco. O objetivo era melhorar as condições de trabalho dele. Hoje, ele não tem trabalho", completa.

O aumento do salário que deixou o trabalho mais caro, o salário reserva das transferências, que faz as pessoas não aceitarem mais “salários ridiculamente baixos”, a recessão e a pandemia tiraram essas ocupações do mercado.

"A pobreza era muito baseada em baixa remuneração, agora é em falta de trabalho. Durante a pandemia, a recessão, muitas das estratégias de sobrevivência têm sido destruídas, a economia, famílias, empresas descobriram que conseguem viver muito bem sem aqueles trabalhos marginais, precários. A tecnologia permite conseguir essas coisas. Aquelas estratégias de sobrevivência mais precárias não funcionam, desapareceram. Fica muito mais difícil a inclusão produtiva, reconstruir a inserção do pobre no mercado do trabalho", pontua.

Segundo Paes de Barros, em São Paulo, entre os 5% mais pobres, que soma 1 milhão de pessoas, 90% estão sem trabalho, ou procurando emprego ou fora do mercado. "Há uma crise de conexão com o mundo do trabalho".

Entenda como funciona o painel

A plataforma tem sete grupos de indicadores. O primeiro tema trata de trabalho e renda, com indicadores de emprego formal, renda per capita e população com renda mensal de até meio salário-mínimo. Na segurança, estão incluídos taxa de homicídios geral e de jovens e taxa de óbitos por acidente de trânsito.

Em outro grupo, de habitação, verifica-se o acesso aos serviços públicos (água, saneamento, coleta de lixo) da população em geral e de quem está incluído no cadastro único. Na nutrição, observa-se o peso ao nascer geral e das mães com pouca instrução.

Na saúde, doenças, cobertura vacinal, pré-natal, esperança de vida ao nascer e taxa de mortalidade. Na educação, entram atraso escolar, evasão, Ideb e desempenho em português e matemática. Na assistência, monitora-se os que recebem auxílio, gravidez precoce, população em situação de rua.

“A pobreza é multidimensional e não pode ser reduzida a uma medida escalar. É simples: não existe moradia que seja boa o suficiente para aplacar a fome! Os direitos sociais se complementam, sem qualquer possibilidade de substituição entre eles e é daí que nasce a proposta deste painel. Construído para contabilizar [contar] violações de direitos sociais, não foi desenvolvido nem para julgar quais são os mais importantes, nem para agregar violações de direitos distintos em um indicador sintético”, explicou Ricardo Paes de Barros, ao lançar a plataforma, que será aberta para gestores, pesquisadores e população em geral.

Nela, é possível fazer cruzamentos e comparações entre municípios, além de acompanhar a série histórica dos indicadores. A plataforma vai ser atualizada conforme os dados foram divulgados pelas instituições.

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